segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

E depois, Senhor Doutor ?




- Portanto, agora, vamos fazer um cateterismo…
- Vamos fazer o quê, Sr Doutor ?!...
- Um cateterismo…um exame…
- Que serve para…
- Para verificar a extensão das lesões !
- Ahhh…e…e… depois, Sr Doutor ?
- Depois, ficamos a saber exactamente o que aconteceu…
- Sim, claro, mas e depois ?
- Bem…depois…-
e o cardiologista olha-me como se me pedisse ajuda, mas eu retribuo um olhar que corrobora a pergunta: “sim e depois ?
- Bem…de facto !
- Então nesse caso, se o Doutor não se importa, ficamos assim, não achas filho ?

Claro que acho. Parece-me que faz sentido. Sem depois, ou seja, sem nada a acrescentar ao prognóstico, para quê detalhar o diagnóstico ?!

De resto um breve olhar de relance pelas macas que se acumulavam pelo SO do Hospital bastava para perceber inúmeras situações sem “depois”, de volta das quais a medicina se atarefava a adiar um ponto final inevitável, trocando o conforto da morte pelo desconforto de dias sem dignidade nem sonho.

-
Repare …é que …o senhor fez um enfarte, é uma situação grave, uma situação de risco, e não posso dar-lhe alta nestas condições de prognóstico reservado…no mínimo terá que permanecer em meio hospitalar não vá ocorrer alguma recaída…
- Recaída, Sr Doutor ?! Então eu tenho 76 anos, dois AVC’s, diabetes, hipertensão, já vou no quarto enfarte, e acha-me com cara de quem está preocupado com uma “recaída”?!
-…
- Sabe o que lhe digo…falta-me tempo para o que ainda tenho a fazer…e o de que disponho, seja ele qual for, não é seguramente para o passar aqui consigo!! Ahaha… faça o favor de não me levar a mal por lhe ter dito isto, mas é a verdade….
-…
- Portanto, Sr Doutor, queira tomar as providências necessárias para que eu possa assumir as minhas responsabilidades…

Enquanto ele se veste e barafusta, olho em redor e confirmo o peso da inutilidade e a desumanidade de esforços e técnicas que levam a lugar nenhum.

-Juramento de Hipócrates em defesa da vida?! Está bem ! Mas é isto a vida?
E aponta com um gesto de cabeça para alguém no outro lado da enfermaria ligado a tudo quanto era máquina, obrigado a respirar, quando a única coisa que queria e que fazia sentido era …parar.
Mas...quem diz basta ?

De repente tornou-se inaceitável “morrer de velho”. Morre-se de pneumonia, enfarte, avc, colapso renal, Mas quando se tem mais que uma certa idade o que simplesmente acontece é que a probabilidade de falência dos sistemas que nos mantêm dentro da esperança média de vida, aumenta. A partir daí tudo pode desmoronar a pretexto de coisas ínfimas porque, simplesmente, ninguém é imortal. E em vez de se cultivar a morte como parte do processo de vida, em vez de se cultivar a vida como um exercício em que o bem-estar também importa, cultiva-se a imortalidade e aborda-se a doença como se ela fosse mera questão técnica. Não é !

- Bem, sabes o que me apetecia ?
- Um duche ?
- Não ! Um sargo grelhado !
- Oh, homem… vamos a ele !

Será que de repente a mortalidade se tornou inaceitável? E vamos esticar a corda até onde? Cateterismo? Sim, claro. Uns buracos nos pulsos e nas pernas, umas mangueiras pelos canos e um gajo à rasca , para quê ?! Para nada !Porque não há possibilidade de reparação de “canalizações” dentro de quadros clínicos de grande vulnerabilidade. Seria a mesma coisa que tentar retirar a ferrugem de dentro de canos galvanizados com muitos anos. Limpam-se e rompem-se. Remenda-se aqui, estraga-se ali. E entretanto os dias pasmados e as noites sem dormir porque é impossível à lucidez abstrair-se do sofrimento dos que ao lado gemem, choram, obrigados a sobreviver para lá de uma vida já vivida.

- Quer dizer: quando eu era do “contra” e a PIDE me prendeu, ninguém me torturou, e agora que sou da “ situação” é que além de me prenderem outra vez ainda me querem torturar?! Ahahah! Era só o que faltava !!!

O termo de responsabilidade foi assinado, a alta também, e saímos à procura do sargo grelhado.

-
Insonso para mim, se faz favor ! Ahah!…Quando voltas cá, filho ?
- Em meados de Dezembro…
- O ano passado não chegamos a ir aos sargos…
- O que não faltam são sargos…
- Podem faltar é os dias …
- Até parece que nunca fomos à pesca à noite !
- Ahahah! Sabes o que não faltam ? Parvos! Ahahah! Cateterismo? Recaída ? Já vale a pena ! O pessoal perdeu o juízo !
- Ahahah!
- Hum…este sargo está uma delicia ... pena que tenha de ser insonso… mas… oh Zeca! –
vira-se para o dono da Taberna da Maré, e dispara
- Ontem deram-me uma sopa que você devia ter visto… eu nunca tinha visto nada assim…nem na tropa !! Queres mais sal, filho ?

