sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Provincianismo é Fodido !


Como já reparou quem tem tido pachorra para me ler as divagações, a forma como tendemos a estar no território sem o perceber é um tema em que reincido com frequência. Não o faço por predilecção, mas por decepção. De facto, o que me faz regressar a ele é apenas o profundo desgosto que me causa esta deriva de género que uso apelidar de “provincianismo invertido” e que considero um dos sérios revezes culturais do nosso tempo.

Digo revés no sentido de desastre, de perda de capacidade de entendimento do que nos rodeia e por isso de retrocesso na nossa capacidade de sonhar avanços com sentido para a nossa humanidadezinha. E digo provincianismo invertido por analogia à forma como o definiu Pessoa: “ O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.” Ora desta vez o entusiasmo, a admiração, o pasmo, de que falava Pessoa, viraram-se para o campo e para as suas supostas virtudes bucólicas, num movimento mimético de adesão inconsciente e feliz revelador da mais completa incapacidade de o entender.

Nem sempre me é fácil explicar isto. Na dificuldade valem-me os amigos, que são uma fonte inesgotável de inspiração motivadora. Hoje, inadvertidamente, coube a vez à Blonde, cuja odisseia de fim de semana, descrita com a magistralidade que lhe é peculiar, teve por resultado a produção quase automática desta crónica. Na verdade, seguir o percurso e a estadia da Blonde em terras do Alto Alentejo, foi para mim um revigorante exercício de espanto perante a sofisticação cultural a que chegou a nossa incapacidade de ver para além do olhar.

Claro que as generalizações valem o que valem. Mas quando é da Blonde que se fala o caso muda de figura porque esta Blonde que me inspira não é uma loura qualquer. È uma Mulher sensível, culta, cosmopolita. No entanto, estas qualidades que são fáceis de lhe reconhecer, não bastaram para que o seu sentido urbano de observação do território por onde transita se revelasse capaz de sintonizar uma “estação” para o interpretar para além do caricato dos acidentes de percurso. E é por isso que me atrevo a generalizar este estádio cultural, pois se para a Blonde as coisas são assim, como podem deixar de o ser para esta sociedade culturalmente, essencialmente, urbana ?

De facto a Blonde, a mesmíssima Blonde que vai a Gizé admirar-se com as pirâmides dos Faraós, transita a caminho de Alter por uma extraordinária ponte romana arquitectada e construída num tempo em que ninguém sonhava com as tonelagens que ainda iria ter suportar dois mil anos depois, e dela só nos deixa palavras de espanto para a largura da dita : “é estreita”, diz ! Nada refere sobre as soluções de arquitectura e de engenharia que ainda a tornam útil nem sobre a filosofia de vida que a construiu e em que a noção de património subjugava a transitoriedade da forma à perenidade da função. Nada diz sobre o carácter estruturante daquela ponte em relação ao conceito de território no tempo em que foi edificada e á forma como “moldou” até aos nossos dias a humanização da bacia hidrográfica do Sor e do Raia. Aliás, a Blonde achou mesmo que a ponte ficava no “meio de nenhures”. Ou seja, a Blonde assustou-se com a estreiteza da ponte de Vila Formosa e com a eventualidade de nela se cruzar com um TIR e, atenta a essa eventualidade, nem sequer repara se a Ribeira de Seda leva muita ou pouca água. Não compara o caudal com nada porque não tem termo de comparação, claro. Mas para além disso também não partilha connosco um único pensamento divagante em redor de eventuais preocupações de pecuaristas que a jusante ou a montante já possam andar a deitar contas à vida quanto à forma de dar de beber ao gado quando Agosto chegar, pois estas coisas não se “vêem” e portanto não se comentam. Mas o mau gosto da estátua ao Alter Real sim, vê-se e comenta-se, embora não se “veja” mais nada, como a ocupação urbanística a que foram votados os melhores solos de Alter, por sinal os terrenos do Ferragial d’el Rei ( “ferragial” não tem a ver com ferro mas com forragem; “Ferragial d’el Rei ” eram os terrenos reservados à produção dos ferrejos, i.é, de forragens verdes, para os cavalos da coudelaria que D José mandou instalar em Alter ), onde a tal rotunda está implantada entre blocos de apartamentos e um estádio de futebol. A Blonde clama contra a chuva de Junho porque lhe estraga o programa hortícola e não compaginava com a indumentária seleccionada, mas não tem uma linha para os milhares de toneladas de fenos já encordoados ou enfardados que com essas chuvadas se estragam a eito, daí não deriva para as inevitáveis dificuldades na manutenção dos merinos dos Zés quando os restolhos terminarem e se os apriscos tardarem, nem a preocupa as sequelas de míldios que vão tirar o sono aos viticultores nos dias que se vão seguir a estes incidentes climatéricos. Observa a Blonde que não há o Expresso nem o Sol nos quiosques de Alter ( haverá, mas de encomenda ),mas não repara que além disso também não há comércio tradicional na Vila e que nas prateleiras de frutas e legumes da mini-grande-superfície que os sufocou, apenas as cerejas e as laranjas são de Portugal, e estão lado a lado, em Alter-do-Chão, imagine-se, com peras da China, maçãs do Chile, kiwis neo-zelandeses , papaias cubanas, bananas do Equador, cebolas espanholas , alhos duplamente franceses e, the last but not the least, com carne de borrego autraliana posta cá a preços com os quais só por milagre o Zé poderá competir se quiser amortizar o custo do ovil que traz em obra.

