quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A Guarda Verde

Quando nos finais dos anos sessenta do século passado Mao-Tsé- Tung achou que a sua revolução estava a descambar, convocou os chinocas mais novitos, passou-lhes para as mãos um livrinho com a sua versão dos mandamentos e mandou-os “reeducar” o povo pela nova cartilha. Ficaram conhecidos por “guardas vermelhos” e a sua intervenção na sociedade chinesa para repor a revolução nos carris que Mao idealizara está bem documentada .

Tal como muitos outros personagens, nem todos célebres, também Mao percebeu que a juventude é um campo fértil para cultivar doutrinas. Como naturalmente lhe falta experiência de vida e tem pressa de mundo, a rapaziada é mais receptiva a soluções idílicas do que a dúvidas concretas. Aprender a questionar sempre dá mais trabalho e requer mais tempo do que a papaguear ideias pré-fabricas. Por isso, independentemente do seu valor intrínseco, qualquer proposta inovadora constitui um plus para a incontornável vocação catequista do activismo juvenil. E daí não viria mal de maior ao mundo se nele não houvesse quem tivesse percebido como usar essa disponibilidade para dar corpo a agendas no mínimo questionáveis.

Poderia pensar-se que actualmente o mundo estaria mais sensato e evitaria esses abusos da idade da inocência, mas não é o que parece. A demonstrá-lo está aí um remake da actuação da guarda vermelha em horário nobre e na televisão pública. Armada de uma cartilha pseudo-científica e motivada pela fantástica ideia de que o planeta precisa de ser salvo, uma simpática miúda camufla-se de tonta e entra pelas casas da malta a etiquetar a eito de “culpado e eco-criminoso” o desprevenido consumidor. E o coitado pasma! Boquiaberto, nem sequer consegue questionar como é que a mesma caixinha que passa o dia a incentivá-lo a comprar tudo e mais alguma coisa, tem o topete de o vir insultar às dez para as dez quando o gajo finalmente se senta em frente ao televisor e se prepara para rematar mais uma esgotante jornada de produção consumindo o telejornal da Felgueira ! Não fosse a estupefacção e decerto punham a moça na rua. Mas não. Revelando um notável estoicismo, submetem-se. E a procissão lá foi fazendo o seu caminho sem que o Sr Paquete de Oliveira dê mostras de ter algo a dizer.

O programinha chama-se “desafio verde” e não é novo mas mudou de atitude! Uma mudança que não passaria de mais um  desvario televisivo se não se desse o caso de várias escolinhas e muitos professores fofinhos apoiarem e promoverem a iniciativa. Acham, dizem, que estão a fazer educação ambiental. Mas o que assim revelam é que são uns imaturos semi-instruidos que não percebem nem o que é educar nem o que é ambiente. Levianamente, estes kidos estão apenas a fazer da escola uma variante verde aos campos de treino onde se doutrinavam as juventudes maoistas. E a contribuir activamente para que o site recentemente criado pela PGR para recuperar a tradição pidesca dos bufos, possa também vir a revelar-se um enorme sucesso para a denúncia verde anónima.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A Propósito do Azeite

A generalidade das ideias que têm sido propostas para ultrapassar o que tem vindo a ser diagnosticado como ‘estado anémico’ da economia nacional, referem habitualmente a necessidade de obter ganhos na produtividade, de melhorar a competitividade, de desenvolver o potencial de crescimento da economia e por aí, espera-se, fomentar o emprego. Quando se fala destas questões, isso é feito como se fossem obvias para todos as origens dos problemas que se pretende resolver. Ora a discussão especifica mostra que não é bem assim. O debate politico-económico bloqueia na descrição dos factos macroeconómicos, e revela claras insuficiências no entendimento critico das dinâmicas sociais que as politicas concretas induzem a níveis mais desagregados.

Concretizo.

Há dias foi inaugurada em Ferreira do Alentejo (FA) uma unidade industrial que é descrita como um dos maiores e mais modernos lagares de azeite do mundo. Uma capacidade instalada para processar mais de 900 t de azeitona por dia produzindo qualquer coisa como 200 mil litros de azeite, são números impressionantes. Para se ter uma ideia do que isto significa repare-se que junto à Estação do Crato está em funcionamento um lagar convencional, que era modelar há 25 anos, mas que processa numa campanha o que este de Ferreira poderia processar num dia. E, dado importante, enquanto o lagar do Crato dá trabalho permanente a uma dezena de empregados e temporário (durante a campanha ) a outros tantos, ao de Ferreira do Alentejo bastam quinze pessoas para operar a unidade !

