sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

A Palha do Deodato


Quando aqui há uns anos me ensinaram os rudimentos da Economia, falaram-me inevitavelmente dos seus grandes sectores: primário, secundário, terciário. Percebia-se rapidamente que nem a denominação nem a ordem propostas eram arbitrárias. De facto, antes de mais nada, uma sociedade precisa de se alimentar e por isso a agricultura e as pescas pontuavam no sector primário e eram tidas como o suporte da estrutura económica. A transformação dos produtos e a prestação de serviços são complementos importantes, sem dúvida, mas não nos alimentamos com sabonetes Dove e, embora eu ache que há quem não acredite, garanto que se sobrevive sem o telejornal diário.

Houve um tempo em que os países procuravam equilíbrios estruturais destes sectores nas suas economias. Um dos argumentos invocados era, senão a autonomia, pelo menos um grau aceitável dela, e nesta lógica o conceito de cobertura da balança alimentar tinha alguma relevância. Este conceito defendia que deveria ser criada e mantida uma certa capacidade de produção autónoma de bens alimentares de primeira necessidade. Mas depois veio a globalização e nunca mais ninguém pensou no caso.

Vou tentar explicar isto com um exemplo.

O meu vizinho Jeremias era um desses pequenos agricultores que com a ajuda do burro Deodato cobria a totalidade das suas balanças alimentares e contribuía para uma parte das nossas. Um dia, há já alguns anos, estava ele de passagem pela Água da Sola, a caminho das Caldas, quando se cruzou com o Nunes que fazia o caminho inverso. E pararam a trocar novidades. Estavam eles nisto quando estaca um autocarro. Abertas as portas, saiu de lá de dentro um bando de estrangeiros de máquinas fotográficas aperradas e quando o Jeremias deu por ele tinha mais de dez contos de gratificações na mão sem sequer se ter desmontado. De modo que no dia seguinte, mais ou menos pela mesma hora, fazendo de conta que não era nada com ele, arreou o Deodato e, casualmente, fizeram-se de novo ao caminho da Água da Sola, mas mal chegaram ao asfalto foram interceptados por novo autocarro. Chegados aqui poupo-lhes detalhes e concluo que em menos de um mês o Jeremias fez um up-grade do primário para o terciário e dez anos e dois Deodatos depois tem um próspero negócio de prestação de serviços turísticos que é um case-study com tabela e tudo: foto só ao Deodato – 2 euros; Jeremias e Deodato - 5 euros; Deodato com cônjuge ou parente do fotógrafo em cima - 10 euros…e por aí adiante.

Claro que esta migração trouxe consequências. Presentemente, o Deodato II só come palha espanhola e o Jeremias só não sabe de onde vem o que come porque não sabe ler os rótulos das embalagens, mas duas coisas garante ele: há doze anos que não cultiva uma batata e dinheiro para as comprar nunca mais faltou.

Por mim acabaria por aqui, mas escaldado com as indignações do António Sem Penas, obrigo-me a teclar mais qualquer coisa.

O Jeremias personifica o percurso da economia portuguesa e de muitas outras. Trocamos a quase totalidade da produção de bens de primeira necessidade pela prestação de serviços que pretendemos “de valor acrescentado” e com as gorjetas lá vamos comprando a palha espanhola e mandando vir do Canadá o trigo com que se faz o pão.

Enquanto Espanha (ou a China, tanto faz) continuar a produzir e a vender-nos palha por troca das gorjetas que os irlandeses cá vão deixando, a coisa até é “sustentável”, como se diz modernamente. O problema é se falha algo no processo, pois entretanto aprendemos tudo sobre a “nouvelle-cuisine” da batata e da etiqueta de a servir à mesa, mas esquecemo-nos de como é que elas se cultivam. E por arrastamento e falta de melhor uso, os terrenos onde isso se fazia foram vendidos, e onde não se construíram vivendas, há auto-estradas ou parques industriais ou de estacionamento.

Qualquer aprendiz de economista da modernidade nos dirá que nada disto é acessório, que se trata de uma importante dinâmica de comércio, tendo por premissa o interesse em potenciar as capacidades diferenciadas das várias economias, a gesta de novas sinergias, os ciclos de valor acrescentado, a requalificação da mão de obra, o desenvolvimento do terceiro mundo, sim, pois, claro, com certeza, los alimentos viajeros, pressupuesto, está bem visto, mas…será que não nos está a escapar alguma coisa essencial?

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Um Povo do Caraças II


Há quarenta anos não se discutia a obesidade infantil. Não é que o tema em abstracto não fosse interessante, nada disso, simplesmente ser gordo era uma impossibilidade prática, e a partir daí qualquer discussão sobre o assunto assumiria contornos de absurdo surrealismo filosófico.


Algum leitor mais jovem, ou apenas mais distraído, que não vá já tirando conclusões precipitadas pensando que essa impossibilidade decorria das boas práticas de educação física dos liceus ou das escolas comerciais e industriais, pois qualquer relance pelas estatísticas da época basta para perceber que eram frequentadas por uma minoria. E também não se pense que não se engordava devido à racionalidade objectiva das dietas ou porque os putos ao tempo não gostassem de chocolates. É evidente que gostavam de chocolates. Mas uma tablete Regina daquelas pequenas embrulhadas em pratinha vermelha e dourada custava 2$50, ou seja, mais um tostão que um pão de meio quilo, que por coincidência custava o mesmo preço de uma viagem de autocarro até Ferragudo. Quando se sabe que um dia de trabalho nas conserveiras valia 12$50, percebe-se melhor porque razão andar a pé ou comprar um chocolate não eram questões de opção.


Quem chegou até aqui pode ser levado a pensar que esta retrospectiva é um exercício de saudosismo. Poderia sê-lo se tivesse enveredado pela faceta romanesca. De facto, os bandos das raparigas cantando pela madrugada estrada abaixo ficariam bem num filme de época e sobre eles poder-se-iam desenvolver interessantíssimas efabulações sociológicas que valorizassem o sentido do grupo ou da família ou do convívio. Mas a verdade nua e crua é que o faziam por mera necessidade: caminhavam porque não tinham com que pagar o autocarro e faziam-no aos molhos porque malucos sempre os houve e a falta de segurança não é um invenção da modernidade.


Também não pretendo demonstrar aos queixosos do costume que houve mudanças efectivas e positivas na sociedade portuguesa num espaço de tempo relativamente curto. Neste caso porque seria tão fácil fazê-lo que se tornaria demagógico.


A minha questão é outra e tem a ver com atitudes: é que enquanto há quarenta anos se geria a escassez, hoje discute-se a distribuição da abundância.


Neste processo, o conceito social do que é essencial alterou-se radicalmente. Ao ponto de ter passado a incluir nessa imensa lista de compras as latinhas de comida especial para os gatos obesos que habitam os apartamentos da nossa urbanidade individualista e hedonista. E não parece que como sociedade estejamos atentos a todas as implicações da deriva desta opção pelo acessório.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Um Povo do Caraças!

Na desdenhessssss da igrejinhaaaaaa...
Q’ está sozinhaaaaaaaa
Além na serraaaaaaaaa….

Pôs aquela engreja éééé…
a nossa fééé…
na nossa terraaaa !!

As ra-pa-rigas prendadaaas…serããã bêjadaaas…naquela engrejaaaa….
há - um – di-tadeee – que - diiiz…serás feliiiiz…pa - toda a vidaa!!

A noite corria cerrada quando a cantilena me rompeu o sono. Percebi-a vinda de cima, do lado da Vila. Mais perto, o coro de vozes apressadas tornou-se inteligível. Mas poucos minutos depois, extinguiu-se para lá da curva da recta de Vale Deus.

Olhei para o mostrador luminoso do enorme despertador cujo tiquetaque me tinha martelado o sono naquela primeira noite algarvia. Marcava 4.45 de uma madrugada de Janeiro e geada.

Ainda meio estremunhado, percebi passos cuidadosos que deslizavam pela casa e uma luz tremeluzente, provavelmente do fogão a lenha que se acendera na cozinha. Afinal o dia ali começava ainda de noite. Se era essa a regra da casa, haveria que viver com ela e saltei para fora das mantas com a curiosidade sedenta pelas coisas misteriosas que se preparariam na escuridão.

Há quarenta anos, enquanto o meu avô araçoava o gado, a minha avó preparava-lhe à luz do petróleo as sopas de leite do mata-bicho e o cesto com a marmita dos carapaus alimados, a meia garrafinha de tinto e o restante avio para a jorna de poda que iria romper com o sol nas areias da Caramujeira, a uma hora de trote, Norte e solavancos da galera.

Ao romper do sol, teriam também as operárias conserveiras das fábricas de Ferragudo de pegar ao trabalho. Eram delas as vozes que cantavam sincopadas pelos passos apressados que saíam a pé de Lagoa a meio da madrugada, chovesse ou não, para percorrer os oito quilómetros da distância. Largavam ao pôr-do-sol, chegavam a casa noite cerrada e na madrugada seguinte voltavam ao mesmo, a menos que não houvesse peixe, e isso ninguém queria, pois nesse caso não havia trabalho e não havendo trabalho não havia dinheiro e sem dinheiro havia muitos dias em que o jantar era a única refeição do dia, com meia sardinha frita e um naco de pão a cada um e um prato de sopa de papas de milho para todos.

Nesse ano o tempo até andava a correr de feição, não faltara trabalho e embora a paga fosse a miséria do costume, não havia contas no prego e a consoada não se passara na míngua habitual.

Hoje, quarenta anos depois, discute-se a obesidade infantil.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Lágrimas Negras


Há uns anos atrás duas algarvias marafadas puseram-se à conversa de volta de uns carapaus fritos com arroz de tomate.

