Comparar os frangos que crescem aqui pela quinta com os “frangos do campo biológicos” cuja comercialização tem vindo a ser incrementada, é a mesma coisa que colocarem-me a mim no Ninho do Pássaro a competir na final dos 100 metros ao lado das máquinas de correr que lá estiveram.
Até o meu fornecedor de rações sabe disso. Sempre que lá vou abastecer-me da mistura da cereais triturados que uso para complementar a dieta de amoras e gafanhotos que os meus pintos apanham por aí, o Victor nunca esconde a sua perplexidade perante a minha recusa pela “farinha” sem a qual, garante, “os pintos nunca mais crescem“. E tem razão! Sem a tal farinha, os pintos de Maio só lá pelo Natal têm uma carcaça que se veja. Até Outubro, parece que só lhes crescem os ossos, tipo os adolescentes, altos mas sem massa, e só a partir daí começam a ganhar volume. São seis meses para obter um frango acabado com uma carcaça de dois quilos, algo que o bio-do-campo faz em menos de metade do tempo. Claro que há frangos ainda mais rápidos. Os incontestáveis campeões de crescimento são os chamados frangos de aviário: em 42 dias chegam aos dois quilos! Mas esses, diz-se, “correm dopados”.
Em plena ressaca Olímpica, a questão do doping é um tema actualíssimo. E boa parte dessa actualidade deve-se às eternas controvérsias em redor do que é e do que não é passível de ser considerado doping. A controvérsia não se deve tanto a qualquer insuficiência semântica, pois entende-se claramente como dopante a substância adicionada a um metabolismo para lhe alterar a performance, mas ao reconhecimento de que existem muitas formas de o fazer. De tal modo que, a páginas tantas, o que se discute já não é a bondade da prática de “alterar” metabolismos, mas apenas a sua “legalidade”.
De facto, é pacifico que praticar desporto e correr atrás de medalhas olímpicas são coisas distintas. Da mesma forma que nenhum atleta em perfeito juízo tem a veleidade de competir pelas medalhas dos 100 metros só com treino e dieta alimentar, também não há ninguém em estado de razoável saúde mental que invista em concentrar milhares de animais em densidades que vão até 24 kg / m2 ( leia-se: no mínimo 12 frangos / m2 - versão de aviário-bio ) num programa de acabamento sem a garantia de performances mínimas.
A primeira medida para as assegurar chama-se selecção genética. Nos dias que correm, diversidade genética é conceito que faz pouco sentido dentro de um pavilhão de avicultura. Basicamente, pode-se comparar a avicultura ao que seria o atletismo se todos os velocistas das olimpíadas fossem descendentes dos jamaicanos Usein Bolt e Shelly-Ann Fraser. Mas mesmo assim não chega, pois além desse trabalho de selecção é preciso ainda um protocolo profiláctico qualquer, porque das duas uma: ou ele existe ou a empresa vai à falência ao primeiro embate duma banal coccidiose. De resto, nem se percebe a relutância em aceitar esta realidade quando é sabido que não há gaiato que seja aceite no infantário ou na escola sem o respectivo boletim de vacinas actualizado.
Como toda a gente sabe que é assim que as coisas funcionam, o que se tem feito é regulamentar a prática através da criação de listagens de produtos e procedimentos autorizados. É o que se faz na avicultura em geral e nesse aspecto a regulamentação da avicultura AB é apenas mais um regulamento, pois importa que se percebam duas coisas. A primeira é que o que não é autorizado não é necessariamente pior do que o que é permitido - pode apenas querer dizer que há produtos e práticas cujos fabricantes ou mentores ainda não conseguiram o bastante para os legalizar. A segunda é a de que ser permitido não significa que seja inócuo, mas apenas que tem efeitos que se consideram aceitáveis à luz do conhecimento disponível, que não se conhecem efeitos nocivos, ou que são produtos para os quais os respectivos promotores conseguiram melhor que outros percorrer as etapas necessárias à respectiva homologação.
Claro que a AB pretendeu transmitir a ideia de que ampliava a margem de segurança subjacente a este sistema, e merece esse crédito formal. Mas se também ela é súbdita da mesma lógica da competição ( financeira ), é natural que a indústria não se poupe a esforços no sentido de multiplicar as opções disponíveis para a tornar mais “competitiva”. E a realidade é que entre o uso de hormonas e de antibióticos, habituais na avicultura industrial “clássica”, e o uso dos premix de nova geração, tolerados na produção do “ frango do campo biológico”, a diferença está mais no modo como operam do que nos resultados que produzem, uma vez que qualquer deles altera as performances normais no mesmo sentido de uma maior produtividade.
Por outro lado, para se controlar o uso do que não é permitido ( sejam substâncias ou doses ), tem que se saber o que se procura. No entanto, mesmo em relação aos produtos que se conhecem, são centenas as variantes possíveis da sua forma de apresentação. Os nitrofuranos são disso bom exemplo. Basta que se altere o “aspecto” do princípio activo na “embalagem química” em que se apresenta, para que passe incógnito nas análises correntes, e só o acaso, a denúncia ou a mudança de métodos de análise permite eventualmente identificá-lo. É devido a situações desse género, que só há um ano pediram à Marian Jones a devolução do Ouro que arrecadou em Sidney, pois na altura estava “tudo bem”. Quer isto dizer que há dopantes cuja existência oficial se desconhece. São os produtos duma ciência marginal altamente lucrativa e que não é necessariamente pior que a oficial, porque em relação a estas coisas não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que funcionam segundo o primado do interesse público e que os lobby dedicados à preservação dos monopólios comerciais instalados não existem.
São estas derivas que fazem com que a “avicultura biológica” se posicione em relação à produção de frangos da mesma forma que os Jogos Olímpicos estão para a prática desportiva. Faz-se a apologia da tecnologia de ponta presente nessas iniciativas e invoca-se o seu eventual efeito de locomotiva. Mas por cada puto que inicia a prática desportiva a reboque do salto do Évora, quantos sapatos da Nike e fatos de treino da Adidas se vendem? Não haveria outros processos para fomentar o desporto? Talvez houvesse. Mas a forte componente de marketing subjacente a estas actividades tem o mérito de nos levar a discutir o acessório, evitando o essencial dos sistemas em que se enquadram. Isto porque prende toda a nossa atenção a manifestações cuja principal função é a de alimentar dinâmicas completamente alheias à função social que importava servir. Essa, permanece prisioneira das molduras ideológicas com que nos ensinaram a ler o Mundo. No caso da avicultura, o que importaria discutir não são as suas modalidades possíveis, mas as premissas em cuja concepção se apoia. Nomeadamente a necessidade-tabu de incluir na dieta alimentar uma capitação significativa de carne de frango e a consequente organização dessa produção de forma completamente desligada do território em que acontece.