Portanto, por comparação, os ganhos de produtividade são inquestionáveis e, por arrasto, a competitividade do produto final só pode beneficiar por isso. Mas e o emprego ?

Por si só a desproporção observada nas necessidades de mão de obra bastaria para fazer soar algumas campainhas de alarme quanto ao real impacto da produtividade e da competitividade da industria, neste tempo das novas tecnologias, na resolução de problemas estruturais de excedentes de mão de obra. Mas o caso é que os efeitos das novas tecnologias no emprego na fileira do azeite, não se limitam ao sub sector da transformação.

Os 10.000 ha de novos olivais intensivos que irão alimentar o lagar de Ferreira, também estão naturalmente desenhados para maximizar a produtividade e a competitividade. Quer isto dizer que só no que à apanha diz respeito, um operador e a respectiva máquina de nova geração colhem num dia o que uma equipa de 12 pessoas colhe numa semana num sistema de mecanização convencional ( vibradores, aspiradores, crivos mecânicos, toldos…) que há 25 anos representava o topo de gama.

A comparação poderia prosseguir para montante ou para jusante porque tem inúmeras ramificações. Deixo apenas uma para exemplificar. O método de controlo de infestantes nestes olivais intensivos já não são as ovelhas , mas os herbicidas aplicados mecanicamente pelo mesmo operador que antes andou a fazer a colheita, e que é o mesmo que controla a fitossanidade e a fertirrigação. Não havendo ovelhas, além dos pastores, também tenderão a desaparecer os tosquiadores, os “roupeiros” ( fabricam o queijo ), os veterinários e por aí adiante.

Então não se mudava nada ? A questão não é essa. A mudança é inevitável. O que não é inevitável é que seja liderada pelo modelo económico vigente como se fosse uma entidade com vida própria impossível de controlar.

Enquanto nos anos sessenta e setenta do século passado a industria e depois os serviços foram autenticas ‘esponjas’ para absorver o excedente de mão-de-obra que a mecanização gerou na agricultura, a automação e a informatização que entretanto se desenvolveram estão também elas a gerar excedentes de empregos. Só que agora afectam todos os sectores de actividade e desapareceram as antigas almofadas de amortecimento.

A demografia tem tempos lentos de resposta à mudança. Esse tempos têm sido claramente ultrapassados pela velocidade que a modernidade conseguiu instalar nos métodos de produção e nos modelos convencionados de organização da economia. No caso português, ainda que o potencial de crescimento da economia possa não ter ainda sido atingido, é possível que os reajustamentos nos desequilíbrios entre disponibilidades e necessidades de mão de obra já não possam ser feitos apenas pela (re) qualificação dos trabalhadores. A tendência do paradigma económico vigente tem sido consistente: cada vez precisa de menos gente para funcionar.

No limite, este desacerto entre a economia e a demografia, não se exprime apenas no desemprego e nos custos sociais directos que acarreta, nem se resolve apenas com mais crescimento capaz de gerar receitas bastantes para assegurar á população que não encontre colocação no mercado de trabalho subsídios que lhes permitam fruir de níveis de vida aceitáveis. Esse desacerto tem outros custos que aparentemente têm sido insuficientemente ponderados. Entre eles os custos culturais de longo prazo associados às rupturas que se têm produzido com saberes consolidados nas soluções tradicionais de ocupação e aproveitamento do território. Está  por demonstrar se, a prazo, o somatório desses custos não irá ultrapassar os ganhos de competitividade e produtividade que actualmente se procuram.

Ou seja, confirmando-se o que já se sabia, isto é, que os modelos económicos liberais entregam à volatilidade emocional dos mercados a regulação dos desacertos entre a dinâmica da população e a gestão dos recursos, talvez fosse sendo tempo de trazer á discussão ideias inovadoras para dar corpo a um paradigma e a um modelo de governança que, tendo as pessoas como prioridade, fosse capaz de gerir com o mínimo de rupturas a velocidade a que se processa a mudança.