Uma, andava com vontade de fazer nas escolas alguma coisa de educação ambiental que não fosse a estafada cantilena dos três erres; a outra, marinheira inveterada, andava danada com o tráfego marítimo ao largo do Cabo São Vicente.

Sabia-se que muitos dos imensos navios que por ali passam diariamente atalham caminho para poupar umas milhas e cruzam o Cabo à vista de terra. Qual o problema? Bem…se com mar de sudoeste um dia um deles com uma carga mais complica tem uma simples avaria nas máquinas, é mais que muita a probabilidade de se estatelar contra uma falésia antes que um rebocador de alto mar lhe acuda. E o espectro de uma maré negra no Algarve dispensa considerações.

Precisava-se afastar o corredor marítimo e controlar o tráfego. Mas não havia meios para isso. Seriam precisas umas estações especiais denominadas VTS. O poder andava distraído com outras coisas e não se vislumbrava solução. Que fazer ?

Conversa puxa conversa e a ideia nasceu: um projecto escolar liderado pela própria Direcção Regional de Educação do Algarve iria usar a expressão artística para sensibilizar as escolas e as respectivas comunidades para o problema do tráfego marítimo ao largo da costa algarvia e para a necessidade de o monitorizar e afastar.

Chamaram-lhe Operação Lágrimas Negras. Arregaçaram as mangas e ao fim de dois anos tinham entregue ao Presidente da Assembleia da República uma petição com trinta e três mil assinaturas que obrigava o Parlamento a discutir a questão em plenário.

Depois dos trâmites habituais, uma proposta de lei com base nas premissas da petição foi votada em plenário e aprovada por unanimidade. Sete anos depois os VTS estão construídos, equipados e prestes a entrar em funcionamento, prevendo-se a sua inauguração para o início do próximo ano, e quem quiser saber mais sobre isto é procurar no site da DREAlg.

Vem isto a propósito do quê ?
Por um lado, para fazer um post com algo positivo como há muito me reivindica a Matilde.

Por outro lado, para mostrar que, neste país onde toda a gente se queixa de tudo e de mais alguma coisa, afinal sempre existem caminhos para ir resolvendo os problemas que por aí proliferam. Parece mesmo que o exercício da cidadania até é viável e profícuo. Mas, claro, dá trabalho!
De facto, é muito mais fácil blogar queixumes sobre os impactos que eventuais parques eólicos terão nas paisagens do parque de Montesinho, ou que as barragens terão no rio Sabor, que procurar soluções para resolver as questões envolvidas. Ora é nestas coisas que a rés-pública se afirma ou não. Sendo certo que quando em democracia nos demitimos colectivamente do exercício da cidadania, a exigência de uma governança iluminada, tipo Rei Sol omnisciente, não é só incoerente - é no mínimo ridícula.

Conheço outros bons exemplos de resultados concretos de iniciativas de cidadania promovidas ao nível local, que é desde logo onde elas fazem mais sentido porque interferem com a vida concreta e diária das pessoas, seja no prédio de habitação ou no local de trabalho. Sou dos que não percebem porque é que um prédio onde habitam quatrocentas pessoas necessita de vir ao fim de um ano reclamar no telejornal das treze porque a respectiva CM nunca mais lhes arranja o jardim de duzentos metros quadrados que existe na frontaria! Quer dizer, perceber eu até percebo, basta olhar para o prédio e ver que cada marquise tem a sua parabólica particular.

O problema é que além de individualistas até à raiz dos cabelos, culturalmente precisamos de locomotivas para movimentarmos algo mais que a língua, pois a inércia do nosso comodismo pesa muito. E locomotivas há poucas disponíveis. Até porque se cansam de ser apedrejadas sempre que tentam pôr em movimento os combóios do corporativismo há muito imóveis nas linhas. Para esses vagões de reclamações inacabáveis, é mais fácil ficar em frente da TV mandando umas bocas ao ministro que estiver mais à mão porque não foi ber se as tomadas do Tribunal da Boa Hora tinham corrente, carago !

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Papillon



O Senhor do laço era Juiz. E estava visivelmente agastado. Em directo para o telejornal responsabilizava um Director Geral pela falência do equipamento de som do seu Tribunal. Consequência deste inaceitável acidente: supostas gravações de depoimentos de arguidos, testemunhas e outros intervenientes em acções em curso no Tribunal da Boa Hora, afinal…não tinham ficado registadas !!! Logo de seguida, um distinto Causídico não se inibiu de exigir a “cabeça” do próprio Ministro da Justiça como única forma de dirimir esta inaceitável ocorrência. A peça terminava com o Ministro, him-self, a dar conta das diligências para substituir equipamentos eventualmente obsoletos em uso nos tribunais.

Pasmei ! Mas como estou muito habituado a pasmar sozinho, ocorre com frequência duvidar do meu entendimento das coisas. Por isso peço a colaboração dos leitores para ver se conclui bem.

Então vamos lá a ver se será assim: os funcionários dos tribunais responsáveis pelo registo das sessões, não testam nem têm que testar os equipamentos antes de os iniciar; esses testes de gravação, também não são feitos no fim dos depoimentos, como não são feitos no fim do dia, ou sequer da semana; os superiores hierárquicos desses funcionários, entre os quais os Senhores Doutores Juiz, não têm nada que se preocupar com essas ninharias; e efectivamente os únicos responsáveis por verificar o normal funcionamento dos equipamentos e eventualmente também a existência de corrente eléctrica nas tomadas, são, nada menos, que um Director Geral e o Ministro da Justiça..

Agora, sim, entendo porque funcionam mal os tribunais: é o Sr Ministro da Justiça que se dispensa indevidamente de comparecer pessoalmente à abertura e fecho das sessões para testar in loco se a merda dos gravadores gravam ou não !

È isto, não é ?
Não ?!
Desculpem lá …Quem o disse era um Sr Doutror Juiz!Falava na televisão, falava bem e até usava papillon e tudo !!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Liberdade e ética democrática

Sabe-se que a conflitualidade é inerente á vida, e depende apenas de dois factores : proximidade e tempo. Ponham-se dois individuos fechados dentro de uma sala e dê-se-lhes algum tempo que chegará o dia em que ao bocejo de um responde a chapada do outro.

Como é que os seres que necessitam de viver em comunidade respondem a este primarismo? De uma forma simples: hierarquia e ordem ! Para o efeito criam-se formas de governo e instituições que estabelecem regras para gerir a conflitualidade em bases tais que esta não interfira com os grandes desígnios que essa comunidade, ou alguém por ela, escolheu para o seu futuro.

Ainda assim, a sociedade em funcionamento gera tensões. E alguns modelos sociais incorporaram mesmo soluções para funcionarem como válvulas de escape dessas tensões permitindo a evolução do modelo com o mínimo de rupturas. É o caso do modelo democrático em uso nalgumas sociedades. Nesse modelo, o estatuto de oposição e as eleições periódicas, funcionam ao mesmo tempo como regularizador e elemento de catarse colectiva, com o óbvio intuito de potenciar os ajustamentos em detrimento das rupturas.

No caso muito concreto do actual modelo social Português, penso que poucos países poderão invocar um paradigma tão de acordo com os pressupostos centrais do conceito de Desenvolvimento como a nossa Constituição. O quadro legal que ela originou estará longe de ser perfeito mas também não se pode dizer que seja mau.

Mas não é por estarem bem definidas e cartografadas áreas de reserva agrícola nacional, de leito de cheia , zonas húmidas ou outras reservas, onde a construção só se pode realizar no quadro dos regimes de excepção normais num sistema que não se pretende draconiano, que não se continua a construir nesses espaços condicionados como se tudo fossem excepções. E os exemplos multiplicam-se porque a imperfeição dos sistemas é inerente à imperfeita condição de quem os usa e os gere - pessoas !


Mas que tem isto a ver com liberdade ?

A resposta dá pelo nome de governabilidade. Não há desenvolvimento possível em regime democrático que prescinda de cidadãos livres, conscientes, empenhados, participativos, mas...governáveis. Isto é, que depois de terem participado nas instâncias próprias dos processos de decisão, sejam capazes de exercer os seus deveres de cidadania.

Numa sociedade aberta e plural, a essa capacidade de cada um individualmente ser capaz de assumir os seus deveres de cidadania e entre eles os limites da sua liberdade de forma a não interferir com a dos outros e com o projecto social em que se insere, pode-se chamar ética democrática

Não há equidade social nem sustentabilidade que se aguentem se individualmente não formos capazes de nos respeitarmos mutuamente, às instituições e aos seus agentes, ao meio em que existimos, à cultura a que pertencemos, às culturas com que convivemos.

A quantidade e a qualidade da informação que a escola seja capaz de implantar nos seus alunos sobre estas matérias, vale nada se eles não incorporarem o essencial, uma vez que a ética não se decreta:apreende-se e reproduz-se! Mas admito que será difícil a um aluno de uma escola cujo presidente do órgão de gestão tem por hábito apresentar-se em traje de praia para reunir com os seus superiores hierárquicos, que atende indiscriminadamente o telemóvel esteja onde estiver, ou cujos professores apupam publicamente o Ministro da Educação com mimos irreproduzíveis, apreenda o significado de coisas tão abstractas quanto essenciais, como auto-limitação e fronteiras da liberdade, e as aplique naturalmente quando tal for requerido, na escola ou fora dela.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Liberdade e auto-limitação

Tal como sucede na moda, de tempos a tempos os discursos também sentem a necessidade de se vestir de novas roupagens.

