terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Ciência em Contra Ponto - V

O Princípio da Incerteza

Um velho amigo meu tinha de certas organizações juvenis ideias nem sempre muito abonatórias. A desaparecida Mocidade Portuguesa, por exemplo, era algo que ele classificaria como “um bando de meninos vestidos de parvos comandados por alguns parvos vestidos de meninos”.

É evidente que haveria nos nossos dias óbvios equivalentes desta leitura, mas como o propósito não é ferir a susceptibilidade de quem quer que seja, prossiga-se.

Sabe-se que qualquer sociedade tende naturalmente a estruturar-se em organizações, umas institucionais outras informais. Delas, a maioria consolida-se em redor de um campo central de valores mais ou menos definidos que norteiam ou deviam nortear a sua actuação. Assim é na religião, na política, no trabalho, no futebol.

É natural que num momento qualquer as organizações sejam acometidas de uma necessidade reprodutiva do tipo biológico, o que é uma forma tão legítima como qualquer outra de garantir a expansão e perpetuação dos valores que defendem. E logo aparece quem se disponha a vestir-se de menino e a meter mãos à obra.

Ora a juventude é campo fértil para estas sementeiras. Como em terreno virgem, qualquer ideia apelativa vinga sem dificuldade nessas várzeas do futuro.

Mas a juventude não tem na fertilidade a sua única característica. Além de fértil é também voluntariosa. Por isso as Juventudes Hitlerianas foram maior obstáculo à progressão do Exército Vermelho em Berlim do que as profissionais e competentes SS. E nem Mao conseguiu ser tão maoista como a sua Guarda Revolucionária. E isto porque, apesar das qualidades, falta naturalmente à juventude algo que advém da sua própria condição imatura: Vida, para separar o trigo do joio. E tem sido esta a porta de entrada para a mais variada gama de oportunismos.

Até aqui, nada de novo. Entretanto as ciências foram entrando pelas escolas e vamos lá a ver se consigo sair eu disto sem me espalhar.

A entrada das ciências na escola é uma mais-valia inegável. Tanto mais que quando elas surgiram trouxeram consigo essa capacidade ímpar de questionar as verdades assinaladas e assim ajudaram a desmontar muitos mitos regimentais. No entanto, pouco a pouco, sem que ninguém tenha percebido como nem porquê, a essência da coisa científica como metodologia fundada numa certa noção de razão e lógica, passou a surgir nos compêndios como a detentora, não apenas da única chave do portão de acesso à verdade, mas da própria verdade.

A partir do momento em que as réplicas plásticas dos dinossáurios miniaturizados à escala entram no quarto de brinquedos, o que acontece é que se está a abrir uma certa janela por onde a criança irá olhar para o mundo e não outra. Desde logo, o T. Rex passará a ter uma existência tão concreta e definida como uma vaca qualquer, igualmente miniaturizada, apesar de ser mais provável encontrar uma réplica real desta a pastar no Parque Eduardo VII que o T.Rex in persona. Na altura, o que a criança não pode compreender, é que há uma diferença fundamental entre reproduzir algo que existe a três dimensões e recriar uma criatura que nunca ninguém viu a partir de um dente e uma falange fossilizados. E a diferença entre realidade e teoria científica é difícil de explicar quando o anúncio da “Mimosa” passa no intervalo do ataque dos velociraptores do Jurassic Park II. Mas entretanto consegue-se o essencial, a saber, uma atitude de total disponibilidade para acreditar no Big Bang com a mesma naturalidade com que se acredita no funcionamento do aparelho digestivo de um ruminante. É o paradoxo do princípio da incerteza a criar ele próprio as crenças fundadoras de novos mitos.

15 comentários:

antonio ganhão disse...

Bem, isto ía muito bem até ao ponto em que o meu amigo teve que vestir o seu papel de destacado no ministério. A forma como aqui introduziu o principio da incerteza foi brilhante.

Só um erro, vê-se que o meu amigo mora numa aldeia de Trás os Montes ou do Alentejo profundo, se não saberia que existe uma maior probabilidade de cruzarmos com um T Rex do que com uma vaca (bem talvez seja agora a minha vez de ser ingénuo...)!

Anónimo disse...

Caro Blogger:

Tem sido com gosto que tenho acompanhado o seu percurso nestes espaços de troca de ideias.

Sobre esta última série que está a publicar, têm-me surgido algumas questões que começo a elaborar mas que depois ficam "comprometidas" pela sua postagem seguinte.

Portanto para já a minha questão é bastante pragnática: para quando o fim da série ?


Pedro Feist

Anónimo disse...