A aposta na manutenção e na melhoria das condições de operação dos lagares e olivais existentes, seguramente que não iria maximizar as possibilidades que as novas tecnologias implementadas em FA trouxeram ao sector do azeite. Mas muito provavelmente desempenhariam melhor o papel de gerir de forma optimizada o processo de mudança das regiões olivícolas em que se inserem.





sábado, 13 de novembro de 2010

Meio cheio ou meio vazio ?


Há três formas  de descrever um copo meio de água: a realista, que constata  que o copo está meio;  a optimista , que o descreve como  quase  cheio;  e a pessimista.  Perante um copo meio,  o opinativo lusitano não tem dúvidas: ‘é evidente que o copo está  vazio’ -  dirá !

Exagero ? Veja-se aqui:  62% dos investidores, pode deduzir-se,  não acredita que Portugal entre em incumprimento de divida; mas a noticia é que  38% acredita que irá entrar em incumprimento!!

Ou seja, para a opinião publicada na  Lusitânia, nunca irá  bastar que Portugal esteja a fazer uma boa prova na corrida do   paradigma de prosperidade em que nos inscrevemos. Não é relevante  que PT esteja no pelotão da frente, que se encontre no grupo dos países mais desenvolvidos e com melhores níveis de rendimento e qualidade de vida que,  de acordo com vários  critérios internacionais, tenha vindo a ganhar lugares  de forma consistente  nas  tabelas dos rankings que se inventam para medir essas coisas. Não! O que importa é que PT continua   entre os “piores” da Europa. E enquanto houver 1% de opinião negativa sobre qualquer coisa, ela terá  sempre prioridade nas agendas sobre  os restantes 99% de opiniões positivas.

Quem não conheça a alma lusa, poderia ser levado a olhar para esta  estranha disfunção  como uma coisa positiva. Pensaria: gajos exigentes, estes lusitanos, que só se dão por contentes com o pleno e o primeiro lugar de todos os pódios. Mas estaria  enganado. Se amanhã PT aparecesse em primeiro lugar nalguma coisa, o mesmo gajo que hoje brada que somos um ‘atraso de vida’, afiançaria “que isso se deveu a uma manipulação estatística” qualquer e a responsabilidade, claro, seria  dos “objectivos eleitoralistas do sócrates” que na altura estivesse de serviço. Ou seja, para o especialista na pinocada opinativa que prolifera na opinião publicada na costa atlântica  da Ibéria, o último lugar de Pt numa tabela qualquer é uma  espécie de certificado de garantia da qualidade e isenção de uma estatística.

A persistência desta postura,  não só deforma a realidade como actua sobre ela, criando um mal estar difuso em que assenta   uma percepção pessimista da história e do futuro. Pode haver má vontade ou interesses esconsos nesta abordagem. Mas estou convencido aquilo que  melhor a explica é o  provincianismo. O pessimista luso à solta nos média,   é por definição um provinciano semi-instruído e sem mundo.

Nos últimos anos essa sub-espécie  de gente  que tem do mundo a ideia do seu  próprio  umbigo, que diz que conhece a Alemanha porque esteve num fim-de-semana de chuva  em Berlim,  e que conhece França porque no regresso o avião fez escala em Orly, deu um salto evolutivo: deixou o sofá onde costumava mandar bocas sobre a táctica de Jesus nos clássicos no Dragão, sentou-se em frente do computador e descobriu o meio ideal de reprodução assexuada com que sempre tinha sonhado para evacuar sem grande esforço as suas frustrações: a  blogosfera e as caixas de comentários.

Para alguns  lusitanos, a  blogosfera está para a cidadania da mesma forma que a travessia a pé da Ponte 25 de Abril está para a maratona de Lisboa: não se precisa correr, quanto mais treinar . Basta aparecer, mandar umas bocas,   falsear  isto,  insultar os do costume,   para se fazer prova de vida. Outros que se cansem a fundamentar o que argumentam  que a fina-flor da bloga lusa cá ficará à espera  para dar a sua opinião. Avalizada, claro, pelos consensos dos 38% .



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Desenvolvimento Humano segundo a ONU

Desde 1990 que o principal instrumento de divulgação da actividade do PNUD passou a ser o seu Relatório . Nele, além das bases filosóficas que norteiam a Instituição e das estratégias a que recorre para as implementar, o PNUD tenta aferir a evolução do estado do mundo através de um índice que cunhou com a designação de IDH ( índice de desenvolvimento humano ).