Um bom exemplo poderia ser a leitura comparada de um programa eleitoral de um candidato autárquico de há trinta anos e de agora. Antes, prometia construir e melhorar estradas. Hoje, diz que irá "concretizar novas acessibilidades e requalificar as existentes".

É evidente que daqui não vem mal nenhum ao mundo, desde que se saiba que no tempo dos Romanos já se construíam e arranjavam estradas, apesar de na altura, ao que suponho, lhes chamarem "vias", para que não se perca demasiado tempo a reinventar uma função que, independentemente do nome e das características, já foi patenteada.


Ora a ideia de progresso social no sentido de um modelo de sociedade justo e duradouro, não é nova nem é de agora.

Roma preocupou-se com a sustentabilidade, JCristo com a equidade. E palavras à parte, entre o paradigma do que hoje se apresenta como "desenvolvimento sustentável" e o ideário Evangélico, de Rousseau ou de Marx, as diferenças não são assim tantas. Quando os patronos dessas concepções falavam numa "sociedade sem classes" , de " igualdade e fraternidade", ou recomendavam que se devia " amar o próximo como a nós mesmos", é evidente que estavam a elaborar sobre preocupações de equidade social

Para o conceito de "desenvolvimento" faltava-lhes ainda a noção de sustentabilidade ? É possível que sim. Mas quando os Romanos divulgaram pelo Império de há dois mil anos regras de afolhamento e rotação de cultivos, poderiam não estar preocupados com a equidade social, mas seguramente estavam preocupados, e muito, com a sustentabilidade do seu modelo económico, cuja organização agrária perdurou até á revolução industrial. Do mesmo modo quando Mao impôs aos chineses uma política draconiana de controlo de natalidade é evidente que estava preocupado com a sustentabilidade duma sociedade que soçobrava a uma tremenda pressão demográfica.

Mudam os tempos, os contextos e as formas de os exprimir. Mas a realidade não muda assim tanto !

Isto para dizer que não me parece que os escolhos ao desenvolvimento estejam na pretensa novidade dos problemas ambientais, ou na insuficiência dos velhos paradigmas. Com uma e outra questão, enchem-se hoje resmas de papel e debatemo-nos em intermináveis diálogos de surdos. Mas o problema, digo eu, é, sempre foi, também de prática política. E em regime democrático tem sobretudo a ver com a leitura e o uso que cada um de nós faz do seu direito à liberdade. Dela, dizia Solzhenitsyn que era um exercício diário de auto-limitação informada.

Mas será assim ?



segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

E depois, Senhor Doutor ?




- Portanto, agora, vamos fazer um cateterismo…
- Vamos fazer o quê, Sr Doutor ?!...
- Um cateterismo…um exame…
- Que serve para…
- Para verificar a extensão das lesões !
- Ahhh…e…e… depois, Sr Doutor ?
- Depois, ficamos a saber exactamente o que aconteceu…
- Sim, claro, mas e depois ?
- Bem…depois…-
e o cardiologista olha-me como se me pedisse ajuda, mas eu retribuo um olhar que corrobora a pergunta: “sim e depois ?
- Bem…de facto !
- Então nesse caso, se o Doutor não se importa, ficamos assim, não achas filho ?

Claro que acho. Parece-me que faz sentido. Sem depois, ou seja, sem nada a acrescentar ao prognóstico, para quê detalhar o diagnóstico ?!

De resto um breve olhar de relance pelas macas que se acumulavam pelo SO do Hospital bastava para perceber inúmeras situações sem “depois”, de volta das quais a medicina se atarefava a adiar um ponto final inevitável, trocando o conforto da morte pelo desconforto de dias sem dignidade nem sonho.

-
Repare …é que …o senhor fez um enfarte, é uma situação grave, uma situação de risco, e não posso dar-lhe alta nestas condições de prognóstico reservado…no mínimo terá que permanecer em meio hospitalar não vá ocorrer alguma recaída…
- Recaída, Sr Doutor ?! Então eu tenho 76 anos, dois AVC’s, diabetes, hipertensão, já vou no quarto enfarte, e acha-me com cara de quem está preocupado com uma “recaída”?!
-…
- Sabe o que lhe digo…falta-me tempo para o que ainda tenho a fazer…e o de que disponho, seja ele qual for, não é seguramente para o passar aqui consigo!! Ahaha… faça o favor de não me levar a mal por lhe ter dito isto, mas é a verdade….
-…
- Portanto, Sr Doutor, queira tomar as providências necessárias para que eu possa assumir as minhas responsabilidades…

Enquanto ele se veste e barafusta, olho em redor e confirmo o peso da inutilidade e a desumanidade de esforços e técnicas que levam a lugar nenhum.

-Juramento de Hipócrates em defesa da vida?! Está bem ! Mas é isto a vida?
E aponta com um gesto de cabeça para alguém no outro lado da enfermaria ligado a tudo quanto era máquina, obrigado a respirar, quando a única coisa que queria e que fazia sentido era …parar.
Mas...quem diz basta ?

De repente tornou-se inaceitável “morrer de velho”. Morre-se de pneumonia, enfarte, avc, colapso renal, Mas quando se tem mais que uma certa idade o que simplesmente acontece é que a probabilidade de falência dos sistemas que nos mantêm dentro da esperança média de vida, aumenta. A partir daí tudo pode desmoronar a pretexto de coisas ínfimas porque, simplesmente, ninguém é imortal. E em vez de se cultivar a morte como parte do processo de vida, em vez de se cultivar a vida como um exercício em que o bem-estar também importa, cultiva-se a imortalidade e aborda-se a doença como se ela fosse mera questão técnica. Não é !

- Bem, sabes o que me apetecia ?
- Um duche ?
- Não ! Um sargo grelhado !
- Oh, homem… vamos a ele !

Será que de repente a mortalidade se tornou inaceitável? E vamos esticar a corda até onde? Cateterismo? Sim, claro. Uns buracos nos pulsos e nas pernas, umas mangueiras pelos canos e um gajo à rasca , para quê ?! Para nada !Porque não há possibilidade de reparação de “canalizações” dentro de quadros clínicos de grande vulnerabilidade. Seria a mesma coisa que tentar retirar a ferrugem de dentro de canos galvanizados com muitos anos. Limpam-se e rompem-se. Remenda-se aqui, estraga-se ali. E entretanto os dias pasmados e as noites sem dormir porque é impossível à lucidez abstrair-se do sofrimento dos que ao lado gemem, choram, obrigados a sobreviver para lá de uma vida já vivida.

- Quer dizer: quando eu era do “contra” e a PIDE me prendeu, ninguém me torturou, e agora que sou da “ situação” é que além de me prenderem outra vez ainda me querem torturar?! Ahahah! Era só o que faltava !!!

O termo de responsabilidade foi assinado, a alta também, e saímos à procura do sargo grelhado.

-
Insonso para mim, se faz favor ! Ahah!…Quando voltas cá, filho ?
- Em meados de Dezembro…
- O ano passado não chegamos a ir aos sargos…
- O que não faltam são sargos…
- Podem faltar é os dias …
- Até parece que nunca fomos à pesca à noite !
- Ahahah! Sabes o que não faltam ? Parvos! Ahahah! Cateterismo? Recaída ? Já vale a pena ! O pessoal perdeu o juízo !
- Ahahah!
- Hum…este sargo está uma delicia ... pena que tenha de ser insonso… mas… oh Zeca! –
vira-se para o dono da Taberna da Maré, e dispara
- Ontem deram-me uma sopa que você devia ter visto… eu nunca tinha visto nada assim…nem na tropa !! Queres mais sal, filho ?

sábado, 15 de dezembro de 2007

Bali !


Se entendêssemos linguagem ovina, seria natural interceptarmos diálogos deste tipo:

- Desculpa…não entendi…que foi mesmo que baliste ?
- Ah, nada de especial….apenas bali…

Portanto, em circunstâncias ovinas, balir pode equivaler apenas ao convencional suspiro na linguagem dos humanos.

O que se passou durante a semana em Bali foi no entanto uma balido especial, que é aquele que uma vez enunciado tem como corolário que todo o rebanho parte de imediato atrás da ovelha que baliu em roteiro por novos pastos cheios de verduras.

Quem já se habituou a estas coisas não estranha. Mas estranha que continue a haver ingenuidade ovina em dose para acreditar que algo de diferente pudesse ocorrer.

Basicamente, além dos dramas de faca e alguidar que dão sempre azo às deixas préviamente encenadas pelos actores já esperados, poderia dizer-se do resultado que a montanha pariu um rato. Mas, olhando com mais atenção, facilmente se verificará que ratos foram os que redigiram o suposto acordo, pois esqueceram-se de tudo o que deveria merecer assunto menos do que realmente interessa: queijo, muito queijo, para continuar a discutir o que já se sabe: ou há queijo ou o Árctico derrete já amanhã e no dia seguinte acordamos com as pantufas de molho - global.

Aliás, há pouco tempo, mesmo aqui em Lisboa, o senhor De Boer já tinha dito sem papas na língua que o “investimento seria a base do sucesso” no combate ao aquecimento global e como “só havia uma oportunidade” quanto mais dinheiro melhor.

Mas dinheiro para quê?

Explico.

Desde logo para pagar as contas da romaria a Bali, para organizar a próxima, e para plantar as coitadas das árvorezinhas que terão por incumbência digerir o CO2 que se solta nessas andanças.

Depois, para manter em funcionamento o IPPPCCCC, que após ganhar o Nobel viu o seu cachet naturalmente valorizado.
Segue-se a parte do Dr. Pina Moura por conta das eólicas que a Iberdrola gostará de instalar para evitar o aquecimento global do Darfur.