Para o estereótipo de uma certa forma de ( não ) ver que aqui tipifico na leitura do texto da Blonde, a ruralidade é também a antítese do stress e o sinónimo “ferpeito” de “colidade” de vida. Claro!!! Quem é que no seu perfeito juízo pode ter uma crise depressiva por ver meses de trabalho e toneladas de feno a apodrecer com uma chuvada tardia ? Como é que se pode reagir perante uma infestação de carraças em quatrocentas vacas senão com uma calma olímpica ? Melhor ainda, como é que se pode perder a calma se, ao mesmo tempo que se tem de passar quatrocentas vacas à manga para serem inspeccionadas pelo INGA, o motor de rega do pivot resolve pifar e entre reparações que se atrasaram e calores que se adiantaram se perderam vinte hectares de milho já germinado ? O preço dos borregos ou dos vitelos caiu para metade no leilão de Portalegre e a receita não vai dar para as rações quanto mais para a reforma da letra que se vence na próxima semana, mas quem é que vai estar a pensar nisso quando acorda rodeado do chilreado de mil avezinhas ?

Esta leitura desfocada do real que tem por protagonista uma urbana erudita, não encontra contudo o seu oposto na “ruralidade” de Cabeço de Vide, esclareça-se. De facto também ela está imbuída do mesmo tipo de provincianismo invertido. Ele instalou-se quando a agricultura deixou de ser um modo de vida ou, se preferirem, uma filosofia do território, para se transformar em mera dinâmica de relações comerciais determinada pelo mercado e por um paradigma agro- industrial de indução externa. Desde que começou a produzir para o mercado, ao agricultor da modernidade do Alto Alentejo tanto se lhe dá se cultiva trigo para fazer pão, girassol para biodiesel ou linho para subsidio. O que lhe importa é a margem, e de preferência margem bastante para lhe permitir ir recuperar de tanta “calmaria” num resort de apartamentos em Armação de Pera. Poderá não ser o caso da Zana e do Zé, mas não é a chegada de duas andorinhas que traz de volta a Primavera. E isto basicamente só mostra que, com ou sem avezinhas ao acordar, andamos todos ao mesmo, quer dizer, a reboque de paradigmas que outros construíram e que nós, uns duma maneira, outros de outra, admiramos pasmados sem nos darmos ao cuidado de lhes entender a adequação ou o sentido. É isto que me leva a dizer que há coisas bem mais fodidas que o amor. E esta forma invertida de provincianismo é uma delas.