Inicialmente este índice foi construído com três indicadores centrais :
.longevidade (da esperança média de vida infere o estado da saúde );
.conhecimento ( aferido pela taxa de alfabetização para refectir a capacidade de cada um potenciar o seu governo);
.padrão de vida (estimado pelo PIB per capita, para dar conta da produtividade e do poder de compra )

Resultava da natureza destes indicadores que os países com maiores IDH eram naturalmente os ricos cujos cidadãos chegassem alfabetizados a velhos.

O reconhecimento de que esta trindade era claramente insuficiente para exprimir as fundações filosóficas do paradigma do PNUD, que remete também para a equidade, sustentabilidade e autonomia, levou a progressivas alterações das suas bases de cálculo. O Rendimento Bruto per capita substituiu o PiB per capita, o conhecimento passou a incluir a escolarização, e foram introduzidos outros factores de correcção, nomeadamente para a equidade e para a sustentabilidade.

Contudo, ainda assim, o IHD continua a ser melhor nas favelas do Rio de Janeiro que nas aldeias do Alto Xingu! E como a correcção da sustentabilidade se calcula com base em indicadores tão improváveis como as emissões de carbono, a percentagem de áreas protegidas e a poupança, Cabo Verde tem visto o seu IDH cavalgar posições a reboque de algo tão pouco sustentável como são as remessas dos seus emigrantes. Pela mesma lógica, não será por ter na exportação de recursos não renováveis ( petróleo ) a sua principal fonte de receita, que a Noruega verá em risco a sua liderança mundial do ranking IDH.

Por conseguinte, o que o Relatório publicado pelo PNUD faz, é produzir uma imagem do mundo a partir de um perspectiva ideológica standardizada pelo paradigma ocidental que adoptou. Pode-se discutir até à exaustão a objectividade dos critérios ou as boas intenções subjacentes, trabalhar na melhoria de indicadores ou dos instrumentos de medida. Mas nada disso retira à agenda do PNUD a sua propensão universalista, arrefece o ideário missionário de muitos dos seus mentores, ou dilui o carácter corporativo em que se tem enquistado.

Apesar disso, seria de esperar algum pudor na facilidade com que, apoiado nos crescimentos do IDH, O PNUD decreta o que significa melhoria de qualidade de vida, bem estar social ou felicidade. Assumir que o conhecimento que importa tem na escolaridade a sua fonte de eleição, pressupor que a boa economia é a do consumo, acreditar que a saúde como conceito holístico se exprime na longevidade, além de ideológico é profundamente redutor.

Não viria daqui mal de maior ao mundo se no limite este género de concepções não tivesse qualquer possibilidade de contaminar as decisões politicas. Ora como essa possibilidade existe, não será de estranhar que um destes dias alguém se lembre de transferir para as favelas do Rio de Janeiro os povos do Alto Xingu , com o argumento de os  subir no ranking IDH. Infelizmente a história mostra que mesmo as narrativas absurdas, quando incansavelmente repetidas, tendem de algum modo a materializar-se.


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Mundo Está Melhor ?

Este texto do Público tem que se lhe diga. O Jornal tem em tão boa conta a autoridade da ONU que nem sequer se dá ao incómodo de ensaiar uma virgula de critica ao seu conteúdo. Já sabia que as várias corporações sediadas na ONU estão em sintonia e fazem lobby umas pelas outras. Mas é interessante verificar que até na dita periferia contam com zelosos colaboradores . Se o PNUD diz que o mundo está melhor, por que iria um jornal português tentar perceber por que o afirma? Se o PNUD garante que a única coisa capaz de pôr em causa o sentido desse melhoramento são as “alterações climáticas”, por que haveria o mesmo jornal de nos elucidar sobre os fundamentos de tão avalizada sentença? A verdade é que nem sequer nas academias se perde muito tempo a questionar a bondade destas “verdades”, mas não é disso que quero falar agora.

O meu tópico é outro. Eu gostava imenso, confesso, que o relatório do PNUD e as respectivas conclusões de que o mundo “melhorou”, fosse efectiva e não deixasse margem para dúvidas. Mas deixa. E deixa por duas razões.

Em primeiro lugar porque, por muito boas que tenham sido as capacidades de comunicação de Amartya Sen, o conceito de desenvolvimento humano que propôs e a ONU adoptou tem inúmeras fragilidades. Em segundo lugar porque as politicas com que a ONU tem tentado implementá-lo e os critérios com que procura medi-lo ( Indice de Desenvolvimento Humano - IDH ), só têm contribuído para acentuar essas fragilidades.