Se sobrar algum, por favor não se esqueçam do Sr. Carlos Pimenta que também é gente, além de neo-verde desde sempre, e também vende moinhos de vento.

Portanto, do que se tratou mesmo em Bali, foi de uma épica quixotesca em prol de moinhos de vento. O Dom Quixote já sabemos quem foi. Como ainda não me chegou o genérico com o elenco, não sei ao certo quem fez de Sancho Pança. Mas sei muito bem quem fez de Rucinante!

Quanto a todos nós, mais uma vez fizemos apenas de figurantes ovinos e nessa condição, eventualmente, balimos, balimos, balimos...


O hábito não faz o monge ?!


Respeitáveis bloguistas fizeram o favor de deixar nos meus posts anteriores algumas notas cuja relevância justificam o que se segue.


Começo por “dar a mão à palmatória”.


Claro que ciência e tecnologia não são a mesma coisa. E quem me lesse em diagonal poderia ser levado a interpretar o que escrevi como um género de manifesto anti-ciência, que não é. Aceito pois de bom grado sublinhar a distinção, desde que feita a ressalva igualmente assinalada pelos meus ilustres comentadores de que há áreas de razoável sobreposição. Em muitos momentos da sua procura dos porquês, a ciência precisa de produzir os instrumentos sem os quais não atingiria o patamar seguinte, e muitas vezes antes de o conseguir tem de desvendar outros porquês, sem os quais a técnica não conseguiria os resultados que lhe são pedidos. Daí que as veja pelo que são no quotidiano: duas faces da mesma moeda!


Ainda assim, claro que importa manter alguma clareza nos conceitos sob pena de darmos origem a intermináveis diálogos de surdos. E, lá está, como dizia o Alf, “o hábito não faz o monge”, mesmo que todos vistam a mesma bata branca. No entanto, o provérbio que o Alf usou para ilustrar a necessária separação de águas, pode ter também outra leitura.

Explico-me.


Se eu, leigo, tiver uma fotografia de grupo com um lote de senhores todos de hábito, como sei se alguns deles não são monges? Na falta de informação acessória, assumirei naturalmente que todos o serão, não o contrário. Ora no mundo do conhecimento em geral, o que hoje se passa é que não há “cão nem gato” que não queira ficar na fotografia com o hábito de cientista. E quem está de fora e olha para as figuras alinhadas na escadaria da imensa catedral da ciência não tem como saber quem é quem, e na dúvida irá assumir que todos o são.


É claro que nas organizações monásticas sempre houve monges mais e menos cumpridores dos seus deveres. Mas, que se saiba, também sempre competiu aos respectivos abades meter ordem no convento. Ora os abades do conhecimento, se é que os há, parece que funcionam numa espécie de regime de proteccionismo corporativo. Entre eles, esfolam-se se necessário para ficarem na fila da frente da fotografia. Mas quando importa separar o trigo do joio naquilo que do seu trabalho transpira para o exterior, cerram fileiras e aqui d'el rei quando um herege tresmalhado ousa questionar o mérito do que se publica nas sebentas assinaladas.


A sociedade em geral não pode, por óbvias razões, estar tão bem preparada quanto a própria comunidade do conhecimento para percepcionar a valia dos trabalhos de vanguarda que aí se desenvolvem e que nós pagamos, directa ou indirectamente. Se alguns deles se vendem de barato, compete antes de mais aos outros criar os mecanismos necessários para gerir os danos, pois não me parece que a exigência social relativamente ao papel que cada um de nós tem na sociedade e nos acontecimentos em que participamos possa ser equiparada. Seja pela posição ocupada na hierarquia do poder, seja pelo conhecimento de que dispomos em relação aos problemas, alguns de nós têm responsabilidades acrescidas. Convenhamos que de um Padre da Igreja se espera uma regra muito mais próxima do ideário Cristão que do comum frequentador da Missa domingueira. Ora, por via do imenso poder que lhes passa pelas mãos, aos homens e às mulheres que circulam entre a ciência e a técnica, não podem ser pedidas responsabilidades sociais idênticas à maioria que se limita a ter com uma e outra uma relação de meros utilizadores, ou não será assim ?


Portanto, para segurança de todos e para que ninguém se sinta defraudado, os bons cientistas, que os há, que façam o obséquio de tirar o carapuço aos que se perfilam ao seu lado para a Kodak, para ver se ao menos assim a gente percebe quem é quem. E se não for pedir muito, que o façam com modos e com método, pois a boa educação ainda está isenta de imposto e dar a razão a quem berra mais, não parece critério que se enquadre nos pressupostos do método.


O hábito não faz o monge? Pois em rigor não! Mas, Caro Alf, pelo menos aqui na Terra, para quem não for versado em teologia, a diferença não é nenhuma.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Ciência em Contra Ponto - VI

Ponto Final

Pratts, numa das inúmeras vezes que deu voz a Maltese, confronta-o com uma situação em que, regressado de longa viagem, todos se espantaram de o ver, pois tinham-no por morto. Impávido como sempre, Corto comentou a situação nos seguintes termos: “Como é evidente, a notícia da minha morte foi manifestamente prematura!”


Não consigo deixar de recordar esta frase quando ouço ou leio alguém defendendo que a única alternativa à ciência é o obscurantismo. O caso é que a espécie superou a prova darwiniana de milénios de suposto “obscurantismo” antes de parir a ciência, e não se extinguiu! Portanto, parece-me pouco provável que isso sucedesse se amanhã eventualmente a ciência deixasse de estar entre nós.


É evidente que não falta quem argumente à La Palisse, como faz Sagan, ao aventar que,” apesar de tudo, sem ciência não teríamos melhorado a esperança média de vida nem a mortalidade infantil”. De tão óbvia este tipo de constatação roça a demagogia, até porque reporta para uma situação impossível de contestar, uma vez que ainda não há como regressar à história e refazer agulhas para mudar de via o caminho civilizacional.


Assim, no percurso que nos trouxe até aqui, feito de forças e fragilidades, de muitas coisas boas e outras nem tanto, por entre comprometedoras dependências, naturais contradições e desnecessárias imodéstias, a ciência criou-nos um quartinho de ideias arrumadinhas e etiquetadas para nos facilitar a vida. E, em parte graças ao estatuto de imunidade que a ciência conquistou, a generalidade de nós vive segundo a noção de que este é o melhor dos mundos possível.


Pessoalmente aceito que seja prático. Sei, por experiência, que é mais fácil encontrar a pasta de dentes que costumo usar num hipermercado que na mercearia da Dona Isabelinha.


Mas se um hipermercado se pode definir como um conjunto de géneros alinhados, ordenados e devidamente etiquetados, já um conjunto arrumado de ideias etiquetadas não basta para garantir um futuro. Para isso, além de respostas para explicar o mundo, é necessário um paradigma e ainda um sistema de controlo sobre as ideias e a forma como elas interagem, pois ao contrário do que acontece com as pastas de dentes nos hipermercados, as ideias são como as pastas de dentes na Dona Isabelinha – estão sempre a mudar de marca, de sítio e por vezes até trocam de embalagem.


Esta tríada, justificação - paradigma - sistema de controlo, é uma definição possível para uma ideologia, e se o Marx sonha que o reescrevi assim de certeza que me vem assombrar o resto da existência.


As ideologias, quaisquer que elas sejam, têm em comum o facto de se alimentarem das suas próprias certezas. Marx identificou-lhes também a propensão para ocultarem por detrás de uma face externa de idealismos de fácil adesão um sentido de devir desenhado pelas classes dominantes em cada época. E não há melhor lugar para as difundir que a escola.


Se olharmos para a história à procura de um sistema que revele uma capacidade inata de se metamorfosear, esse sistema responderá pelo nome de capitalismo. Por natureza vazio de moral, o capitalismo tem revelado uma tremenda capacidade de se adaptar a quaisquer circunstâncias. Ocasionalmente perde batalhas, é certo, mas rapidamente transforma as fraquezas em vantagens para manter o controlo da guerra. Nesse processo, adapta vocabulários, muda de roupagens e de instrumentos, mas não muda de dinâmica, tentando potenciar a seu favor até as ideologias. E a ciência como potencial ideologia, capaz de justificar o mundo, projectar o futuro e controlar o processo, aí está de bandeja pronta a ser usada. Nisso tem tudo a seu favor: sabe de onde viemos, garante-nos o melhor dos mundos e assegura que sabe como chegar lá. Tudo com o selo de garantia do “método” e uma capacidade de difusão que deixaria fulos de raiva os Padres Missionários.

Sabendo-se isso, importaria perceber se, quando a ciência reivindica mais ciência nas escolas, na prática não estará a disponibilizar-se para, qual Cavalo de Tróia, funcionar como sistema de controlo e reprodução ideológica da versão “ novas oportunidades globais “ do capitalismo vigente.

Aparentemente, o deslumbramento de proeminentes actores científicos perante a magnitude das conquistas alcançadas, corre o risco de lançar a ciência numa deriva ideológica de crença de cariz totalitário, quando, ao contrário das ideologias, as ciências têm a obrigação de alimentar as incertezas e de explicar o mundo com a capacidade de o questionar, pois a quem vai andar por aí durante muitos anos interessa muito mais aprender a pescar do que receber em dote uma certa dose de bacalhau.

Poderá argumentar-se que o sentido da assimilação dos conhecimentos também depende da pedagogia que veicula a informação que os suporta. É verdade. Mas, como se sabe, ainda não se encontrou uma via que permita informar sobre a ciência com a laicidade equivalente à razoavelmente já disponível para a abordagem do religioso.

Quando o ensino da ciência, como o ensino do que quer que seja, acontecer antes do desenvolvimento de um espírito crítico bem estruturado, ele corre o risco de desaguar numa visão tão dogmática do Mundo como outro fundamentalismo qualquer.

