sábado, 29 de março de 2008

Natureza de Massas


Dou sequência ao post anterior para concretizar as minhas reservas à expansão do projecto Escola na Natureza ( pelo menos ao que dele consegui apurar ) promovido pelo ICNB.
A primeira reserva que coloco é que este projecto não me parece que esteja articulado com projectos de educação ambiental (EA) que estejam em curso nas escolas. Por uma razão simples: estes projectos não existem ou estão longe de adquirir uma estrutura conceptual e metodológica consolidada !
As iniciativas ditas de EA que se encontram, são por isso somatórios de eventos associados a generalidades ( reciclagem, aquecimento global, furo no ozono, alterações climáticas…) e não parte integrante de um conceito estruturado . Por isso elas não acontecem com a naturalidade com que a EA deveria estar presente no ensino como preocupação transversal e multidisciplinar.
Logo, se a louvável intenção de apoio logístico do ICNB tivesse por interlocutores projectos escolares de EA devidamente estruturados e em curso, em cujo processo fosse objectivamente relevante a visita a uma Àrea Protegida ( AP ), nada teria a dizer. Na falta deles arrisca-se, a meu ver, a potenciar iniciativas que as escolas contabilizarão como “projectos de EA”realizados, mas cujo processo será a preparação logística da “visita” e o produto, a “visita”. Quando muito, o professor carola de serviço produzirá e fará editar o respectivo “caderno de viagem”.


O segundo aspecto que me merece reserva, é constatar que o ICNB acredita que antes e depois, o “dia V” será um acontecimento marcante para os que nele participarem. Marcante, concedo. Ambientalmente marcante, duvido.
Duvido desde logo porque da fase experimental não encontrei relatórios de avaliação com incidência nesse aspecto, e em seguida porque não me parece que na estrutura do ensino haja professores qualificados em quantidade suficiente para fazer uma abordagem curricular do ambiente que se demarque dos lugares comuns de alguns panfletos conservacionistas e do filme do Senhor Al Gore. Apareçam professores capazes de fazer uma aula sobre ambiente a pretexto do giz com que escreve no quadro ou do parafuso que prende o quadro à parede, ou da chamaerops humilis que cresce nos descampados das traseiras da escola, que retiro na hora o que acabo de escrever e irei de bom grado a pé até Fátima como auto-penitência.


A terceira reserva tem a ver com o repisar do erro de que tudo o que de educação compete à sociedade terá que passar pela escola.
De instituição de ensino, a escola fez o respectivo “up-grade” para infantário, pai, mãe, família, restaurante, sexodromo, vizinhos, sociedade ….e agora também a promotora de viagens à natureza! Bem…com tantos afazeres , alguma coisa terá que sobrar ou ficar menos bem feita, como se tem visto à saciedade.
A meu ver, todas as actividades não rotineiras que a escola possa promover serão uma mais valia educativa se e apenas se enquadradas numa rotina subliminar de objectivos pedagógicos bem estabelecida . Existe ?É que se não existe receio que fiquemos apenas com um saco de eventos sem carácter aglutinador. O activismo pode ser tão “bonito” quanto inconsequente, e neste caso pode redundar num brilhante estilhaçar de recursos.


A quarta e última questão é que este tipo de happenings ( estadia em AP ) podem facilmente agravar no espírito da cidadania uma dicotomia já existente que considero deformadora. A ela já me referi noutras ocasiões, mas creio que vale a pena recapitular.
Se procurarmos os denominadores comuns à ideia que se tem de ambiente, é provável que encontremos uma sólida concentração de noções em redor de conceitos do que se passa no “exterior” e sempre que possível em contexto “não urbano”. O “natural” afirma-se pois como cerne do conceito de “ambiente”, por oposição ao que é fabricado pelo humano, e isto é uma deriva terrível.
Terrível porque faz com que fique cada vez mais fora de questão para a maioria dos educadores, que a ligação prática ao ambiente possa ser tratada em contexto doméstico ou escolar. Sendo estes considerados “ambientes não naturais”, a prática da EA em meio escolar tende a reivindicar equipamento especifico, “natural”, como material didáctico: um parque temático, uma quinta pedagógica, um oceanário , uma AP, whatever , a que muito prosaicamente se tende a chamar “equipamentos de EA” e sobre os quais decorrem, até, teses de doutoramento.
Consequentemente, fabrica-se “natureza” para criar… oferta de natural e promover o consumo de massas da natureza.
É o caso!
E é dos contactos esporádicos e em massa com estes produtos naturais-artificiais que se espera que resulte o quê? Propensão conservacionista travestida de higiene pública( “ ponho o vidro no vidrão e o papel no papelão para ajudar o ambiente ?”)? Propensão reformista em nome duma eficiência energética mais amiga do ambiente ( “vamos mandar para reciclagem 1 M de frigoríficos em bom estado porque os novinhos A+ ou A++ são mais amigos dos passarinhos ?”) ? Apetência para consumir mais natural , que é bom ? Que tipos de natural ? Linho ou algodão ? Couro ou lã? Água das Caldas ou de Evian ? Paisagem ou paisagem protegida ? E porque é que umas são protegidas e as outras nem por isso ? E porque é que os cidadãos que vivem nas protegidas são discriminados e tratados como cidadãos de segunda? Também é natural ? Ou esse aspecto passa à margem do programa da visita?

É na (re)construção destas questões com as quais convivemos diariamente e muitas vezes de forma perfeitamente alienada , que se faz EA. Só o desenvolvimento duma consciência critica materializável no quotidiano ( e não em investidas pontuais, esporádicas à “natureza”) pode conduzir a melhores práticas duradouras de gestão de recursos e de interacção com o outro.
Por isso, as preocupações ambientais devem ser parte integrante das politicas, e não politicas dispersas por instituições que conduzem a duplicações de processos e à consolidação de um novo tipo de burocracia ambiental. Da mesma forma que todo o território é um bem patrimonial a cuidar e a gerir, a EA deve constituir-se como um todo de valores que se respirem com naturalidade na escola ou fora dela.
Assim o ICNB tenha capacidade para explicar isto aos professores que têm a boa vontade necessária para fazer EA nas escolas e potenciará bem melhor os seus recursos. Sugestões ? Com todo o gosto: proponha protocolos de colaboração às DRE e aos Centros de Formação Regionais ( sempre ávidos de bons projectos )e disponibilizem-se formadores de ambiente capazes de ir além da abordagem do tema sob o importante mas insuficiente ponto de vista da biologia conservacionista. Importa que se tenha presente que os programas proteccionistas e conservacionistas de que as AP são símbolo, são o remendo possível na recusa de bem ordenar e bem gerir território e recursos. Resolvesse-se isso e não teríamos que (re)fazer campanhas( infrutíferas ) para salvar o lince e a serra da Malcata.