A principal fragilidade do conceito de desenvolvimento humano, é a sua carga ideológica. Sen pensou o desenvolvimento humano como uma versão melhorada de um paradigma concreto – o paradigma ocidental. Por isso não diverge da ortodoxia progressista e não questiona a ordem instalada como base aceitável para pensar o futuro.

Nesse quadro cartesiano, não admira que Sen tenha dado à produtividade um papel central . É nesse pressuposto que ele propõe o reforço das capacidades do individuo. No entanto as capacidades a que se refere não podem ser vistas em abstracto. A capacitação em concreto perde sentido fora do paradigma que a produz. Ora Sen não assume em abstracto que pessoas mais capacitadas têm melhor acesso a oportunidades de realização. A ideia de entitlement como motor do desenvolvimento, deriva directamente da observação que nos processos vigentes sob égide no paradigma ocidental, as qualificações têm feito  a diferença no acesso às novas oportunidades geradas pela industrialização e terciarização da economia e na mudança que o mundo tem tido.  Mas reflectindo assim, Sen deixa subentender o mundo como uma espécie de feira de oportunidades inesgotáveis e pre-determinadas,   onde basta o domínio dessas capacidades para aceder às oportunidades  que correspondem às expectativas de cada um.
No entanto, as oportunidades não são infinitas. Elas são limitadas, nomeadamente  pelas necessidades sociais e pelos recursos disponíveis. Não serve para muito ser-se profundamente capacitado em agricultura se não se tiver terra para cultivar. Além disso há a questão da conflitualidade entre as expectativas dos indivíduos e as necessidades inerentes ao funcionamento da sociedade. Uma sociedade não é mero somatórios de indivíduos que coexistem num espaço como ilhas  sem relação. Ela cria necessidades próprias que implicam em maior ou menor grau sistemas de divisão do trabalho. Ora não há espaço para todas as expectativas nem todos os desempenhos são igualmente atractivos.

A Europa já vive esse desfasamento entre capacidades, oportunidades e desempenhos. É natural que um licenciado em ensino de biologia que já não cabe no mercado de trabalho tenha relutância em  aceitar  oportunidades por preeencher  na agricultura ou na construção civil, tradicionalmente menos atractivas. Mas a deriva que conduziu a esta estranha coexistência de desempregados de luxo sem utilidade no mercado de trabalho e a importação de mão de obra não qualificada para preeencher as necessidades básicas de funcionamento dos lideres do mundo dito desenvolvido, não aparece reflectida nos critérios de desenvolvimento humano.

Para a ONU, no entanto, as teses de Sen tiveram o mérito de gerar consensos fáceis. Como principio, o reforço das capacidades dos indivíduos não merece discordância. E o PNUD precisava de um paradigma consensual que servisse simultaneamente de justificação para quem lhe financia os projectos e para quem deles beneficia.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A banalização da asneira



O disparate cansa! A asneira tem vindo a transformar a discussão da generalidade das questões económicas e financeiras, numa canseira medonha. Pela parte que me toca, esse cansaço até não tem muito a ver com o habitual burburinho popular, quase sempre reflexo e impressionista . O que particularmente me incomoda é a produção sistemática dos discursos estupidificantes que lhe dão azo. É que essa produção é promovida por quem tem obrigação de fazer muito melhor.

A ideia peregrina em circulação segundo a qual a despesa do Estado é toda ela um desperdício de impostos e um contributo liquido para o deficit das contas publicas, é uma delas. Esta tese deixa implícito que a moral é necessária às performances do capitalismo. Ora isto é pueril. O capitalismo não tem nada a ver com moral, as empresas não são misericórdias, e os seus resultados não têm qualquer relação com a ética das decisões económicas.