É exactamente por isso e pelas atitudes predominantes no mundinho das ciências, profusamente contaminado por inequívocos tiques de arrogância, que concluo com sérias reservas sobre o desenrolar dos próximos capítulos.

Pessimista?

Não!

Mas, como dizia o tal meu velho amigo que não gostava de ver “meninos vestidos de parvos comandados por uns parvos vestidos de meninos ” um “ pessimista é apenas uma versão bem informada de um optimista”.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Ciência em Contra Ponto - V

O Princípio da Incerteza

Um velho amigo meu tinha de certas organizações juvenis ideias nem sempre muito abonatórias. A desaparecida Mocidade Portuguesa, por exemplo, era algo que ele classificaria como “um bando de meninos vestidos de parvos comandados por alguns parvos vestidos de meninos”.

É evidente que haveria nos nossos dias óbvios equivalentes desta leitura, mas como o propósito não é ferir a susceptibilidade de quem quer que seja, prossiga-se.

Sabe-se que qualquer sociedade tende naturalmente a estruturar-se em organizações, umas institucionais outras informais. Delas, a maioria consolida-se em redor de um campo central de valores mais ou menos definidos que norteiam ou deviam nortear a sua actuação. Assim é na religião, na política, no trabalho, no futebol.

É natural que num momento qualquer as organizações sejam acometidas de uma necessidade reprodutiva do tipo biológico, o que é uma forma tão legítima como qualquer outra de garantir a expansão e perpetuação dos valores que defendem. E logo aparece quem se disponha a vestir-se de menino e a meter mãos à obra.

Ora a juventude é campo fértil para estas sementeiras. Como em terreno virgem, qualquer ideia apelativa vinga sem dificuldade nessas várzeas do futuro.

Mas a juventude não tem na fertilidade a sua única característica. Além de fértil é também voluntariosa. Por isso as Juventudes Hitlerianas foram maior obstáculo à progressão do Exército Vermelho em Berlim do que as profissionais e competentes SS. E nem Mao conseguiu ser tão maoista como a sua Guarda Revolucionária. E isto porque, apesar das qualidades, falta naturalmente à juventude algo que advém da sua própria condição imatura: Vida, para separar o trigo do joio. E tem sido esta a porta de entrada para a mais variada gama de oportunismos.

Até aqui, nada de novo. Entretanto as ciências foram entrando pelas escolas e vamos lá a ver se consigo sair eu disto sem me espalhar.

A entrada das ciências na escola é uma mais-valia inegável. Tanto mais que quando elas surgiram trouxeram consigo essa capacidade ímpar de questionar as verdades assinaladas e assim ajudaram a desmontar muitos mitos regimentais. No entanto, pouco a pouco, sem que ninguém tenha percebido como nem porquê, a essência da coisa científica como metodologia fundada numa certa noção de razão e lógica, passou a surgir nos compêndios como a detentora, não apenas da única chave do portão de acesso à verdade, mas da própria verdade.

A partir do momento em que as réplicas plásticas dos dinossáurios miniaturizados à escala entram no quarto de brinquedos, o que acontece é que se está a abrir uma certa janela por onde a criança irá olhar para o mundo e não outra. Desde logo, o T. Rex passará a ter uma existência tão concreta e definida como uma vaca qualquer, igualmente miniaturizada, apesar de ser mais provável encontrar uma réplica real desta a pastar no Parque Eduardo VII que o T.Rex in persona. Na altura, o que a criança não pode compreender, é que há uma diferença fundamental entre reproduzir algo que existe a três dimensões e recriar uma criatura que nunca ninguém viu a partir de um dente e uma falange fossilizados. E a diferença entre realidade e teoria científica é difícil de explicar quando o anúncio da “Mimosa” passa no intervalo do ataque dos velociraptores do Jurassic Park II. Mas entretanto consegue-se o essencial, a saber, uma atitude de total disponibilidade para acreditar no Big Bang com a mesma naturalidade com que se acredita no funcionamento do aparelho digestivo de um ruminante. É o paradoxo do princípio da incerteza a criar ele próprio as crenças fundadoras de novos mitos.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Ciência em Contra Ponto - IV


O Princípio da Insustentabilidade

Nos tempos que correm um discurso que se queira minimamente actual e politicamente correcto deve incluir sempre duas palavras: desenvolvimento e sustentabilidade. Contextualizadas ou não, elas devem estar lá.

É claro que falar de um desenvolvimento sustentável poderia ser visto como coisa redundante. Acontece que há já décadas que a sustentabilidade foi conceptualizada pela ecologia humana como estratégia indispensável na gestão da energia nas nossas interacções com o meio, e se eu já soubesse “linkar”, teria aqui uma oportunidade de ouro para o fazer a Odum (exacto, a Odum e não à Senhora Brundtqualquercoisa…) mas como não sei, adiante, antes que perca o ponto.

Se ali em cima escrevi “poderia” é porque a ênfase na “sustentabilidade” pode ser apenas uma forma de distrair as atenções de um enunciado incompleto.

Conceptualizar o desenvolvimento apenas como sustentável é como tentar demonstrar o teorema de Pitágoras sem os catetos do triângulo. No caso esses catetos dão pelo nome de ética e equidade social e também desde há décadas que incorporam o conceito, e aqui deveria ficar mais um link para o IRFED.

Esta volta toda foi para suportar um argumento difícil e que é o seguinte: a actividade científica não deveria ser alheia ao facto de que se tem alicerçado em dinâmicas que não só não contemplam preocupações elementares de gestão de energia, como a utilizam sem quaisquer pruridos pela total falta de respeito pelos direitos dos que a têm disponibilizado.

Os grandes avanços que a ciência tem registado nas últimas décadas não se podem dissociar da dinâmica intrínseca à civilização do petróleo. Claro que aqui o petróleo é também metáfora para dizer a dinâmica mais vasta do uso avassalador de recursos não renováveis. É verdade que não tem sido aos cientistas que tem competido a negociação dos preços a que se tem transaccionado o petróleo. Limitam-se a usar a energia e demais recursos que o sistema que integram compra baratos para com eles produzir investigação que de outro modo seria incomportável. Lá está, Openheimer limitou-se a conceber a bomba. Mas o caso aqui é ainda mais bicudo, porque tem sido sentada sobre o petróleo alheio que a ciência tem contribuído para impor a hegemonia do Ocidente.

Foi o petróleo que permitiu a agricultura industrial e a abundância indispensável para fazer ciência e criar a dinâmica daquilo a que os ilustres economistas chamam “potenciar os ciclos de valor acrescentado” e que é exactamente a mesma coisa a que qualquer colonialista chamaria simplesmente “explorar o preto”. O sistema era e é simples: o preço do trabalho na machamba nunca chega para saldar a conta de géneros que a cantina da machamba fornece em exclusivo. Quando a coisa se torna incomportável opera-se um “perdão da divida”, eventualmente a troco de uma hipoteca interessante, como por exemplo um direito de exploração vitalício de petróleo em off-shore. E a título de cereja no topo do bolo, oferece-se ainda uma magnânima bolsa de estudos científicos no Ocidente aos melhores cérebros locais que, claro, só serão devolvidos à proveniência se se revelarem improdutivos.

Como se sabe, estes processos apelidados de cooperação e desenvolvimento teriam muito maior valor semântico se adjectivados apenas pelo que são: enriquecimento próprio a troco do empobrecimento alheio, embora também haja quem lhe chame “empreendedorismo global”. O que não é politicamente correcto é dizer-se que a ciência é, tem sido, peça indispensável desta engrenagem, e por isso inestimável instrumento de estratificação social e geopolítica e determinante na gestão do status-quo da insustentabilidade vigente.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Ciência em Contra Ponto - III

O Princípio da Imodéstia

A dependência de agendas alheias mas poderosas e o beneficio de uma estranha forma de benevolência social, poderão ser factores que explicam e estruturam a sobranceira imodéstia com que a classe científica se relaciona com as restantes criaturas.

Instados a esclarecer as dúvidas dos supostos leigos sobre as suas supostas certezas, é com inusitada frequência que vastos sectores desta importante comunidade banalizaram como arma argumentativa a arrogância intelectual.

Fazem-no de duas formas.

A primeira é elementar. Sacam-se os galões de um intangível grau académico e debita-se com inenarrável desdém um lugar comum, pois o estado ígnaro do interlocutor mais não justifica. Exemplo: "Como Doutorado em Química digo que a homeopatia é uma patetice porque é um placebo".

A segunda é mais elaborada. Recorre às linguagens cifradas e citações em círculos concêntricos para explicar que os mistérios da ciência à ciência pertencem. Exemplo: “E=mc2 é a energia duma partícula massiva no seu referencial próprio. A expressão aparece naturalmente na formação do 4º vector–momento na forma tensorial com a métrica dum espaço de Minkowski. A necessidade de interpretar a componente temporal como energia segue da própria formulação tensorial da teoria.”

Seria de uma enorme injustiça dizer que os homens e as mulheres da ciência estão sós nesta propensão. Sabe-se que não é o caso, mas agora é deles que falamos.

Colocados perante este tipo de manifestações da sua própria arrogância, não são raros os casos dos cientistas que argumentam com o absurdo das falsas modéstias. De acordo. Mas embora a imodéstia não tenha necessariamente de ser arrogante, o caso é mais complexo e a razão é simples: a ciência não é infalível e também se engana !