Em conclusão, as minhas reservas ao projecto "Escola na Natureza" nada têm a ver com “não querer que as pessoas não tenham oportunidades”, mas de querer que essas oportunidades não descambem no cultivo de mera irrelevância quantitativa por falta de enquadramento qualitativo e de melhores ideias para a prática da EA em contexto escolar. Caso contrário, o relatório dirá que 130.000 estiveram três dias em AP’s. Pois sim , com certeza! Mas com que resultados ?
Obviamente as reservas que expus não obstam o meu sincero desejo de que a iniciativa seja um êxito retumbante. Nesse caso, e para que o resultado final possa ser justamente aplaudido, conviria que a avaliação que venha a ser feita não se limite a verificar o sucesso da organização logistica. Num porcesso destes, importam resultados medidos ao nivel de conhecimentos e atitudes ambientais estabelecidas como objectivo. Se não existirem, a etiqueta de "animação" que lhe possa vir a ser colocada será perfeitamente merecida.

sexta-feira, 28 de março de 2008

O Que é Natural é Bom !


Espero que os autores do slogan que serve de mote a este post não me processem por abuso de propriedade intelectual. A verdade é que não resisti a recorrer ao comercial que já nem sei a que respeitava, porque diz soberbamente o que se vai passando na área do ambiente.

De há uns tempos a esta parte cada vez mais pessoas têm vindo a descobrir que o ambiente como “marca” é uma oportunidade de negócio muito interessante, e o cluster tem-se consolidado em redor do que é “verde”, “bio”,” eco”, “natural”, “sustentável”.

Era de esperar que isso pudesse acontecer, pois o potencial do “ambiente” enquanto ideia de fácil adesão, fez dele um produto de consumo apetecível , e por isso facilmente apropriável pela lógica inerente ao sistema capitalista .No entanto o ambiente não é uma produto de consumo, mas a condição e o resultado das nossas interacções com o meio e com o outro.

Apesar disso o ambiente institucionalizou-se. Gostaria de dizer que ainda bem que se institucionalizou, porque isso deixaria supor que o ambiente constitui uma preocupação politica central do nosso modelo social. Confesso que me fica a dúvida se esse processo não decorreu das mesmas razões que têm feito do ambiente um produto de consumo, uma vez que para os partidos tudo quanto seja de fácil adesão pública também tem elevado potencial politico. Mas, ainda que se coloque de parte essa questão, sobra a de se perceber como se institucionalizou o ambiente.

De facto, quando se olha para as instituições a que as preocupações ( ?) ambientais deram origem e para a natureza da sua actividade, percebe-se que o ambiente é ( ainda ) um assunto de conteúdo demasiado difuso, o que contrasta com o peso institucional que já representa. A verdade é que se trata de uma área mal delimitada apesar dos anos que já leva na agenda politica . As dificuldades formais em estabelecer fronteiras entre o que é do ambiente e o que não é , são óbvias. Elas observam-se nos planos curriculares que pretendem formar Engenheiros do Ambiente, na escolha das perguntas para os questionários das “Olimpiadas do Ambiente”, nas sobreposições e conflitos de competências dentro da administração pública central, regional e local, vêm a público em situações como nas obras dos “diques” da Caparica, na aprovação de PIN’s,n a gestão municipal em áreas “protegidas” , etc.

Dou de barato que são indecisões naturais num processo em maturação lenta. No entanto essa natureza difusa das fronteiras do que é ambiental, tem dado origem a especialidades, objectos e produtos ambientais , que naturalmente entram em conflito com áreas de competência de outras instituições pré-existentes. Para minorar esses atritos tem-se feito o habitual: cria-se legislação e uma burocracia para a administrar.

Assim, além de produto de consumo e campo ideal para a prática de activismos vários, o ambiente já é também uma burocracia. Não necessariamente uma burocracia criada para gerir uma agenda própria, mas sobretudo para gerir os danos reais ou eventuais das restantes.

Até aqui ainda chego, apoiado na mesma atenuante da “imaturidade” politica da governança, pois numa situação de maturidade politica, as preocupações relativas à sustentabilidade das interacções com o meio e à equidade nas interacções com o outro, deveriam constituir uma presença constante e transversal a todos os sectores da sociedade.

Onde já não consigo acompanhar é na suposição de que este eventual desiderato se obtenha pela criação de novas burocracias institucionais para…promover o consumo de natureza!

No entanto, é o que se passa !

Sob a responsabilidade do Dr Henrique Pereira dos Santos, o ICNB pretende levar 130.000 gaiatos ( estimativa da população no oitavo ano de escolaridade ) a passar trés dias e duas noites nos Parques naturais, no âmbito de um ambicioso projecto que julgo chamar-se “Escola na Natureza”.

Como a "plateia" aplaudiu em pé e eu permaneci desanimadamente sentado, terei que me justificar. É justo! Mas para isso este post não chega…

terça-feira, 25 de março de 2008

Luanda 92


Será imprescindível uma pós-graduação em económicas e um mestrado em correntes fortes, com o consequente domínio dos impenetráveis jargões corporativos, para se perceber que o pressuposto de disponibilidade permanente, imediata e em potência, que o nosso paradigma civilizacional incorporou como condição estruturante na sua relação com o uso da energia, é um problema ?

Há quem pense que sim, que é necessário, e defenda implicitamente que há temas que apesar do seu manifesto interesse público, deviam constituir matéria reservada a “especialistas”. Pessoalmente, discordo. Não vejo que a melhoria da racionalidade da governação possa decorrer divorciada da cidadania. Reconheço que o ambiente social dominante de crise da memória e do conhecimento, deixa a cidadania sem as ferramentas intelectuais necessárias para um contributo sólido à boa decisão politica. Mas isso não deve servir de pretexto a excluir da esfera pública o direito de ter opinião. Pelo contrário. Mas ao dever do conhecimento fundamentado das matérias sobre as quais importa que se tenha e se expresse opinião, terá que estar associado o dever não menos importante de tornar esse conhecimento acessível.

Não é o que sucede no caso da energia.

Pessoas habilitadas já disseram de formas bem mais eloquentes do que eu serei capaz, que no actual contexto de consumo não há como olhar para a questão da energia como se houvesse um fix ideal, isto é, um conjunto integrado de modelos de produção e uso acessível, duradouro e inócuo. Do balanço que fazem entre vantagens e inconvenientes das abordagens convencionadas, retiram como corolários a necessidade de diversificar soluções para reduzir dependências. Daí os avanços no sentido das ditas energias alternativas, do lado da produção, e agora em direcção à eficiência energética, pelo lado do consumo. Discutem-se perdas e ganhos económicos destas medidas. Mas a síntese final optimizada não consegue disfarçar que um consumidor de pequena dimensão como Portugal irá continuar a não conseguir resolver mais de 30 % da desejada autonomia para suprir o funcionamento da estrutura de consumos instalada.

