quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Um Povo do Caraças II


Há quarenta anos não se discutia a obesidade infantil. Não é que o tema em abstracto não fosse interessante, nada disso, simplesmente ser gordo era uma impossibilidade prática, e a partir daí qualquer discussão sobre o assunto assumiria contornos de absurdo surrealismo filosófico.


Algum leitor mais jovem, ou apenas mais distraído, que não vá já tirando conclusões precipitadas pensando que essa impossibilidade decorria das boas práticas de educação física dos liceus ou das escolas comerciais e industriais, pois qualquer relance pelas estatísticas da época basta para perceber que eram frequentadas por uma minoria. E também não se pense que não se engordava devido à racionalidade objectiva das dietas ou porque os putos ao tempo não gostassem de chocolates. É evidente que gostavam de chocolates. Mas uma tablete Regina daquelas pequenas embrulhadas em pratinha vermelha e dourada custava 2$50, ou seja, mais um tostão que um pão de meio quilo, que por coincidência custava o mesmo preço de uma viagem de autocarro até Ferragudo. Quando se sabe que um dia de trabalho nas conserveiras valia 12$50, percebe-se melhor porque razão andar a pé ou comprar um chocolate não eram questões de opção.


Quem chegou até aqui pode ser levado a pensar que esta retrospectiva é um exercício de saudosismo. Poderia sê-lo se tivesse enveredado pela faceta romanesca. De facto, os bandos das raparigas cantando pela madrugada estrada abaixo ficariam bem num filme de época e sobre eles poder-se-iam desenvolver interessantíssimas efabulações sociológicas que valorizassem o sentido do grupo ou da família ou do convívio. Mas a verdade nua e crua é que o faziam por mera necessidade: caminhavam porque não tinham com que pagar o autocarro e faziam-no aos molhos porque malucos sempre os houve e a falta de segurança não é um invenção da modernidade.


Também não pretendo demonstrar aos queixosos do costume que houve mudanças efectivas e positivas na sociedade portuguesa num espaço de tempo relativamente curto. Neste caso porque seria tão fácil fazê-lo que se tornaria demagógico.


A minha questão é outra e tem a ver com atitudes: é que enquanto há quarenta anos se geria a escassez, hoje discute-se a distribuição da abundância.


Neste processo, o conceito social do que é essencial alterou-se radicalmente. Ao ponto de ter passado a incluir nessa imensa lista de compras as latinhas de comida especial para os gatos obesos que habitam os apartamentos da nossa urbanidade individualista e hedonista. E não parece que como sociedade estejamos atentos a todas as implicações da deriva desta opção pelo acessório.

12 comentários:

alf disse...

E, meu caro, você está a falar de zonas ricas, onde havia fábricas e tudo! Porque no interior do pais havia muito quem comesse sopa de erva!

Uma coisa que eu aprendi há muito é que a riqueza absoluta não interessa nada à generalidade das pessoas; o que interessa é a riqueza relativa.

Isto estabelece todo o conjunto de comportamentos sociais em torno dos simbolos de riqueza pessoal. Depois, isto entranha-se, uma pessoa não só tem de parecer mais rica que os outros como tem de agir em conformidade.

Em parte, isto será consequencia também de a riqueza individual ter deixado de ser a consequencia directa do seu trabalho - tenho um post chamado "O Suor do Rosto" sobre isto.

quintarantino disse...

Inundados de apelos consumistas, ligeiramente intoxicados pela facilidade de, com cartões dourados, platinados e quejandos, gastar dinheiro que ainda nem sequer se ganhou ou nem sequer se terá, necessitados de alardear o sucesso profissional e até pessoal que é apenas mensurável pelos cavalos do carro, o destino das férias de verão e a probabilidade de ir à neve no inverno, e o tamanho do silicone nos implantes mamários da legítima (a ilegítima é suposto não precisar deles), fomos deixando crescer a "pança" como sinal de ostentação. Carne, carne, carne... claro está que, neste processo, as crianças acompanharam a procissão. Ora porque ir ao MAC é de bom tom, ora porque a hora jánão dá jeito nenhum de ir para casa e cozinhas, ora porque por um euro... enfim, daqui a uns anos lá virão as medidas politicamente correctas e padronizadas de meter tudo nos eixos.

antonio ganhão disse...

A minha é uma realidade bem diferente. A minha infância foi despontada pelo tio patinhas, coca-cola e shwing-gum, uma realidade colonial.

A Feitixeira já respondeu ao desafio.

Unknown disse...

Gostei dessa, da opção pelo "acessório". Noto muito isso quando discuto o quanto custa (economicamente falando) ter um filho hoje em dia. É que até agora nem acho assim muito caro, tenho 2, e somos uma familia de 4 com um só rendimento. Mas toda a gente acha muito mais caro do que eu e não sei bem onde se começou a confundir o essencial com o supérfluo. E eu não tenho a capacidade de sacrifício dos meus pais ou, ainda menos, dos meus avós.

Manuel Rocha disse...

Alf:

Tem toda a razão. O Algarve era uma zona rica, onde havia pobreza sim, mas uma pobreza digna porque os recursos naturais sempre deram uma boa ajuda nesse sentido. O mar não tinha dono, sempre se soube armar laços à caça e um recanto onde semear umas favas ou umas ervilhas sempre se encontravam.

Quint:

A mim o que me faz confusão é que não se aprenda nada com a história e que por sistema as coisas tenham que chegar a situações de ruptura de onde só se sai às cabeçadas.

António:

Estamos a falar de Luanda ?

Joana:

Essa distinção deveria marcar a forma como abordamos o quotidiano. Se assim fosse muitos supostos problemas nunca veriam sequer a luz do dia e a ansiedade que anda por aí à solta em ventos de ilusões sem nexo talvez amainasse,,,

Ana Luar disse...

Perdoe-me a ousadia de ter aceite o desafio de pegar num belissimo texto seu e dar-lhe a minha visão final. Não se zangue comigo Manuel pois por muito que eu tentasse, jamais se igualaria a minha escrita à qualidade da sua. Sou apenas uma aprendiz...
O meu final para o seu texto está no meu blog "DESAFIOS"

http://desafiosdeamigos.blogspot.com/

antonio ganhão disse...

Não meu caro, a verdadeira África é a banhada pelo Índico, que a outra partilha com os europeus o mesmo sal...

Enviei-lhe um email lá para o ministério.

el.sa disse...

António,

De fora ardil, teces com uma engenhosa teia de ideias, que nos apanham e nos prendem às "novas realidades".
Aprecio a inteligência com que debates as tuas convicções.
Vou dormir sobre o assunto,para depois tecer umas linhas opinativas.
Já tenho um link directo para o teu blog;)

Beijinhos ponderativos***

antonio ganhão disse...

Talvez eu possa roubar a identidade ao Manuel, já que lhe vou roubando, aqui e ali, uma ideia ou mesmo um texto.

Mas eu não sirvo a ministra. Tudo menos isso.

el.sa disse...

Ups... fui apanhada pelo avançar da hora.

Acertei no feitiço, mas enganei-me no nome do enfeitiçado...

Os meus mais sinceros pedidos de perdão MANUEL!

Beijinhos emendados***

antonio ganhão disse...

Hum! E eu Feitixeira?

el.sa disse...

Manuel,
Apesar de ter achado o teu novo desafio interessante, entrei num período de reflexão e vou adiar os desafios para futuras ocasiões...

Até breve. Com estima e consideração,

Feitixeira***