Também na ciência o erro é algo que só a muito custo e a frio se reconhece, a menos que sirva como arma de arremesso para dirimir rivalidades internas dos seus protagonistas. Nestes casos vale tudo, quanto mais mediatizado melhor e a troco de pouco envia-se a ética para Ítaca. De resto, a história da ciência está bem recheada de erros trágicos, embora se saiba que o panorama seria ainda mais trágico se fossem revistos os critérios que definem o erro em ciência e a avaliação integrasse de forma mais abrangente os impactos sociais a que conduz. É que, lá está, não foi Truman quem concebeu a Litlle Boy.

Se o direito do cientista ao erro não merece grande contestação, já a atitude com que a ele reage é outro assunto. É que erros há muitos. Ora nem todos são meros enganos, simples produto de mundividências confinadas, ou resultado da urgência de gritar eureka e com isso conquistar um lugar visível nas prateleiras da história. Quando hoje se olha para o Mundo apercebemo-nos de inúmeras dinâmicas de catástrofe que têm na sua génese erros da ciência. Por isso, por todos os erros passados e futuros, a humildade deveria ter lugar obrigatório no método científico. Mas pelo que se tem visto, não tem !

Ciência em Contra Ponto - II

O Princípio da Dependência

A afirmação de que o conhecimento é um bem é das tais que geram consensos imediatos.

A tal ponto que é difícil contrariá-la mesmo quando se tem a ideia de que os consensos tendem a constituir-se como menores denominadores comuns às certezas do seu tempo.

Qualquer revolução triunfante tem como condição necessária a capacidade de remeter para um paradigma de melhoria facilmente aceite. Na primeira metade do século passado os ideais de justiça social tiveram esse efeito aglutinador no Ocidente. A partir da segunda Grande Guerra, no entanto, o american dream começou a expandir-se, instalou-se e chegou ao ponto de hoje poder ser considerado um paradigma global.

A ideia já de si atraente de que todos podemos ser ricos e famosos, foi em devido tempo proveitosamente banalizada pelos média. Na voragem permanente de novos conteúdos, os média aperceberam muito cedo o potencial da ciência e daí à promoção da figura do cientista como herói dos novos tempos foi um passo inevitável. De Che Guevara como símbolo do herói romântico, transitou-se rapidamente para Einstein como símbolo de modernidade.

Mediatizada, a ciência ganhou visibilidade mas perdeu isenção e independência. A interferência dos média na divulgação do conhecimento alterou necessariamente o próprio sistema da sua produção. O cientista super-star é o subproduto óbvio deste processo, a um tempo agente e vitima de uma dinâmica que alimenta e que dele se alimenta, criando-lhe por essa via pressões extra que os patronos sabiamente diluem organizando sistemas de recompensas de que o Nobel pode ser um excelente exemplo.

Neste processo a produção cientifica subdividiu-se. A menos mediatizável adquiriu estatuto residual e funciona em roda livre. Mas nem esta, nem a produção cientifica institucional, esta mais que nunca hipotecada a agendas de poder, podem reivindicar para si uma dinâmica de serviço a um paradigma central de bem comum.

A ideia de que a agenda da ciência não deve subordinar-se a um projecto social, procura com frequência argumentos na tese de que dificilmente se pode antecipar o bem que se pode encontrar para lá das fronteiras do que não se conhece. Mas como é evidente, esta tese soçobra perante a prática, onde pontuam todo o tipo de oportunismos ou omissões, pois torna-se dificil acreditar que as consequências do voo do Enola Gay tivessem sido um surpresa para Openheimer.
Desde a investigação espacial à farmacêutica, os lobbies de interesses que a ciência alimenta são intermináveis. Ela alimenta-os, eles promovem-na, ela justifica-os e eles pagam-lhe por isso. Assim, a recusa da ciência ao controlo do poder politico democrático, não é um atitude de independência. Ela deve antes ser lida como aquilo que efectivamente é: a recusa do poder económico que a controla a subordinar-se ao que quer que seja ! Voluntariamente ou não, é dessa agenda subliminar que a ciência é dependente!

Ciência em Contra Ponto - I

O Princípio da Desresponsabilização

A caricatura social do cientista continua delineada por traços de personalidade que remetem para um certo autismo. Pensa-se no cientista como alguém que vive dentro de uma realidade muito própria, alheio ao trivial e muitas vezes destituído até da elementar capacidade para interagir socialmente e resolver as coisas básicas do quotidiano.

É claro que toda generalização é abusiva e qualquer estereótipo é redutor. Mas o personagem do Prof Nasch que o Roussel Crowe personifica no célebre filme “Uma Mente Brilhante”, sendo apenas aquilo que é, é também a ilustração dessa ténue fronteira em que alguns "perdem o pé".

Claro que os cientistas têm de si próprios outra imagem. Quais paladinos da razão eles são os guardiões da lógica e do saber. A tal ponto que alguns não têm mesmo dúvidas de que são a luz num mundo de trevas.

Mais uma vez é evidente que nem todos os cientistas pensam isto de si. Mas há dias, uma ilustre química da nossa praça, ao invocar a “luminosidade científica”, ouviu uma de que não gostou. Houve quem, imagine-se, lhe retorquisse que por essa ordem de ideias então os habitantes de Hiroshima ainda hoje deveriam estar gratos à ciência e a Openheimer pela “luz”com que os retirou da “obscuridade”. Claro que se tratava de um provocação e a Senhora, naturalmente indignou-se. Mas fez mais que isso, considerando logo ali o que acabara de ouvir como um dislate de nonsense para acrescentar que se tratava de uma leitura objectivamente enviesada de factos históricos, rematando com a evidência pública de que fora o Presidente Trumam quem dera semelhante ordem!

É exactamente o subtexto desta resposta o motivo desta arenga.

E qual é ele ? O principio da irresponsabilidade social do cientista.

A ideia de que o conhecimento vale por si independentemente do uso que dele se possa fazer, está longe de ser pacífica. Apesar disso prevalece a ideia anexa de que quem o produz deve gozar de um estatuto especial de imunidade !

Mas o caso é que, ainda usando o famigerado exemplo da Litlle Boy, o Sr Openheimer, enquanto líder do Projecto Manhatan, não se limitou a desvendar os princípios científicos da energia atómica. Ele construiu e testou uma bomba. Não uma bomba qualquer – uma bomba de destruição em massa. E não há argumento de ingenuidade ou autismo científico que possa eximir um adulto de compreender o que estava em causa. Por menos do que isso foram outros condenados em Nuremberga, mas adiante.

Entre os exemplos actualíssimos deste tipo de derivas, podem referir-se os associados à engenharia genética, desde os OGM’s à clonagem. E nestas matérias já nem sequer estamos apenas a falar de um líder e de uma equipa, mas de uma dinâmica que de forma concertada tem vindo a prosseguir objectivos que estão bem longe de se poderem considerar inócuos.

Os cientistas também precisam de comer ? Definitivamente ! Como de resto qualquer mortal. É claro que quando as coisas são postas assim há sempre quem faça demagogia barata e recorde que já houve quem tivesse preferido morrer de fome a viver de barriga cheia como Kapo. Mas o que está em causa é bem mais importante, porque reporta para a formação humana de pessoas que a sociedade especializa e a quem dá um imenso poder. A questão é pois saber se perante a possibilidade de o cientista como pessoa “perder-o-pé”na cegueira da corrida atrás de um Nobel, está a comunidade cientifica preparada para lhe acudir a tempo de fazer com que “o Presidente Truman “ não tenha com que tomar decisões históricas. Ora, como se está a ver no caso dos OGM’s e da clonagem, não está !

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Descubra a Vaca Genuína

Descubra a vaca genuína”.

Era este o desafio do ficheiro anexo ao e.mail que me entrou pelo pc.
Duplo click sobre a coisa e o ecrã encheu-se com uma montagem de vários slides com os magníficos motivos pictóricos das réplicas dos exemplares bovinos que andaram “pastando” Lisboa no ano passado. E, entre eles, no canto superior direito, em destaque, a fotografia da Sra Ministra da Educação.

O ficheiro não terminava aqui, mas fiquemos pelo essencial. Como remetente, um professor conhecido.

Ocorreram-me logo na altura duas dúvidas. Tentei esclarece-las com o autor ou difusor da iniciativa, enviando-lhe duas perguntas.

A primeira questão pretendia saber como é que ele reagiria se a iniciativa tivesse sido empreendida por alunos seus, na sua escola, e homenageasse, naqueles exactos termos, a excelentíssima senhora sua mãe, a virtuosa namorada, a digníssima esposa, ou a angelical irmã .
A segunda indagava, na eventualidade de se identificarem os autores da “gracinha”, em que termos e com que consequências é que este professor iria exigir que decorresse o respectivo processo disciplinar .

Passados quinze dias e na sólida ausência de qualquer esclarecimento, vejo-me perante uma de duas ilações: ou estamos numa encruzilhada civilizacional em que o aquecimento global plastificou de tal modo a coluna dorsal dos homens e mulheres do nosso tempo que já nada os ofende e portanto nada é passível de ser considerado ofensivo, ou então prevalece a convicção de que a ética é uma couve.


Em qualquer dos casos fica-me a dúvida suprema de tentar perceber como é que ilustres professores que concebem, promovem e divulgam pública e orgulhosamente esta e outras iniciativas semelhantes, ou aqueles que pacificamente convivem com elas, se dão ao respeito e disciplinam as turmas com que trabalham. Será à chapada ?! E depois admiram-se se um aluno mais encorpadote devolve na mesma moeda ?!E nesse caso culpam quem ? A Ministra da Educação ?!

Estou esclarecido !!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

A Xuxa


Já havia uns bons tempos que não via a Xuxa. Aconteceu há dias cruzarmos caminhos em frente da Casa Inglesa e logo ali abancamos a pôr a escrita em dia.