A acumulação capitalista que todos reivindicamos para aceder ao paradigma de qualidade de vida que incorporamos, alimenta-se da circulação do capital e é perfeitamente alheia à natureza ou à utilidade material, social ou moral, do que se transacciona para o efeito. Haja mercado que a lógica intrínseca ao sistema trata do resto. Para a “prosperidade capitalista ” , é perfeitamente irrelevante se os meios financeiros que se geram resultam de despesas de investimento efectuadas na educação, na saúde, num bordel, na produção de minas anti-pessoal, ou no trafico de órgãos. Mas parece que ainda há quem não tenha percebido isso. Ou percebeu e faz de conta que não percebeu, por razões que não me interessam nem me merecem o mínimo respeito. Certo é que quando se criticam as jantaradas dos tipos das finanças, ou da malta da câmara de Oeiras, baralha-se tudo: deontologia do serviço público, economia capitalista, contabilidade pública e parvoíce qb.

Do ponto de vista do capitalismo liberal, uma jantarada de qualquer repartição paga pelo orçamento, é apenas a economia à mesa a alimentar-se para produzir mais prosperidade capitalista. Isto é, dinheiro de impostos a pagar salários a cozinheiros e empregados de mesa, géneros a grossistas, retalhistas e produtores, rendas a proprietários, a fomentar o consumo, o mercado, a gerar receita para os empresários, juros para os bancos, a contribuir para o crescimento e para a cobrança de impostos para pagar mais jantaradas, ou auto-estradas ou cartazes de campanhas presidenciais, ou outra cena qualquer. Na verdade, para a boa performance económica e contabilista deste modelo em que vivemos, dá mais resultado gastar dinheiro com jantaradas de leitão na Mealhada, do que pagar tratamentos para a leucemia em Chicago a uma criança com essa doença, ou financiar bolsas de estudo para doutoramento em economia em Harvard. Chocante? Pois é, mas é assim mesmo. Os tratamentos médicos e as bolsas de estudo no exterior são importações, aumentam o deficit; as jantaradas de leitão são consumo interno de produto interno, contribuem para o crescimento desta economia. É para evitar esses absurdos que se diz que a economia deve estar ao serviço da politica, e não o contrário, como vem sucedendo. Mas não é com exemplos descontextualizados e discursos estupidificantes que isso se explica.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

"Portugal perde com Espanha"

Portugal perde com Espanha” - titulava a primeira página do jornal. No desenvolvimento inferia-se que se tratava do resultado desportivo de um evento que teve lugar há umas semanas. Só lá para o fim da noticia é que se percebia que Portugal tinha perdido com a Espanha, sim, mas na final do campeonato da Europa de hóquei em patins. Portanto, a noticia poderia ter sido encabeçada com algo do género “Portugal de novo no Pódio” ? Podia, mas não era a mesma coisa. Ou seja, não servia a propensão instalada para menorizar qualquer aspecto da vida nacional, modalidade narrativa que se adequa perfeitamente à demonstração da tese fadista de que somos um atraso de vida.

A coisa tornou-se tão consensual que até nos meios académicos o mais insuspeito phd já se dispensa de a fundamentar. De resto, se instado a isso, escapatórias não lhe faltam. As mais correntes são as “comparativas”, e aí a inteligência lusa segue duas vias complementares. A primeira investida é a impressionista. Nesta variante envereda-se por generalizações e comparamo-nos com a França ou com os Estados Unidos, como se a França fosse apenas Paris ou os USA Nova Iorque. Bem, quem conhece França sabe que a única coisa em comum entre o planalto central e a bacia de Paris é a língua. E o Utha tem tanto a ver com Nova Iorque como a Sicilia com a Lombardia ou Barrancos com Cascais. Confrontados com a falta de mundo que se expressa nessas comparações reducionistas, o fadista luso refugia-se então nos comparativos numéricos. Mas de que massa é feita a objectividade que se atribui a certos números ?


A necessidade de entender o mundo de uma forma tão objectiva quanto possível, levou à quantificação das narrativas que sobre ele produzimos. Os números têm a grande vantagem de constituírem uma linguagem que não necessita de tradução . Além disso são fáceis de representar, comparar, hierarquizar. Portanto vulgarizou-se o uso de indicadores e índices numéricos para representar certos fenómenos, e isso tem muitas vantagens. O problema é quando ao ler os números nos esquecemos que eles também servem para representar a realidade, mas não a esgotam. O desenho minucioso dos alçados e plantas de um edifício não dizem tudo sobre a sua habitabilidade. Quando esse equivoco acontece, abre-se a porta a uma infinitude de juízos qualitativos, nem sempre correctos, pois os magníficos edifícios de Gaudi têm tanto de impressionante como de inabitável.