Parece-me evidente que quando se chega a este ponto, discutir com um electrotécnico se as perdas na distribuição eléctrica são de 10 % e podem ser de 5 % , ou se os possíveis ganhos com a armazenagem via contra-embalce da energia produzida pelas incontroláveis eólicas são de 2 ou 3 %, constitui uma olímpica perda de tempo ! Além disso, será ainda uma perda de tempo desonesta se se tiver consciência de que não é a mesma coisa acabar-se-nos a gasolina quando nos falta percorrer 70 % de um percurso de 10 km ou de 1000 km ! Ou seja, os 70 % de energia que não vamos conseguir auto produzir no médio prazo, correspondem a um valor absoluto que os números relativos não conseguem exprimir, pois em bom rigor decidir fazer a pé 7 ou 700 quilómetros que faltam para terminar um percurso, são realidades bem distintas, cuja abordagem não pode limitar-se a um exercício de fé numa “boleia” salvífica.

Acreditar que a solução quantitativa para a tranquilidade do aprovisionamento energético aparecerá numa manhã de nevoeiro e insistir na resolução do problema da energia dentro de si mesmo, isto é, como um problema estritamente técnico e económico de meios de produção e eficiência do consumo, é tapar o sol com uma peneira. Sobretudo quando o adjectivo sustentabilidade faz parte do discurso.

A quem genuinamente pensa que não é assim, e continua defensor das virtudes das ocidentais certezas na bondade do modelo de ordenamento centrado em grandes metrópoles concentracionárias e respectiva logística energética ( mais “económica”,como dizem alguns especialistas), gostaria de lhe ouvir a tese revista depois de um estágio de um ano numa cidade como Luanda em 1992.

Lembrei-me de Luanda porque nos está mais “próxima” historicamente. Mas qualquer outra cidade de África poderia ter servido neste exemplo. Podia ter escolhido Kinshasa ou Nairobi. O mesmo conceito de cidade pensado segundo o paradigma europeu e respectivo modelo de funcionamento.

Luanda em 92 ilustrava na pequena escala o que acontece à vida duma metrópole pensada para funcionar de acordo com determinados pressupostos de abastecimentos permanentes de energia, quando os ditos falham . Prédios sem electricidade, sem água, sem esgotos, sem elevadores. Colectores de esgotos em afloramento natural nas avenidas com as bombas elevatórias submersas e irrecuperáveis. Lixo acumulado nas ruas com as frotas municipais paralisadas por falta de combustível. Condição zero de serviços públicos. Um deserto de vegetação lenhosa num raio de 20 km. Apartamentos onde tudo quanto era madeira, desde os soalhos às portas, fora usado como combustível de recurso para confeccionar refeições. E depois, a solução: a migração para os musseques onde assim como assim não se precisava de subir às escuras 28 lanços de escadas com um jerrican de 25 l de água à cabeça. Ou seja, a “retirada” para os musseques periféricos como solução de sobrevivência em alternativa a uma estrutura aparentemente perfeita mas que sem energia é inabitável e colapsa na sua função primordial.

Não vale a pena procurar justificações para estes estados caóticos nas questões politicas que os depoletam ou na “natureza” dos seus gestores. Com outros gestores o mesmo sucedeu em Zagreb ou Sarajevo nessa altura. De resto no inverno Russo de Ieltesin também se queimaram mobílias, e sobre o que aconteceu em New Orleans estamos conversados e de memórias frescas, certo ? Portanto não são os “detonadores” que devem merecer a nossa atenção, nem tão pouco os impactos em si, mas os factores que determinam a enorme susceptibilidade do modelo.

Em todos estes casos a questão é a fragilidade de sustentação de um modelo de grande escala quando por qualquer razão não se conseguem assegurar os elevadíssimos mínimos críticos necessários ao funcionamento dos complexos sub-sistemas absolutamente interdependentes que o compõem. Por isso, do ponto de vista da energia que o sustenta, o mundinho que temos vindo a construir é um edifício de tijolos sobrepostos em zona sísmica. Nada mais que isso. E quem já lhe viu algo mais que o jardim do condomínio onde habita, tem facilmente por adquirido que as pessoas se adaptam a quase tudo .Daí que mande sem cerimónias às urtigas qualquer profeta de desgraças. Mas não ser adepto de projecções catastrofistas não significa que se tenha de pactuar com o culto pacóvio do liberalismo burguesinho que nos leva socialmente à recusa de nos adaptarmos por antecipação a uma mudança de paradigma na governança energética. E menos ainda com a falácia justificativa dos estafados dogmas do "economês" de serviço, que insiste em reduzir a equações monetárias a essência da economia e dentro dela da questão energética. Obviamente que também a estes fazia falta um estágio de uma semana inteira tendo por único alimento três mangas, apesar de andar com dois mil dólares no bolso das calças. Nessas alturas percebe-se melhor a artificialidade de certas criações do espírito dos homens, como a suposta universalidade da “lei” da oferta e da procura.


terça-feira, 18 de março de 2008

A Lebre e a Tartaruga

- Oh, amigo!...Sabe dizer-me para onde vai esta estrada….??
- Olhe…Esta estrada não vai...Fica!

Trata-se de uma história antiga. É contada no Alferce a propósito de um automobilista domingueiro que numa tarde soalheira de um Fevereiro já com barbas brancas se aventurou à descoberta do destino a que levaria aquele bocado de asfalto de assentamento recente, sim, mas sem saída. Mas isso só ele descobriu depois de desenganado pelo Tóino Luis, já na entrada do Povo. O mesmo Tóino Luis que hoje reconta a polémica origem da natureza curvilínea do troço final do trajecto, fruto dum despique mal resolvido entre os partidários do tino da mula do Nunes e os incondicionais da desenvoltura do burro do César. Este, puxava mais à volta das Cortes; aquela, favorecia a Maia. Não se entenderam e foi preciso recorrer à burra da Lisete para o desempate. Acudia esta pelo nome de “Pampilha” e terá “resolvido” dividir o Alto ao meio, que foi por onde se fez a estrada que “ficava”.

Esclareçam-se os incautos leitores que não há melhor topógrafo a marcar curvas de nível que uma besta carregada e de regresso ao aconchego da ramada ao fim de um dia de lavoura. Dessa ciência se serviram os primeiros florestais que trouxeram os eucaliptos para as curvas de nível das serranias portuguesas. Mas não é este o assunto. O assunto é mesmo o automobilista domingueiro.

Não sei se o bom homem retemperou o espírito aventureiro picando presunto, pão caseiro e tinto do Rogil na taberna da Inaicinha. Duvido é que o tenham deixado prosseguir jornada sem ajuizar as qualidades do medronho do Varela, num tempo em que ninguém sonhava em soprar “balões” da Guarda.

Hoje o descendente daquele automobilista primordial sopra “balões”, mas em compensação já não precisa de voltar para trás, claro. A estrada segue para São Marcos ou para Portimão, consoante se escolha, na bifurcação à chegada ao Povo, mesmo em par do café do Teodoro( onde antes era a tasca da Inaicinha ). Em qualquer dos caso dá ligação à auto-estrada, essa entidade que, como quase tudo nos tempos que correm, nos permite dar a volta ao mundo em menos tempo do que leva a arder um fósforo. Bem entendido que para isso as auto-estradas já não foram marcadas pelas bestas clássicas. Já são do tempo em que as bestas de quatro patas tinham entrado em desuso e como ninguém gosta de regressos...