A Xuxa anda que nem pode!


Professora efectiva na EB 2/3 nº 10 desde que concorreu ao ensino para evitar a fila de desempregados que se estendia à porta de saída do curso de Embalagem em Papel Celofane de Produtos Horto-Frutícolas de Elevada Sensibilidade Estética (foi o único onde conseguiu entrar com a nota que levava do secundário…), vê com natural apreensão as medidas que a Ministra da Educação tem andado a inventar.
- Malvada mulher!- desabafa a Xuxa visivelmente agastada!

Vinte e sete anos de carreira, dispensada há vinte e dois da componente lectiva, 10º escalão, dois mil e tal euritos ao dia vinte e trés de cada mês, certinhos que nem um fuso, a responsabilidade de assinar as notas de encomenda dos livros para a biblioteca que a Irene lhe prepara (a Irene é a funcionária da Biblioteca da Escola e tem tanto jeito que a Xuxa lhe dá carta branca…) e não é que está em risco de ir parar a um lista de excedentários?!

De luto carregado, a Xuxa não tem falhado uma única das manifestações que os sindicatos têm organizado em Lisboa. Vai na manhã da véspera, dá uma volta pelos centros comerciais, faz as suas compritas, encontra-se com a Luísa à saída do emprego, jantam, cavaqueiam e acabam a noite a dançar rumbas na Salsa Latina (a Xuxa adora os ritmos latino-americanos e já fez tantos cursos de danças de salão quantos pôde…). Na manhã seguinte manifesta-se um bocadito, grita de longe meia dúzia de palavras de ordem, vai almoçar com a do meio que é caloira de Marketing Jornalistico e Assessoria Politico-Económica no Contexto do Aquecimento Global (tudo isto escrito em inglês técnico, bem entendido) e regressa nas calmas, segura de que entretanto a Nhureyeva (a ucraniana…) lhe garantiu a boa ordem doméstica.

A Xuxa é honesta: nunca teve grande queda para dar aulas. E as coisas também não se proporcionaram, essa a verdade. Quando efectivou já estava grávida. E depois de duas gravidezes de risco indefenido consecutivas, respectivas baixas, partos, férias, licenças de parto, artigos e noites mal dormidas, quando ao fim de cinco anos teve de regressar às aulas, não se sentia nada à vontade. Aborrecida, foi ao médico que lhe diagnosticou uma depressão dupla e complexa. Convocada a junta médica presidida pelo Carlos…
- O Carlos?!...
- Sim…então não sabes ?!...aquele amigo do Xavier…
(O Xavier é o consorte da Xuxa…)
a Xuxa conseguiu dispensa da componente lectiva e o António...
- O António ?!...
- Sim... o marido da Vicência (a Vicência é amiga da Xuxa desde o berço e já à data era presidente do Executivo) entregou-lhe a Biblioteca e Deus deu-lhe a Ivone!

Dispostas assim as coisas, logo tinha que ser agora, com as moças já criadas e avó, a meia dúzia de anos da merecida e almejada reforma, que lhe querem por a vidinha de pernas para o ar ?!
- Era só o que faltava !!! Comeram-me a carne?Pois agora roam-me os ossos!

Pagas as bicas e as águas, a Xuxa despede-se apressada. É terça-feira, são duas da tarde, os calores do São Martinho ainda aí andam a convidar à praia e ela ficou de ir buscar mais cedo o neto ao infantário.
- Sabes… tem andado com fastio…e o médico receitou ar do mar….
Já de abalada, Xuxa ainda voltou atrás para um último desabafo.
- Tu já reparaste nos olhos dela quando fala? Parece que deitam chispas! Diaba de Ministra…devia dar-lhe uma dor de barriga tão grande, tão grande, que deitasse a correr e quanto mais corresse mais lhe doesse, e se parasse, arrebentasse !!


Nota do autor: Não sendo esta crónica uma obra de ficção, qualquer semelhança com factos ou personagens da vida real, deverá, no entanto, ser considerada mera coincidência !

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Rosas Brancas


Apesar de só ter a terceira classe completa, o meu avô era um homem de grande cultura. Graças a ele sobrevivo onde quer me que me deixem e sou sempre capaz de encontrar o caminho de regresso a casa. Desde os cogumelos e bagas silvestres comestíveis, à orientação pelas estrelas, do empate de um anzol à confecção de uma caldeirada, da sementeira de um alho ao capar de um porco, da técnica da enxada ao afiar de um gadanho, do gosto pela leitura ao gosto pelo xadrez, da previsão do tempo de amanhã ao valor do compromisso e da verdade, tudo isso foram conhecimentos essenciais que dele adquiri.

O meu avô tinha da sua vida a noção de elo de uma cadeia mais complexa, mas com um inquestionável corolário: nela competia-lhe passar um certo testemunho. Foi o que fez com a competência de que sou o resultado possível.

O meu avô era, aliás, um excelente pedagogo.

Quando eu tinha cinco anos entendeu que era tempo de me ensinar a nadar. Fomos de caleche até ao Carvoeiro, nós dois e o Tejo (os rafeiros lá de casa sempre se chamaram Tejo…era mais prático). Uma vez na praia percorremos a vereda até um pontão natural num extremo da pequena enseada, que distava cerca de uns 30 metros da rebentação. Lá chegados o meu avó atirou um pau à água e ordenou ao cão: Busca. O Tejo atirou-se ao mar e fez o que era suposto. O meu avô virou-se para mim e perguntou-me: Viste como o cão fez? Eu assenti e ele concluiu: Então faz igual e vai a nadar p’ra praia. E eu fui.

Teria eu os meus onze anos quando o meu avô me convidou para o acompanhar à Feira de Castro, onde se deslocava metodicamente de cinco em cinco anos para renovar o stock de bestas lá da casa. Tomamos o Comboio-Correio da meia-noite e vinte e, cumpridas as seis horas de tombos e apeadeiros inerentes aos 160 km do percurso, chegamos a Castro com o sol a levantar-se e a feira a animar. Pouco depois estava concluído o negócio de dois belíssimos muares, e nessa altura o meu avô estendeu-me duas notas de cinquenta escudos e informou-me do que se seguia no programa: Zé, tenho que ir a Beja e tu vais andando com os machos para casa. E eu fui.

Dois anos mais tarde, quando numa tarde de Novembro cirandávamos por entre as barracas da feira anual de Portimão, o meu avô deve ter reparado que quando as gaiatonas passavam por nós eu virava a cabeça com inusitada frequência. De modo que à tardinha encaminhou os passos para os lados da Estação, bateu à porta da Maria Guerreira, mandou chamar a patroa e instruiu apontando para mim: É p’ra desmamar. Assim foi. Depois, fomos jantar ao Nacional e ficamos jogando xadrez enquanto aguardávamos a carreira da EVA que nos levaria de regresso.

Apesar de ler poucos jornais (ainda que quisesse eles só chegavam à província embrulhando alguma encomenda de bacalhau do alto…) o meu avô era um homem bem informado e grande apreciador de boa literatura que o amigo de sempre, o professor Vieira, regente da disciplina de História no Liceu, lhe trazia periodicamente de empréstimo. Como ele já via mal ao perto, quando eu tinha os meus oito anos começou por me passar para as mãos As Pupilas do Senhor Reitor, para que lho lesse aos serões à luz do candeeiro a petróleo. De modo que aos dez anos lia-lhe Anna Karenina, Guerra e Paz, Doutor Jivago, e obras que tais, até se esgotar o stock da biblioteca do professor Vieira e os começar a requisitar na Biblioteca Itinerante da Gulbenkian que demandava a Vila nas primeiras quintas-feiras do mês.

Num magnífico fim de tarde de Agosto, estava eu e o meu avô no eirado enrolando e protegendo as esteiras de figos que secavam ao sol, quando apareceu em passeio um velho amigo que estava de férias na Vila, acompanhado por um senhor bem-posto e de fino trato, de nome Azevedo. No decurso da conversa deu-se o caso de o meu avô ter deixado sair que estava a proteger os figos porque nessa noite iria chover. A essa informação replicou o Senhor Azevedo, de forma educada mas convicta, que estava informado do boletim meteorológico e que não estava prevista chuva para toda a semana. E olhando para o céu limpo como cama feita de lavado, ninguém em seu perfeito juízo afiançaria a ocorrência. Mas às quatro da madrugada as torneiras dos céus abriram-se e choveu de escantilhão. Nessa manhã, ainda as ruas não tinham secado e já o senhor Azevedo as percorria demandando a Quinta para tentar perceber por que artes o meu avô soubera que iria chover quando ninguém o previra. O meu avô admirou-se tanto da questão que tenho a certeza que só se dignou respondeu por mera cortesia: Essa agora…então…vê-se e sente-se!
O veraneante, soube-o anos depois, era o Eng Anthyminio de Azevedo, conceituado meteorologista.

Nos últimos anos da sua longa vida o meu avô ficou um pouco “duro de ouvido”. Por isso, se por esses dias em que eu já frequentava as aulas de filosofia do “Trinta Cabelinhos” (desculpem mas nunca soube ao certo o nome do senhor) o questionasse sobre algo relacionado com Kant, é natural que ele me retorquisse no sentido de tentar perceber que queria eu que ele cantasse – o meu avô era um homem alegre e gostava de cantar.
Mas é natural que, se eu insistisse, falando mais alto e questionando-o sobre o que para ele era a “verdade”, o meu avô me olhasse com uma expressão de imenso desânimo antes de se levantar do poial invocando a urgência de ir dar de beber ao gado.