O mesmo se passa com muitos edifícios numéricos: escodem por detrás da fachada detalhes nem sempre virtuosos. Percebe-se que uma média de resultados num exame nacional de matemática ou um PIB per capita, p.e., não são medidas com a objectividade do kilograma ou do metro linear. Dito assim qualquer um vê nisto uma evidência: 10 kg de laranjas não é uma medida com a mesma objectividade quantitativa de um 10 a matemática. Esse compreensão deveria levar a cuidados redobrados na leitura de informação de base numérica, fosse de um ranking de escolas em função dos respectivos resultados médios num exame de matemática, seja de um ranking de países em função do respectivo PIB per capita. Mas curiosamente a tendência mais comum não é essa. Pelo contrário. O mais frequente é atribuir automaticamente mérito às posições de topo e demérito às da cauda.

Quando se verifica que a Noruega é líder europeu na riqueza e Portugal segue na cauda desse pelotão, passa-se imediatamente para as qualificações. E não se poupa na adjectivação: Diz-se então que a Noruega é um pais desenvolvido e Portugal, normalmente referido como “este país” um “atraso de vida”. Se questionado sobre a objectividade da qualificação, das duas uma: ou o opinador se refugia no silêncio ou atira à cara do perguntador a “autoridade” dos “critérios internacionalmente aceites”. Poderia prosseguir esta prosa implicando com a natureza desses “critérios” e respectivos mecanismos de “aceitação internacional”, que tinha muito por onde cortar. Mas para o que pretendo vou fazer de conta que os aceito como bons.

Então, à luz dos tais critérios internacionalmente aceites para quantificar desenvolvimento e prosperidade, como o PIB per-capita, ou a escolaridade, ou o coeficiente de Gini ( para a pobreza ) , as actuais performances portuguesas são de facto inferiores às dos noruegueses. Mas será correcto inferir-se dessa diferença uma qualidade de vida inferior ou um atraso histórico devedor de uma superior capacidade liquida dos noruegueses para atingir os resultados em apreciação?

Talvez não. Na realidade os países são muito diferentes. São diferentes em tamanho, em população, em recursos , em história, em cultura. E em cada momento da história essas diferenças exprimem-se de maneiras distintas que dificilmente se anulam nos indicadores e índices numéricos com que se caracteriza os seus percursos. Mesmo que o paradigma seja o mesmo, as diferenças objectivas que se referiram levam a trajectos e tempos diferentes para os alcançar. E mesmo que alguns dos resultados alcançados possam ser idênticos, não têm necessariamente o mesmo impacto. Note-se que para idêntica capacidade de produção bruta de riqueza, basta que um país tenha metade da população de outro para que o seu pib per capita seja o dobro. E quanto à formação dessa riqueza, note-se que os números do PIB são omissos em especificações que importam. Não é indiferente se a riqueza se acumula como receita da concessão da extracção de petróleo das respectivas plataformas continentais, ou se implica a captura racional, transformação e venda de sardinhas enlatadas. Raro é que se tenha em conta essas diferenças substanciais quando se envereda pelos “comparativos”, e percebe-se porquê: ficam em xeque as teses do “atraso estrutural português”.

Tende-se a esquecer que a realização do paradigma de prosperidade com que Ocidente embirrou, fundou-se no capitalismo industrial. Para o promover, os países recorreram historicamente a dois tipos de recursos: energia fóssil e mais qualquer coisa. Quem entrou na corrida desse paradigma com o respectivo sub-solo recheado de energia fóssil , à partida já tinha meio percurso de vantagem; quem só tinha mais qualquer coisa, ou fez batota ou precisou de pedalar o dobro. Portugal, mesmo que possa ter-se sentido tentado a fazer batota, enveredando por exemplo por oportunismos à la suisse , ter-lhe-á faltado para isso a oportunidade ou foi acometido por algum assomo ético, não sei. Sei que nos sobrou pedalar. E quem faz desse processo leituras sérias isentas de contaminações ideológicas, não consegue deixar de se surpreender com a performance portuguesa no século xx. Reconhecê-lo publicamente é que é uma maçada, pois contraria a tradicional tese fadista a que nos habituamos. Há na alma lusa essa espécie de alergia às narrativas de sucesso em causa própria. A aposta provinciana nas narrativas miserabilistas, é um valor seguro, vende sempre, como é o caso da que empresta o título a esta prosa.