“ P’rá frente é que é caminho”, diz-se! E Diz-se bem ! Voltar ao antigamente ? Livra lagarto ! Bom sinal ! Sinal de que apesar das lamúrias os anos vão de “vacas gordas”. Ou para sermos mais exactos, de auto-estradas.
Nada de solavancos, curvas, buracos, cabras a atravessar, nada! Cruise - control e GPS ligados, bom som, e a pausa para a mijadela e a bica da praxe na asséptica área de serviço devidamente certificada pela ASAE. Pena a recente embirração com os fumadores ( fundamentalistas dum cabrão!)

Mas dá-se o caso que, por conta da cigarrada obrigatoriamente exterior, se proporcionam dois dedos de inesperada prosa com o velho Almerindo, que passava de pasteleira pela mão na subida da carreleira de terra do lado detrás da vedação da infra-estrutura. O automobilista olha-o como se estivesse a olhar para uma cena plasmada de um filme revivalista produzido num outro mundo surrealista. Cruzam-se os olhares e o outro cumprimenta, imagine-se!

- Boas ...
- Boa tarde !
E ao nosso automobilista, moderníssimo, dá-lhe para a curiosidade etnográfica e prossegue o inesperado diálogo.
- Então o amigo…para onde vai?
- Até ali mais adiante…
Responde o outro apontando o queixo para o lado detrás de uns azinhos que se viam à distância na meia encosta.
- Então…e quanto tempo leva a lá chegar de bicicleta?
- Eh ! Coisa duma hora...
- Uma hora?! Numa hora estou eu a 200 km daqui com este meu carro de 200 Cavalos !
E com o olhar seguro aponta impante o luzidio BMW ecológico!

De regresso à auto - pista e uma meia dúzia de quilómetros mais abaixo, inesperadamente, a coisa corre mal. Numa longa recta em ligeira descida experimenta-se accionar o botão do motor electro-ecológico-auxiliar (o tal que aproveita a energia das travagens) a ver até onde ia o ponteiro. Que potência! E o ponteiro lá ia descendo a escala. Mas na direita larga feita a fundo, o bólide perde apoio traseiro , levanta voo, passa por cima dos rails de protecção e vai amarar os peitinhos na ribeira que corria vinte metros lá abaixo. Valha-nos que caiu bem, quer dizer, na horizontal e sobre água líquida. Menos mal, portanto. Os air-bags ecológicos abriram na perfeição e com a velocidade a que tudo aconteceu nem tempo houve para o suposto susto. Vantagens da tecnologia. O pior foi a saída da viatura, feita com aguinha pela braguilha e consequente submersão tecno-ecológica geral: cruise-control, GPS, ABS, tudo! Estava ele, portanto, tecnologicamente desamparado, de Armanis e Cerrutis de molho e a maldizer não ter optado pela versão “scuba diver’s” do telemóvel ( traduzo: resistente à água até 200 atmosferas de Planck ) com internet por satélite ( mas a seco, claro ) quando aparece o outro pedalando a pasteleira pela margem da ribeira. Parou ao lado, lá na margem. Puxou para cima a pala da boina e enquanto sacava a mortalha de Definitivos para enrolar o cigarrito, foi inquirindo calmamente:

- Atão amigo ?! Tá dando de beber ó gado ?!

sábado, 15 de março de 2008

Big is Possible ?!


No post anterior deixei algumas notas à leitura do Plano Nacional de Acção para a Eficiência Energética . Delas retirei como facto positivo e elemento inovador a louvável introdução da variável eficiência na equação energética, com o saudável propósito de lançar as bases dessa muito necessária alteração de perspectiva e de prática na nossa gestão da energia. Mas exprimi também as minhas reservas em relação à estratégia preconizada. Elas têm a ver com a efectiva eficiência energética marginal das medidas propostas, dado o modo como está gizada a sua prossecução.

Sobraram-me as questões estruturais e é por elas que regresso ao tema.

Noutras oportunidades já defendi neste espaço que a meu ver uma das principais razões da falta de elasticidade do modelo de aprovisionamento e uso da energia da nossa civilização, está associado ao tipo de ordenamento que a estrutura( económico, social, urbano ), e consequentemente à potencia e escala energética que o seu funcionamento implica. Tenho defendido nessas oportunidades que o desconcentracionismo urbano seria um caminho possível para aliviar a pressão dessas dependências. Defendo ainda que esse caminho nos permitiria ao mesmo tempo potenciar as soluções de aprovisionamento alternativo já existentes, tornando mais efectivas tecnologias como a eólica, a fotovoltaica, ou a biomassa. Mas não é por aí que este Plano nos leva, e nessa medida não o considero estruturante da alteração que todos clamam ser necessária ao paradigma de uso que fazemos da energia.

De facto, ele não deixa indicação de que esteja coordenado com quaisquer outros Planos que prevejam corrigir as assimetrias de ordenamento que são também responsáveis pela rigidez do modelo de consumo de energia. Ao não fazê-lo, o Plano agora proposto subutiliza um conjunto interessante de medidas que, se aplicadas numa base regional com particular incidência nas regiões mais deprimidas, poderiam contribuir para corrigir as deformações quantitativas do modelo de consumo de energia. A meu ver, sem a activação das bases desse reordenamento , o Plano será mero paliativo de consciência na forma absurda como pensamos a energia.


Tentarei explicar porquê com a ajuda de algumas das medidas concretas que ele preconiza.

É sabido que a desertificação humana das aldeias, vilas e cidades do interior português, constitui um triplo problema de(1) desestruturação social, económica e patrimonial dessas localizações, (2) de acréscimo da pressão populacional sobre os grandes centros urbanos, (3) de agravamento dos custos de gestão social ( educação, saúde,…) e consequente quebra geral de qualidade de vida. Ora um dos problemas sempre invocados em relação à permanência nos pequenos meios urbanos é a habitação, i.é, o custo acrescido implícito à recuperação urbana de acordo com os objectivos de conforto da modernidade. Tanto assim é que se têm multiplicado os programas ditos de requalificação urbana ( Polis e outros…) na tentativa de travar a degradação de um bem patrimonial que ( supõe-se ) se considera valioso e por isso se pretende preservar. Mas quem conhece os casos de execução sabe que os trabalhos se ficam pelos arranjos exteriores e pela repintura das fachadas . Assim, e apesar dessas obras, aldeias e centros históricos de vilas e cidades ( inclusive das grandes ) continuam evoluindo para desertos humanos.

