domingo, 7 de dezembro de 2008

O Empate


Embora com objectivos idênticos, de defesa de interesses de classe, as corporações não são todas iguais. As funções que desempenham determinam as suas estratégias de actuação mas, além disso, também diferem nas condições concretas que estão na origem da composição do seu património humano. Concretizando, enquanto a classe médica é composta por profissionais que encararam a medicina como primeira opção, há muita gente na classe de enfermeiros que gostaria de ter entrado em medicina...mas que não entrou. Claro que daqui não resulta de todo que sejam maus profissionais por isso. Mas a verdade é que existem áreas profissionais que de alguma forma têm funcionado como uma espécie de “posta-restante” para quem, pelas mais variadas razões, não conseguiu seguir a via que desejava. Neste aspecto, o caso da docência é paradigmático.


Nos últimos vinte e tal anos, a via do ensino tem sido para muitos a última porta de acesso ao ensino universitário. Faça-se um estudo dos processos de candidatura ao ensino superior e percebe-se bem do que falo. Este, em geral e na via do ensino em particular, teve óbvias e conhecidas dificuldades para conseguir responder proporcionalmente em qualidade ao crescimento que ocorreu na sua procura. Entretanto, licenciados noutras áreas com o mercado de trabalho saturado, também acabaram por encontrar no ensino a alternativa possível. Claro que daqui não decorreriam razões válidas para explicar qualquer tipo de menor empenho ou competência da classe docente. Quer dizer, não decorreriam se se soubesses que a formação de uns e outros se tinha pautado por critérios de exigência ao nível dos conteúdos objectivos de conhecimento técnico, cientifico ou pedagógico, e não terá sido sempre assim. Nisso o Ensino Superior tem importante quota parte de responsabilidade, e se recordarmos as tradicionais guerrilhas de notas finais, ficamos bem ilustrados. No entanto, ainda assim, nada que não fosse possível ultrapassar se à entrada da escola os candidatos à docência fossem encontrar um enquadramento que ajudasse a suprir as deficiências naturais que trazem consigo. Mas quem é que nas ultimas décadas os tem recebido quando lá chegam ? Uma malta grisalha e nem sempre bem disposta que tem um percurso de vida muito particular e insuficientemente compreendido pelas gerações nascidas a partir da década de sessenta.


No período pós 74, as estruturas do ensino ( e outras, mas hoje é destas que falamos ) foram “reforçadas” por uma rapaziada muito simpática de duas origens distintas: PREC e ex-colónias. Quem veio do PREC teve nele mesmo a sua principal habilitação. Resumidamente, pode-se dizer que nos meios universitários o tempo do PREC foi uma espécie de “experiência pedagógica de ensino de massas”, em que a tradicional frequência das cadeiras foi substituída com sucesso ( a avaliar pela quase inexistente taxa de reprovações… ) pela participação em RGA’s, RGE’s, Manif’s ( próprias e alheias …) e outros eventos afins, tipo sessões de esclarecimento do MFA. Essa experiencia teria sido um elemento curricular de vulto se tivesse permitido a quem a fruiu empenhadamente perceber a diferença entre idealismo e praxis politica e transportar esse conhecimento para os seus futuros profissionais . Mas, do que conheço, o que transportaram para o futuro, nomeadamente para dentro das escolas, foi um contagiante “nacional porreirismo” que até poderia ter contribuído para criar um ambiente ainda mais descontraído no meio escolar se não fosse o caso de ter colidido de caras com um outro grupo de gente que na altura chegou a Portugal com muitas e boas razões para estar mal disposta: os retornados. Seguiram-se tempos tensos em que a resolução dos problemas do ensino e da aprendizagem que vinham de trás foram preteridos pela urgência de conseguir um “encaixe” funcional destas distintas disposições. Eventualmente esse encaixe foi conseguido mas segundo lógicas de pacificação que não contribuíram em nada para responder de forma eficaz e organizada ao tremendo crescimento da escolaridade que entretanto se verificou. Não contribuíram porque se tratavam de culturas distintas, de disponibilidades distintas, e ainda porque se fizeram sobre uma re-hierarquização anómala que resultou de um incidente administrativo. É que o desempenho público de funções idênticas fruia no ultramar ( a titulo de incentivo à colonização ) de um estatuto mais elevado na carreira , que se manteve quando do retorno, e se instalou como um vírus na função pública, degenerando numa alteração de hierarquias que acabou por conduzir à desestruturação pura e simples de qualquer noção de autoridade como sinónimo de competência ou do seu exercício enquanto tal. Esta cultura, cozinhada sobre uma paz mal negociada, passou a acolher, aculturar e integrar as novas vagas de pequenas, médias ou grandes frustrações que desaguaram no ensino. Como também acolheu, exasperou, e depois assimilou ou escorraçou, os fluxos minoritários de competência que chegaram ao ensino por opção. Aos grisalhos acantonados, a última coisa que lhes interessa é ter de demonstrar no fim da vida profissional, competências que nunca adquiriram; aos poucos competentes que percebem isso, a última coisa que interessa é serem avaliados por quem obviamente não tem capacidade para o fazer; quanto à restante maioria faz o que sabe fazer melhor - aposta no “x”!

De facto, o “empate” tem sido, desde 74, a grande estratégia da classe docente para gerir a paz podre que esconde, dentro desse autêntico saco de gatos que é a escola, rivalidades, frustrações, incompetências, nepotismos e comodismos difíceis de adjectivar. Por isso é que nunca houve ministro ou tentativa de reforma que tivesse merecido nota positiva. Ora, como é óbvio, o esquecimento tácito destes incidentes da história recente, são muito convenientes para o corporativismo instalado. É que, a par do tremendo deficit de cultura democrática vigente, são estas razões e não outras que definem o entrave estrutural à mudança no sector da educação, uma vez que explicam o processo de construção de um capital humano individualista e conservador e ajudam a entender a essência da sua tradicional aversão à cooperação institucional e a reformas que ao pretenderem avaliar desempenhos irão inevitavelmente trazer à superfície demasiadas verdades inconvenientes .