10 comentários:

Fátima Lopes disse...

Ó Manuel,

Este texto está delicioso! Claro que a morte deveria ser encarada com a dignidade e o respeito que merece. Parece até que uma pessoa já não pode morrer, e ainda menos morrer em paz!

Para mim saia uma morte simples e sem tortura por favor!

Se estivesse por perto Manuel, até lhe dava um beijo por este texto!

Pink

Fernando Dias disse...

Sempre fui contra o encarniçamento terapêutico sem qualquer benefício para o paciente, ou sem qualquer efeito curativo. Já é diferente se fazermos tudo para aliviar o sofrimento. Neste caso relatado pelo Manuel, é respeitável a vontade do paciente depois de devidamente informado das probabilades acerca do que pode esperar e beneficiar com algumas aparentes torturas. Devemos salvaguardar a dignidade no morrer.

Conheço contudo casos que depois dos cateterismos, que não é tortura por aí além, viveram mais de dez anos com boa qualidade de vida, caso contrário teriam morrido logo a seguir, como aconteceu com outros nas mesmas condições antes do advento dos cateterismos terapêuticos.

Aqui está um assunto muito sensível que faz correr muita tinta e muita saliva, e por isso louvo o Manuel Rocha por trazer estes temas ao debate, porque não há dúvida que requerem alguma coragem e despreconceito.

Anónimo disse...

Sem argumentos humorísticos ou científicos...
Gostava tanto de ter ido comer um último cozidinho nas Furnas com o meu pai ao invés de o terem feito passar os últimos meses de vida longe da sua terra e da sua família....
Obrigada.
São

antonio ganhão disse...

Manuel, está a fazer-lhe bem ler-me...;)

"Trocar o conforto da morte pelo desconforto de dias sem dignidade nem sonho."

Profundo Manuel... se ao menos nós soubéssemos quando chegou a nossa hora. Inaceitável é que essa decisão caiba a outro, médico ou não, familiar, amante, estado ou o raio que o parta!

A morte sempre nos apanha de costas, entramos nela andando para trás, porque até ao último momento estamos virados para a vida, tentando fugir dela. O que não invalida a dignidade a que (julgo) termos direito.

Temos que encontrar por aí uma lareira para discutir estes assuntos… (lá no salão do Ministério?)

antonio ganhão disse...

Já agora, Manuel, no post anterior estava uma provocação minha... eu sei que se irrita quando desmascaro o seu lado citadino... ;)

Tiago R Cardoso disse...

Eu até estava numa de comentar mas começou a falar de hospitais e eu fiquei apreensivo.

Evidentemente que a vida é um bem precioso, no entanto não me parece que mante-la artificialmente seja o melhor caminho, no entanto eu aprendi, após o meu acidente, que o que não falta por este mundo é gente a viver artificialmente, ligada a maquinas, nem se apercebendo que já nem estão a viver.

quintarantino disse...

Se aprendessemos a viver com o facto de que todos os dias morremos um pouco, inexoravelmente, talvez pudéssemos apreciar melhor o sal e o sargo...

antonio ganhão disse...

O Manuel não está para respostas... o autor é superior ao balir do seu público!

Manuel Rocha disse...

Pronto, António, aqui me tem.

É evidente que como citadino que sou me faz imenso bem lé-lo nas suas derivas pelos territórios do Senhor da Eira.

O António traz-me aquele toque de ruralidade que é inspiração essencial para destilar ideias neste kaos urbano de onde escrevo.

Além disso chama-me e bem a atenção para a indelicadeza que estava a cometer ao não responder ao meu simpático público.

Mas além dos agradecimentos pela paciência que têm a ler-me que posso eu dizer ?

Sobre este tema em concreto, só tenho dúvidas e essas estão todas estampadas no texto. A única certeza que tenho é que se há momento na vida em que a dignidade importa, é na morte.

alf disse...

Este problema é muito complexo.

Para muitas pessoas, dar qualidade de vida não é deixarem-nas ir ao Sargo, é fazerem-lhe o cateterismo, assim se se sentem cuidadas, protegidas.

Depois, é preciso ver o lado dos médicos - se o médico disser: não podemos fazer nada de realmente útil, o que for será, e a pessoa tiver um enfarte no dia seguinte, ai jesus que no hospital se estiveram nas tintas, nem um cateterismo lhe fizeram...

O que é preciso é que nos dêm a possibilidade de assinarmos o termo de responsabilidade, de decidirmos que não queremos viver ligados à máquina. Até que preferimos viver sozinhos na nossa casa a sermos enviados para um lar...

Gostei muito daquela do antónio de que entramos na morte de costas!