No entanto, 200.000 caixilhos eficientes, outros tantos recuperadores de calor, 1 milhão de frigoríficos A+ ou A++, painéis solares nos telhados , juntamente a isenções de contribuições autárquicas, sisas reduzidas, rendas ou crédito bonificado, uma melhoria significativa dos transportes públicos, seriam seguramente medidas conjugadas pertinentes para levar muito boa gente a (re)considerar permanecer ou migrar para o interior, sabendo-se como se sabe que a infra-estrutura existe e tem qualidade.

Nesse contexto, as medidas preconizadas no Plano seriam elas próprias dinamizadoras dos pequenos negócios de base local actualmente moribundos ou incipientes, potenciando as economias de pequena escala. Calor verde ? Com certeza ! Mas numa relação de proximidade com as fontes naturais de biomassa, sob pena de se perder em transporte o ganho teórico da esperada eficiência. Caixilhos eficientes ? Muito bem ! Mas produzidos por serralharias e carpintarias locais. Aquecimento solar de água sanitária ? Claro ! Mas adjudicado a pequenas e médias empresas locais. E, já agora, aproveite-se a boleia e relancem-se os CEF’s ( cursos profissionalizantes ) numa ligação que faça sentido com a actividade económica de base local e regional.

Ao nível da geração alternativa que é preconizada no Plano ( crescimento de 10 % até 2015 ), também não se vê que exista uma preocupação de a localizar em resposta a necessidades de abastecimento local. Mas é na pequena escala que ela faz mais sentido. Se a geração alternativa ( eólicas, fotovoltaicas ) fosse um serviço público a não um negócio privado, os pequenos parques eólicos ajustados ao consumo local ( integrados e com reduzido impacto paisagístico) e as politicas locais de uso da energia com recurso a contadores bi-horários e tarifários bem diferenciados em função do potencial de geração local, seriam capazes de reformatar hábitos de consumo que se têm instalado sem critério nem regra.

Assim, embora os autores do Plano se tenham lembrado e muito bem de referir Schumaker, citando-lhe a obra Small is Beautifful, eles não foram depois capazes de localizar as medidas que preconizam por forma a materializar os pressupostos do celebrado economista! Portanto, ou só o conhecem da conotação "verde" ou não lhe captaram a estrutura dos raciocinios! Talvez seja essa a razão porque voltam a insistir em mais uma tentativa de demonstrar que "big is possible" !

quinta-feira, 13 de março de 2008

Energia na Balança

O Ministério da Economia colocou há dias em discussão pública o “Plano Nacional de acção para a eficiência energética”.

Desde então tenho andado em cabeçadas intermitentes com o dito na tentativa de conseguir exercer a minha condição de público. Não é fácil. Não pela forma como o Plano é apresentado. De facto, ele está bem construído e é de fácil consulta. Inclui metas quantificadas e temporalizadas, coisa sempre boa de se ver em planeamento, e as medidas que preconiza são coerentes entre si . O problema são as premissas em que se apoia, cuja valia não explicita e que não se conseguem desmontar completamente com a informação ( in)disponibilizada.

Apesar de o Sr Carlos Pimenta já ter saído à praça em defesa do mérito da iniciativa ( Expresso de há duas semanas…), dispensando assim da leitura do Plano muitas opiniões que preferem simplificar a vida alinhando pelo respectivo "verde-alface" de referência, julgo haver questões em aberto que merecem alguma reflexão com a ajuda da literacia energética possível.

O objectivo quantitativo do Plano é a poupança até 2015 de 10% do consumo Nacional de energia, e com isso espera conseguir reduzir em 1% ao ano o crescimento previsto da factura energética. O argumento justificativo do Plano não remete para questões de valoração absoluta da estrutura qualitativa ou quantitativa do consumo Nacional. Essa valoração é relativizada por referência à “intensidade energética” ( consumo de energia/ Milhão de PIB ) média da EU a 27, com a qual assume a necessidade de convergir num valor que é actualmente situado em cerca de 120 tep / milhão do PIB.

Ou seja, o paradigma “intensidade energética média” da EU a 27 é tido como correspondendo à estrutura ideal de consumo de energia, mas não se explica porquê. Também não se refere que o consumo bruto de energia não possa aumentar. Mas deixa-se entender claramente que nisso não se vê inconveniente desde que decorra em linha com o crescimento do PIB.

O Plano, embora omisso sobre a politica a seguir caso o valor de referência se altere, propõe um programa de 12 medidas para realizar essa convergência. Essas medidas alinham maioritariamente pelo lado da melhoria da eficiência do consumo. Incidem no transporte, uso doméstico e serviços. Começo por partilhar algumas reflexões que me suscitaram algumas delas.

- Redução em 20% de veículos ligeiros com mais de dez anos em circulação. Sabe-se, portanto, que a circulação desses veículos tem um peso efectivo considerável no consumo final de energia do subsector dos transportes ?! Já agora: qual o seu destino após a troca por novos mais eficientes ? África ou reciclagem ? No caso desta, o custo energético da reciclagem do velho, acrescido ao custo energético do novo, é inferior ao acréscimo de consumo que implicaria a manutenção do velho em circulação durante o remanescente da sua vida útil ?

- Transferência modal de 5% do transporte individual para colectivo. Só ?! Quer dizer que por cada milhão de automóveis que entram diariamente nas grandes cidades se considera satisfatório reduzir a entrada a 50.000 ?!

- Renovação de 1 Milhão de grandes electrodomésticos: pressupõe-se inútil qualquer tentativa de rever o consumo em função da irracionalidade de se ter o frigorifico ligado 24 horas por dia durante 365 dias por ano ?! É instituído um “prémio”para a troca ( premio à reciclagem, de 50 ou 100 €): deve supor-se que o custo energético da reciclagem do velho, mais o custo de produção do novo e o respectivo consumo, corresponderiam a um encargo energético final inferior ao que seria de esperar se o velho se mantivesse em funcionamento até ao fim da sua vida útil ?!

- Calor verde – Instalação de 200.000 recuperadores de calor a biomassa, ou seja, a lenha ou sucedâneo. Mas onde ? Em Lisboa ? Com lenha vinda de Portalegre ? Um litro de gasolina ( 10.000 kcal ) na motoserra permite cortar cerca de 30 kg de lenha de sobro. Se lhe juntarmos o custo energético do transporte e distribuição, quantas kcals teria que debitar a lenha por kilo para assegurar a eficiência desta solução ? Não é com lenha mas com biomassa em geral ? Então e as centrais térmicas de biomassa e de cogeração em funcionamento ou projectadas, vão queimar o quê ?

- Substituição de caixilharia convencional por eficiente em 200.000 fogos. De novo a mesma questão: os custos energéticos da retirada e reciclagem do velho, adicionados aos custos energéticos de produção e colocação do novo, são inferiores ao diferencial de consumo previsível para a vida útil remanescente do velho ?