Porque o caso é que o meu avô tinha da verdade noções dificilmente rebatíveis. Ter fome depois de passar três dias sem comer era o exemplo de uma verdade inquestionável. Como o seria a dor na testa depois de uma tremenda cabeçada na porra da viga da porta da cavalariça, cuja altura mestre Amadeu calculara pela bitola errada, ou a dor de costas depois de uma jorna a alumiar vinha. Qualquer destas situações era de resto facilmente verificável, bastando para isso repetir as condições objectivas em que ocorriam.

A mentira também era fácil de definir. Por exemplo, se alguém lhe dissesse “ontem choveu em Benagil” e o meu avô lá tivesse passado o dia varejando alfarroba e regressado já depois da meia-noite e da carrada feita sem que uma pinga vinda do céu lhe tivesse refrescado a testa, retorquia de forma tão seca que nem um pelotão de cavalaria se atreveria a contradizê-lo: Isso é mentira!

Certezas relativas, o meu avó tinha muitas, mas absolutas tinha apenas uma.
- Qual, avô?
- Um dia destes, morro!
De resto, problemas existenciais como os da morte, ou da vida para além da morte, eram assuntos que ele tinha bem resolvidos.
- Avó, quando morremos para onde vamos?
- Para debaixo da terra!
- E depois?
- E depois ficamos feitos em estrume!
Até hoje não houve biólogo que me explicasse melhor esta questão!

Quando comecei com as aulas de biologia, é verdade que um dia partilhei com o meu avô as teorias em voga sobre o “caldo primitivo”. Algures a meio do meu discurso surgiu ao meu avô uma dúvida inadiável:
- Já regaste as cebolas?
Eu ainda não as tinha regado e fui tratar disso que o dia ia quente. Quarenta anos depois e embora já saiba o que é uma hipótese, uma teoria, ou como se infere de acordo com as regras do método cientifico, continuo sem saber como surgiu a vida.

O Padre Oliveira tinha algumas ideias sobre isso. E por vezes passava lá pela Quinta tentando levar ao redil aquela ovelha que nunca lhe aparecia no cercado da Igreja. Mas assim que a conversa deixasse de versar o problema da geada negra que acabara de dar cabo das favas em flor e começasse a descambar para o lado dos pecados da carne e respectiva expiação, o meu avô recorria logo a um argumento demolidor:
- O Senhor Padre já almoçou?
E a partir daí discutiam-se os segredos da arte da Gracinda na preparação do tacho da lebre com feijão branco.

Apesar de lá em casa não haver memória de ano em que tenha faltado o que comer, não se julgue que o meu avô era um pragmático destituído da mais elementar capacidade filosófica e de reflexão abstracta. Nada disso. Provo-o terminando com o relato de uma conversa de profundo recorte filosófico que lhe escutei certo fim de tarde no café do Zé David.

Já não sei porquê o assunto derivara para a cor das bestas. Farto de questão tão risível, o meu avô interveio na tentativa de lhe colocar um ponto final.
- Pois eu lá em casa tenho um macho cor-de-rosa!
Esta afirmação provocou previsivel silêncio tumular, pois apesar de incrédulos os presentes conheciam sobejamente as consequências de se duvidar da palavra de um Rocha. Assim, só um forasteiro teve a veleidade de aventar timidamente:
- Aí está uma coisa que eu nunca vi….
Excepcionalmente o meu avô condescendeu ser questionado, mas respondeu-lhe com inenarrável desdém:
- Tem visto pouco! ... Nunca viu rosas brancas?

domingo, 2 de dezembro de 2007

Direito à Memória


Fredo, nos testemunhos que nos deixou dos seus diálogos com Sócrates, refere a história que este lhe contou sobre a entrevista de Tot com um dos Faraós do Antigo Egipto. Tot era o Deus Egípcio inventor do jogo das damas, dos números, da geometria, da astronomia e da escrita, e fora convocado para que o Soberano pudesse colocar todas estas invenções ao serviço do seu povo. O Faraó terá discutido os méritos e os inconvenientes de cada uma das ofertas e, quando chegaram à escrita, Tot terá dito:
- “
Aqui temos um ramo do saber que lhes aperfeiçoará a memória. A minha descoberta é uma receita tanto para a memória como para a sabedoria.”
A isto o Soberano replicou:
-“Se os homens aprenderem a escrever, tal implantará o esquecimento nas suas almas; deixarão de exercitar a memória, pois passarão a depender do que está escrito, não mais chamando as coisas à memória de dentro de si mesmos, mas por intermédio de marcas externas. O que descobriste, não é uma receita para a memória, mas para a lembrança. E não é verdadeira sabedoria o que lhes ofereces, mas apenas a sua aparência, pois ao dizer-lhes muitas coisas sem lhes ensinar nada, farás que pareçam saber muito, quando na realidade nada saberão”.

Quando o Faraó distinguia, perante Tot, memória e lembrança, estava também a demarcar uma das premissas centrais da memória, que é a sua sedimentação cultural? Nunca se saberá ! Mas parece legítima a tese de que mais que um acervo de informação, para ele a memória era, devia ser, um repositório de saberes com sentido de devir, a um tempo reflexiva e crítica do que somos. O caso no entanto é outro, porque o acesso à memória e o seu controlo, desde sempre, foram também instrumentos de poder.

Agostinho da Silva ajuda-nos a percorrer os meandros históricos da construção da memória e a desvendar como o seu controlo tem sido ao longo dos tempos alvo de conflitos, integrados na luta mais vasta pelo poder. A apropriação da memória é uma das preocupações dos grupos e das forças que travam essa luta, tal como os esquecimentos e os silêncios da história são mecanismos da sua manipulação.

Três mil anos depois os faraós do nosso tempo, agora eleitos pelo voto popular, já não convocam Tot quando querem dar algo aos seus povos. Convocam hordas de supostos sábios que são os deuses possíveis num mundo céptico quanto às divindades, mas crédulo, demasiado crédulo, quanto aos méritos da ciência e da técnica. Convocam-nos e pagam-lhes, porque estes deuses não fazem nada de borla. Pagam-lhes principescamente a incumbência de construir memórias como quem transcreve epístolas e se possível, de as servir em imagens, cuja credibilidade acrescida advém de supostamente traduzirem a realidade.

Assim, em páginas repletas de caracteres só inteligíveis a iniciados, ou em pacotes de imagens que os intérpretes do regime fabricam para uso dos leigos, registam-se para a posteridade profecias de cataclismos bíblicos, como quem proclama verdades inconvenientes. Tal como as antigas, também as pragas destes nossos Egiptos são reversíveis ou mesmo evitáveis, mas não a troco de rezas ou oferendas para acalmar a ira divina. A solução passa agora por novos investimentos na técnica e na ciência. Na mesma ciência e na mesma técnica que, enchendo de resmas de símbolos as bibliotecas ou viajando no espaço à velocidade da luz, distraiu de tal forma os povos com tanto saber escrito que eles se esqueceram de questões tão elementares como não construir em leito de cheia.

Séculos de escrita com lembranças de saberes antigos para memórias futuras, que depois de servirem para pôr um homem na Lua, até são capazes de fazer nevar no Dubai, revelam-se assim incapazes de regrar questões aparentemente tão elementares como a gestão sustentável da água potável, a conservação dos solos ou o uso da energia.
A cada novo problema da técnica contrapõe-se mais técnica. Mas o que de facto está a acontecer é que se contrapõe ao desenvolvimento de uma sociedade a criação de um mundo mecânico! Nada há que a ciência e a técnica não resolvam ! Tudo descrito e explicado em caracteres, fórmulas, imagens, tudo devidamente Nobelizado. Será tudo possível ? Sim, eventualmente ! Mas… para quê ?

Como Montaigne já sabia, os “factos” são interpretações. E como sugere Lourenço, um “facto” que dura pode ser uma boa definição de “mito”. Toda a leitura do nosso passado como digno de memória, ou a prospectiva do nosso futuro, estão suspensos de “factos”. E como essa leitura é uma trama densa de textos, em que os “factos” se comentam, glosam, cantam, analisam e mais raramente se discutem, é nela que se funda o nosso mito civilizacional. Confuso, incerto, porventura infundado, mas não temos outro paradigma senão este em que o enriquecimento material permanente se nos apresenta como único motor de progresso. Perante a sua capacidade persuasora sacrifica-se tudo. Tal como em séculos passados se sacrificaram os Índios e os Negros, mesmo que para isso se tivesse recorrido à lógica Aristotélica, com maior facilidade se tem encontrado hoje forma de contornar os pruridos éticos aos impactos ambientais das actividades humanas. Mas agora estamos numa nova fase: aquela em que o conhecimento desses impactos se transforma, ele mesmo, em arma de conquista do poder e veículo de enriquecimento.

Seria a memória quem nos devia situar evitando-nos a deriva para um pragmatismo autista. Competiria à memória fundada na sabedoria secular, a compreensão de um sentido que não pode reduzir-se ao simplismo de uma permanente dinâmica de conquista. A adaptação aos condicionalismos naturais, a compreensão dos seus ciclos e dinâmicas, provou no passado ser mais sustentável que a recente tentativa insana de os condicionar. Mas é obvio que são os processos passíveis de enfrentar o inegociável numa envergadura faraónica, os que verdadeiramente interessam aos que se movimentam na órbita do poder, ainda que para isso tenham de controlar a memória, criando por antecipação as novas verdades do tempo, como novos “factos” para o mesmo mito.

É dessa obra que somos mercenários involuntários. Escrevemos, de facto ! Dizemos imenso, parecendo por isso sabermos muito. Mas a realidade é que não sabemos nada, e por isso o que se documenta não é uma receita para a memória, mas para a lembrança.

A memória, essa, perdemo-la !