Tá tudo muito giroooooooooo, mas aposto que quem escreve é apenas mais um daqueles treinadores de sofá que mandam umas bojardas contra a ciência sentados nas comodidades que ela lhes deu.

Mais uma coisa: aquela da bomba já era, prescreveu ! Ou fossilizou nessa altura ?

Cansam-me os trall new-age!!

Luis

Anónimo disse...

É a estupidez destes comentários de quem não tem ideias para discutir que me irrita de tal maneira que me obrigada a interromper o prudente silêncio com que aguardava o fim da série, também curiosa em saber como "vai sair disto".

Matilde Costa

PS: Ainda estou à espera que escreva algo sobre uma coisa que esteja bem...não se esqueça por favôr.

Anónimo disse...

Correcções: "obriga" e "também eu"

Desculpem-me !

Manuel Rocha disse...

Luis:

Apesar de ter herdado dos Rochas uma certa alergia a etiquetas, não sei inglês técnico…

O Meu Avô, e esse sim tinha mesmo mau feitio,também detestava etiquetas. Lá na terra e arredores toda a gente sabia disso e não havia problema. A dificuldade era quando surgia um forasteiro mal informado. Cerca de 1975, por exemplo, apareceram por lá uns rapazes do MFA a tentar convencer a rapaziada a ocupar a propriedade de um desgraçado que até era um gajo porreiro mas tinha o grande defeito de ter uma herdade grande. Era grande, realmente, mas não era grande coisa, e o homem esfalfa-se para de lá tirar o pão, que o conduto esse nem vê-lo. O meu avô tentou explicar isso ao chefe dos rapazes, um alferes barbudo, mas o rapagão percebeu mal e logo esclareceu o povo ali presente de que aquele discurso era típico de um fascista reaccionário. Em 75 ainda estava mal estabelecido o que era exactamente um fascista. Mas por vezes as coisas valem mais pelo modo como são ditas do que por aquilo que realmente dizem. Portanto, o meu avô foi pedir esclarecimentos à mesa. Como era norma em casos semelhantes, antes da questão propriamente dita o interlocutor foi induzido num estado de sono profundo e de bónus evitou uma ida ao dentista, pois os dentes estragados que ostentava à saída da dialéctica revolucionária ficaram logo ali na mesa.
E a verdade é que o meu avô até simpatizava com quem tinha posturas pouco ortodoxas, digamos assim. E disso é exemplo aquela ocasião em que, numa tarde de domingo, estando ele à conversa numa roda de amigos junto à estrada, parou um carro cheio de ocupantes barbudos e um deles abriu a janela e perguntou com grande desenvoltura ao meu avô:
- Oh, Camarada ! Como é que se vai daqui pra Lisboa ?
Espantado , o meu avó, virou-se para o grupo e exclamou com evidente alegria:
- Camarada ?! Olááá !!! Vejam lá vocês : há cinquenta anos que sou cabrão e só hoje encontrei um camarada ?! Saia daí e dê cá um abraço, camarada !

E o Luis ? Não quer sair daí para me dar um abraço, camarada?

Fernando Dias disse...

Olá Manuel Rocha,

Isto é que é trabalhar! Só agora é que tive tempo para ler mais um pouco. Não é fácill aguentar esta pedalada!

Claro que uma coisa é a “Ciência” e a outra é o problema dos Epimeteus, alguns “homo” triplamente sapiens de terem a arrogância de se apoderarem do Fogo só para eles. Olham com desdém e displicência para a sabedoria das mensagens contidas nos mitos do “homo” só duplamente sapiens. Neste caso, estou a recordar o de Prometeu obviamente.

Manuel Rocha disse...

Curioso que tenha referido
Epimeteu, F Dias.

Dos tolos clássicos ele era o tolo favorito do meu avô e eu acho que era exactamente por ter casado com a Pandora. Digamos que o meu avô era um estateta muito susceptível à beleza feminina, e não seria homem para recuar com receio do conetúdo de uma boceta. "Depois logo se vê", diria ele...

Tendo eu salvaguardado logo no início desta minha "chaga" que todas as generalizações são abusivas e que os estereótipos valem pelo que são, ainda assim importa a ressalva que faz, pois sabemos que os generais que seguimos nem sempre são os Prometeus.

Quanto à ciência, claro que estou de acordo consigo, mas deixe-me lembrar-lhe um grande amigo do meu avô que dizia algo assim: "..ele há homens que eu conheço, que não sendo aquilo que são, são aquilo que eu pareço...". Se bem recordo chama-se António Aleixo.

Tiago R Cardoso disse...

Parabéns , bom texto.