Existem pois nestas medidas algumas indicações que me levam a duvidar se estamos perante um panorama de poupança de energia. Percebe-se, sim, que estão na calha iniciativas que correspondem a consideráveis acréscimos de produção e consumo. No médio prazo terão resultados numa diminuição do consumo energético equiparado. Óbvio. Mas o processo assim preconizado terá uma efectiva mais valia energética? Ou garante apenas a convergência com a “intensidade energética média” dos 27 por via do crescimento do PIB que irá induzir ? Será por isso que já se congratula a comunidade verde-capitalista ?


Voltaremos ao tema !

segunda-feira, 10 de março de 2008

E se dependesse só da chuva?

Este post não estava previsto. Mas acontece que quem tem tido paciência para ler os bocados de prosa que por aqui vou deixando, por vezes me questiona sobre as soluções que preconizo para alguns dos temas que tento abordar. Foi também o que sucedeu nesta última série, sobre educação ambiental ( EA).

Portanto, e para que não se diga que contorno a questão desculpando-me com a necessidade de não cair em generalizações, tentarei explanar sobre um exemplo concreto depois de recapitular algumas premissas que julgo deverem presidir à abordagem da EA.

Antes de mais gostava de afirmar o meu completo desacordo com a institucionalização da EA.

No meu entendimento, a EA não pode ser vista como mero assunto de ensino formal em ambiente escolar. Não faz muito sentido passar uma semana a falar ao menino dos problemas quantitativos da água potável, quando a prática lá de casa e da rotunda municipal adjacente se pautam pelo esbanjamento sistemático. Também não se vê grande futuro no discurso sobre a necessidade de respeitar o ambiente natural de vida das espécies em geral, quando o papá mantém ciclídeos do lago Malawi no aquário, e os programas de fim de semana alternam entre visitas ao oceanário, ao jardim zoológico ou a umas zebras que pastam algures no Alentejo.

Por isso gostava de deixar clara a minha oposição à tendência para encarar a EA de base como temática disciplinar a ser promovida pela escola. E isto porque não entendo a EA como “matéria” mas como “método” e como “ética”. Porque o facto é que boa parte das “matérias” que importam à EA até são abordadas nos conteúdos disciplinares. A questão está na forma não integrada e acrítica como é feita essa abordagem.

Pelas mesmas razões, não vejo a EA como questão cuja abordagem careça de equipamentos específicos, tendência que parece generalizar-se. O “equipamento” de EA ideal é o contexto concreto da vida quotidiana. O caso é que todas as oportunidades são boas para nos ajudar a compreendermo-nos como agentes e produto de interacções complexas, não apenas com o meio ( stricto-senso) mas com o outro ( lato-senso) que também integra e formata o meio. Assim, é curto falar da História sem que se perceba o que a conflitualidade entre nações significa na perspectiva do acesso a recursos sempre escassos, ou que ao “brilho” de certas civilizações se encontram por norma associadas formas nem sempre brilhantes de apropriação e uso de recursos alheios. É curto falar da Geografia sem que se perceba que ela reproduz o investimento de gerações de humanos na tentativa sempre inacabada de domesticação da energia. Como não faz sentido o discurso conservacionista que remete para uma utopia do natural que nunca existiu. Os putos têm que perceber cedo que, sendo verdade que as borboletas são muito bonitas, não é menos verdade que antes de elas voarem houve lagartas que comeram as couves da vizinha. Têm de perceber que alguma coisa a vizinha tem de fazer para colher algumas couves, sob pena de não haver caldo verde à hora do jantar, pois as couves não “crescem” nos hipermercados. Claro que, se possível, importa também que saibam que a vizinha não tem necessariamente de recorrer a um insecticida sistémico de classe I que mata as lagartas das couves, é verdade, mas deixa moribundo o pássaro que as come, avaria os intestinos ao gato que comeu o pássaro, e com um pouco de falta de sorte ainda leva o marido da vizinha às urgências hospitalares.

Sendo assim, a abordagem da EA que preconizo é a transversal e não a disciplinar. Ela pode ( deve ) ser trabalhada na escola dentro de quadros pedagógicos como a "àrea de projecto" ou o "projecto curricular de turma". E de preferência em ciclos subordinados a grandes áreas temáticas que seja possível trabalhar a partir das pequenas coisas do quotidiano dos alunos, pois em todas as nossas actividades existe um tipo de interacção num ecossistema concreto.

Mas vamos lá aos exemplos em meio escolar.

Um ciclo temático subordinado à água ( um problema de consumo com impactos significativos em clima mediterrânico – o nosso ) que tenha por objectivo a noção de condicionalismo geográfico, pode ter como ponto de partida uma proposta de trabalho sobre o sistema de rega do jardim da escola. A água que aí se utiliza como chega até à escola ? E estamos dentro de conteúdos disciplinares dos fluidos: secções, caudais, pressões, perdas de carga. E vem de onde ? Das estações de tratamento e estamos de regresso aos universos da matemática para avaliar a dimensão dos reservatórios ( volumes ) da física ( densidades, filtros ) e da química ( composição, tratamento). E onde foi captada ? Nas barragens ( bacia hidrográfica ) e nos furos de captação ( geologia e geomorfologia ) e chegamos à pluviosidade ( como e onde se mede e representa ? ) ao clima ( que também se caracteriza em função da pluviosidade, e percebe-se que entre a chuva que cai e a que se aproveita - recurso renovável - existem diferenças), para voltarmos às árvores exóticas cuja existência no jardim da escola em clima mediterrânico implica um sistema de rega porque … não estão adaptadas a um ecossistema ( noção concretamente ilustrada por oposição à vegetação autóctone ) que tem na conjugação da estação seca com a estação quente uma das suas limitações climáticas! Chegámos assim à noção de condicionalismo geográfico que é central em EA.

Uma questão ambiental sobre esta matéria? Seja : “Se dependesse unicamente da chuva para suprir as suas necessidades de água anuais, no Algarve, que tipo de estruturas e de que dimensões iria necessitar? Justifique.”

Ainda no caso da água, toda a história do mediterrâneo que se habita foi desenhada sob o seu signo. E isso mesmo pode ser conceptualizado com qualquer dos pontos de partida que nos fornece a realidade concreta da paisagem da comunidade em que se implanta a escola. Há uma história da água que é fundadora da geografia humana. Ela esteve presente na origem e mantem-se viva na toponímia de muitos lugares. Apenas “desapareceu” quando finalmente chegou às torneiras de toda a gente. Mas como não desapareceram os condicionalismos concretos ao seu uso ( uma pluviosidade, escorrência e infiltração razoavelmente previsíveis ) ela pode ser “redescoberta” potenciando nesse percurso a compreensão do nosso papel na sua gestão.

Portanto, teremos de ser capazes de fazer com que um tema susceptível de ser tratado como integrador de conhecimentos e portanto de construir EA, como a água, não se limite aos estafados estereótipos abstractos dos slogans da praxe ( “a água é vida ! Para não faltar, vamos poupar !...) ou às evidências da sua necessidade na nutrição animal ou vegetal ( “sem água não podemos viver…e as plantas morrem !!! ). Informação como a da % de água que se gasta no mundo com a agricultura é coisa perfeitamente irrelevante (e que pode mesmo ser profundamente demagógica) porque dissociada de cada condicionalismo geográfico concreto não tem qualquer significado !

Isto para concluir que sendo um processo e não um fim, à EA importa menos um conjunto desligado de informação abundante, dispersa e descontextualizada, mesmo que correctamente papagueada em resposta a perguntas impossíveis, que a capacidade construída e consolidada de apreciar qualquer acontecimento.

Por isso não se entende que uma escola de onde se avista a Ria Formosa precise de organizar excursões ao oceanário de Lisboa para falar de ambiente marinho, ou que uma outra cujas traseiras dão para hortas precise de promover visitas a uma “quinta pedagógica” (reinvenção dos museus ?) para explicar in situ o que é um ecossistema agrícola. A boa prática pedagógica em EA potencia os contextos, usando-os como âncoras para o conhecimento estruturado. Convenhamos que para desenvolver o tema da biodiversidade ao nível do 9º ano, usar Madagáscar como exemplo é no mínimo…rebuscado, se não se soubesse que bastas vezes estas "fugas para a frente" são promovidas pela falta de domínio das matérias. Sem ele, não é possível articular o conhecimento em relação concreta com o imediato tangível !

quinta-feira, 6 de março de 2008

Espiráculo ou Espectáculo ?



Qual destas estruturas é um “proboscis”?

a- o gonopódio de um tubarão
b- a tromba de um elefante marinho
c- a bolsa do canguru
d- a presa da morsa
e- as antenas do gafanhoto

Julga que foi apanhado pelos “Desprevenidos”?

Desengane-se!

Está a responder na Final Nacional de 2007 das Olimpíadas do Ambiente!

Se quisesse terminar com 100 % de respostas certas, teria ainda de saber quem pertence à família dos Monodontidae, se a víbora cornuda é um Homodonte, como se chama o golfinho mais velho do mundo, entre outras pérolas daquilo a que, depreende-se, a denominada Comissão Organizadora considerou conhecimentos imprescindíveis a uma atitude ambiental informada.

A iniciativa, que já decorre há alguns anos e se estende por escolas de todo o País, contando, como é prática corrente, com apoios e logísticas consideráveis, culminou no ano transacto na referida Final Nacional, que decorreu naquele que vem sendo considerado como um dos principais “equipamentos de educação ambiental do Algarve”: o Zoomarine, um conhecido parque aquático que se situa algures entre um circo ao ar livre e uma variante zoológica das muitas caixas registadoras do All-garve que entretêm os turistas parolos que não sabem o que fazer nas férias.

A relevância desta informação serve somente o propósito de ilustrar o que foi dito nos posts anteriores sobre a interacção entre os objectivos “verdes” de certas empresas, o activismo ambiental e a Educação Ambiental na escola pública. De facto, as “Olimpíadas do Ambiente” são uma organização da Quercus. Exacto, da Quercus. Para se chegar até às finais, há uma série de eliminatórias que decorrem nas escolas e cujo desenho, em tudo semelhante ao conteúdo da final, ilustra na plenitude a ignorância, o oportunismo e a idiotia que campeiam em matéria de EA, mesmo nas entidades que têm pretensões de liderança da opinião pública em questões de ambiente.

Confesso que no exame em causa chumbei clamorosamente! A verdade é que não sabia se o ozono era ou não um Protóxido de Hidrogénio, se os golfinhos emitem sons pelo espiráculo ou pelo espectáculo, não fazia a mais pequena ideia de quantos monumentos naturais existem em Portugal e, coisa acima de todas inaceitável, eu não sabia nem sei que percentagem de árvores a Amazónia irá perder se a temperatura aumentar de 2 a 3 graus!!

Ou seja, julgando que me mantenho a par das coisas que vão acontecendo ao ambiente, seria levado a concluir que tenho andado com a focagem errada.

O caso é que, como já percebeu quem perdeu algum do seu precioso tempo a ler-me as arengas, me preocupam as políticas de transporte individual e rodoviário em detrimento do público, as soluções arquitectónicas “frescas de Inverno e quentes de Verão”, a construção em leito de cheia e em solos agrícolas, o atulhamento compulsivo dos sistemas estuarinos, o monumento à estupidez dos diques da Costa da Caparica mas… não sei que animal é representado no símbolo do PNSACV, outra das perguntas da “final”!

Também é verdade que procuro estar atento à evolução dos padrões de consumo, à quantidade de inutilidades multi-empacotadas que se consomem todos os dias, às dietas de importação das cantinas escolares, à promoção simultânea da reciclagem e do consumo (como se sabe se não se consumir inutilidades a reciclagem deixa de ser “sustentável” e não queremos isso…) mas, mais uma vez, distraí-me, e não reparei se o buraco do ozono se abre mais em Janeiro ou em Agosto, questão que a Quercus, ou alguém por ela, considera ambientalmente incontornável!

Como para grandes males só mesmo grandes remédios, já decidi que no próximo fim de semana, em vez de perder tempo a reflectir sobre as assimetrias regionais, o sobrepovoamento do litoral e a desertificação do interior, a degradação do montado, o impacto da expansão dos regadios e a degradação dos solos, a sobre - exploração dos aquíferos ou outras irrelevâncias que tais, como a confrangedora incapacidade dos burocratas do ambiente e dos professores em geral em gizar conteúdos com pertinência ambiental, vou passar um dia ao Zoomarine.

Estou convencido que depois de ver catatuas a andar de bicicleta, leões marinhos a bater barbatanas e golfinhos às cambalhotas, serei um cidadão ambientalmente melhor preparado, sabendo, inclusive, se o mito das sereias, esse problema ambiental a todos os títulos incontornável, tem a ver com o crocodilo do Nilo ou com o manatim das Américas!

terça-feira, 4 de março de 2008

Simplesmente Laranja

A relação que se estabeleceu no post anterior entre activismos de educação ambiental ( EA) e a escola, foi usada para ilustrar a subordinação normalmente inconsciente à lógica verde-capitalista que se tem vindo a instalar na sociedade nos últimos tempos.

Não se interprete porém o que foi dito apenas como uma critica, mais uma, à escola que temos. Claro que é uma critica, mas com uma leitura transversal implícita, isto é, as instituições, todas elas, reflectem a sociedade que somos: uma sociedade de criaturas susceptíveis perante o que quer que questione as suas supostas certezas e entre elas e à cabeça a firme convicção na bondade do liberalismo consumista em que vivemos.

Não admira por isso que, tal como qualquer português informado, também os professores estejam convictos de que os problemas mediatizados derivam de imperfeições funcionais do modelo social em que vivemos e não no sistema ( capitalista ) que o suporta. E isso reflecte-se na dificuldade genuína que têm para identificar a faceta ecológica de todas as pequenas questões do quotidiano, preterindo-as a favor da intervenção em linha com a agenda do ambientalismo mediático. São exemplos típicos o buraco do ozono, o aquecimento global ou a desflorestação da Amazónia. Ou seja, situações que os alunos não podem visualizar e sobre as quais é impossível estabelecer no concreto uma relação de causa-efeito com a sua vida quotidiana.

Para tentar descolar das generalidades que normalmente se debitam em redor destas questões, a EA que se queira efectiva terá de se apoiar em reflexões que antes de mais remetam para o quotidiano: o que comemos, o que vestimos, como nos deslocamos, e acima de tudo isto o que distingue o essencial do acessório.

No entanto, se se pedir a um grupo de professores, em contexto de acção de formação em EA, como exercício prático, a elaboração de um plano de aula em que uma laranja seja usada como eixo para reflectir com carácter interdisciplinar uma noção de condicionalismo geográfico, não será de estranhar que não cheguem mais longe que à vitamina C e ao escorbuto e à importância dos citrinos na sua prevenção!

De facto, a menos que imperativos publicitários o motivem, na perspectiva ambiental o factor origem raramente é tido em conta. De tal modo que o temos por irrelevante.

Claro que logo que confrontados, os professores caem em si: “ Pois é !” O que significa que até temos a informação. Mas como essa informação é de carácter disciplinar e não estamos capacitados para a integrar transversalmente no quotidiano, formatados que fomos por uma tradição académica e social que confunde capacidade critica com dinâmica reivindicativa, não temos conhecimento consolidado das matérias. Por isso a informação de que dispomos tem fraca valia pedagógica independentemente da metodologia que se use. Assim, dentro de um universo mental de ideias dissociadas, sabemos ir de A a Z. Mas como perdemos o norte logo que o GPS se “cala”, preferimos permanecer dentro dos circuitos que já temos rotinados : vitamina C e escorbuto!

É evidente que dependendo do grau de ensino em que se esteja, questões básicas como uma laranja podem conduzir a abordagens mais ou menos profundas, recorrer a suportes e formas de expressão diversas, servir de pretexto para introduzir metodologias de pesquisa e tratamento de informação ( inclusive em línguas estrangeiras ) ou para uma visita à história da região e às suas relações inter-regionais, ao mesmo tempo que permitem incorporar o tipo de interacções e condicionalismos ambientais ( passados e presentes) que lhe estão associados e por essa via introduz a dimensão regional do conceito de sustentabilidade.

De facto, importa a linha de raciocínio: “ Laranja?! De Onde ? De Valência ?! Onde fica isso ( citrinos e climas mediterrânicos )? Como vem cá ter ( transporte ferroviário vs rodoviário )? Quantos quilómetros ( transportes e combustíveis fósseis ) ? Qual a vantagem ( lógicas de formação dos preços )? E se vier da horta da vizinha ( baixo custo energético dos produtos de proximidade geográfica, economias internas )?”

Claro que para construir esta capacidade de reflectir e questionar o mundo em que se vive, coisa central em EA, os professores terão de saber distinguir problemas ambientais de simples questões de civismo e higiene urbana. E além disso precisam de dominar as temáticas ou então de cooperar activamente entre si para potenciar as respectivas valias disciplinares.

domingo, 2 de março de 2008

Ensino Verde


Be the change you want to see!

A frase acima transcrita é atribuída a Ghandi e invocada com frequência no contexto de um fenómeno que se globalizou a partir da década de sessenta – o activismo ambiental.

Este tipo de intervenção social que, à semelhança de outros activismos se define por privilegiar a prática efectiva de transformação da realidade em detrimento da actividade exclusivamente especulativa, subordinando frequentemente a sua concepção de verdade ou de valor ao sucesso ou pelo menos à possibilidade de êxito na acção ( Toraine ), ganhou aderentes e materializou-se numa série de organizações cuja acção tem sido amplamente reconhecida. Sendo o activismo ambiental raramente coordenado, nem sempre meritório e só ocasionalmente efectivo, é legitimo supor que o seu reconhecimento muito deva à fácil adesão emocional das causas que abraça.

Esta adesão por sua vez é devedora de um fenómeno que lhe tem sido paralelo: a globalização da TV e a mediatização dos acontecimentos em tempo real. De facto, entre a cobertura jornalística em diferido das marchas de Ghandi ou de Luther King e as reportagens em directo dos zodíacos da Green Peace interpondo-se entre os arpoeiros japoneses e as baleias de bossa, não há propriamente diferença de potencial informativo. Mas o meio de divulgação actual ( TV a cores e em directo, revistas a cores de grande circulação ) tem um impacto emocional completamente diferente e sendo a causa “nobre” acrescenta-lhe motivação. Provam-no as audiências das temáticas ambientais e a consequente colagem que a elas tem sido feita pelas estratégias de marketing publicitário da mais diversa ordem.

Assim, entre os média e os activismos ambientais tem-se instalado uma relação que, aparentando ser cooperante, tem frequentes contornos de alguma promiscuidade, uma vez que a produção de acontecimentos ambientais como área de actividade é hoje modo de vida para muitos ambientalistas.

Provêm dessas relações boa parte dos mais diversos formatos de abordagem a problemas tidos por ambientais e que são o suporte em que se apoia com frequência uma das áreas em que o activismo ambiental se materializou de forma incontornável - a chamada educação ambiental. A ela se dedica ( ou diz dedicar-se ) uma infinita parafernália de entidades e personalidades, públicas ou privadas que, agindo a solo ou em parceria, se desmultiplicam em iniciativas do mais variado cariz. Faz-se de facto muita coisa. Importantes recursos humanos e materiais, bem como incontáveis boas vontades, são envolvidos e inevitavelmente, mesmo que seja apenas por arrastamento, algo mudará por isso. Mas…o que é que muda ?

Se as estruturas e os agentes de EA tivessem capacidade ou objectivos de leitura crítica das temáticas e dos formatos em que estas são propostas, é óbvio que poderiam ocorrer desenvolvimentos importantes na atitude com que os cidadãos do futuro irão encarar o outro e os recursos que a todos interessam. Mas não é assim. E a consequência é que em nome do ambiente se assiste a processos que, em lugar de colocarem em causa a essência mesma da dinâmica consumista que lhes induz os impactos negativos, se limitam a sugerir a substituição do cabaz de compras convencional pela sua versão verde, que sugere que se consuma a mesma ou maior quantidade de tudo, desde que apresente uma etiqueta verde qualquer.
Como não há nem é bem vinda qualquer veleidade de questionar o modelo de sociedade de consumo e de produção do supérfluo, não espanta que esta seja a realidade geral da EA, até porque no sector privado são cada vez mais as empresas que a adoptam como estratégia para reverdescer a sua imagem. O que se lamenta é que nem a escola seja capaz de inovar nesse campo, limitando-se a EA que aí é feita a contribuir de forma acrítica para adaptar as futuras gerações de consumidores à nova versão do mundo capitalista – o capitalismo verde !