Pois eu sou mais rústico, eu fiquei com a certeza de que tudo é uma incerteza, mesmo aquilo que hoje é dado como uma certeza amanha já pode não ser.

Já agora está linkado no Notas Soltas, Ideias Tontas.

antonio ganhão disse...

Bem, vou ter em conta a história do seu avô da próxima vez que por aqui distribuir umas alfinetadelas... ;)

Anónimo disse...

Vinha ver se havia novo post. Não há. Mas ainda bem que não saí sem ver os comentários.

A sua resposta ao Luis é um achado.

Vejo que esse seu avô é fonte de inspiração inesgotável!

Matilde Costa

alf disse...

Há uma enorme confusão sobre o que é, de facto, Ciência.

A Ciência tem um problema terrível, sempre teve: não é autosuficiente, depende doutros, o que significa que está ao serviço dos interesses de quem lhe dá o dinheiro, por mais sofisticada que seja a sua organização.

A partir de certa altura, os cientistas concluiram que um bom caminho para a Ciência seria comunicar mais com as pessoas em geral, fora da ciência, fazer divulgação da ciência, autopromoção.

Este processo acaba por ultrapassar os cientistas, passa a ser controlado pelos media, e desenvolveu-se aquilo que eu chamo a "ciência tablóide"

A ciência tabloide que inunda os media é um dos problemas.

O uso da ciência para fins que não têm nada a ver com ela é outro - como é o caso do aquecimento global.

o protagonismo que os media possibilitam encheu a ciencia de caras e vozes que dizem as maiores barbaridades cientificas. Por exemplo, aquecimento global significa um clima melhor, máximas mais baixas, mínimas mais altas, mais humidade, menos secas, menos desertos. Exactamente o contrário do que os cientistas do apocalipse apregoam!!

Outro problema é a confusão entre tecnologia e ciência. A ciência investiga as propriedades da natureza, não investiga os processos de realizar produtos tecnológicos, não faz invenções. Quase tudo o que vemos à nossa volta e que caracteriza a nossa sociedade é fruto da tecnologia e não da ciência.

Como a Tecnologia faz produtos, gera "riqueza", a tecnologia é financeiramente independente.

Mas o grande, grande problema da ciência e da humanidade é a existência de crentes. Crentes numa religião, crentes na ciência, crentes seja no que for - há imensas pessoas que têm de ser crentes. Então, dá-se-lhes a Ciência porque antes crentes na ciência no que numa religião.

Porque é que há pessoas que têm de ser crentes? Não sei responder a isso. Já considerei que isso pode ser fruto da pressão da sociedade ao longo dos milénios, é mais fácil gerir uma sociedade de crentes, os humanos foram treinados para serem crentes tal como os lobos foram transformados em cães domésticos.

Mas mostra-me a minha experiência que é tão impossível usar a razão com um crente religioso como com um crente na Ciência. E verifico que a própria ciência está pejada de crentes, tal como acontece com qualquer Igreja.

Em resumo meu caro manuel, você tem toda a razão mas se reduzir o espaço à ciência entra a religião... é como se uma legião de zombies tivesse invadido a humanidade e se estivesse a apoderar das mentes uma a uma... já vamos sendo raros os que ainda conservam o pensamento autónomo... o melhor é começarmos a pensar em passar à clandestinidade, como sempre fizemos desde há muitos séculos...

Manuel Rocha disse...

Alf:

Sempre na "mouche"!

Se eu soubesse que vinha aí este seu comentário tinha-me evitado o trabalho de escrever o meu "Ponto Final".

"Definitivamente agradas-me, pequeno!"
( Ocatarinetabellachichix )

Manuel Rocha disse...

Alf:

A única "nota" onde não estaremos eventualmente sintonizados a 100% é nessa distinção que faz entre a ciência e a tecnologia.

Na minha óptica ela é clara como conceito. Mas a prática, calma aí.

Disseque o exemplo da indústria farmacéutica e veja lá se consegue defender a sua "dama"...Complicado, não é ? E na indústria espacial ? E na agro-quimica ? Onde é que acaba uma e começa a outra ? Não serão elas apenas peças da mesma linha de montagem ?

Tenho para mim que nestes como noutros exemplos há uma permanente interacção, adaptação, interdependencia...

Discorda ?

alf disse...

meu caro manuel

as fronteiras não serão muito nítidas mas existem. As farmaceuticas usam cientistas mas não fazem ciencia. Um cientista quando aceita um emprego numa farmaceutica sabe que não vai fazer ciencia.

Uma farmaceutica não está interessada em encontrar a cura do cancro, por exemplo; o que interessa a uma farmaceutica é algo que transforme o cancro numa doença crónica. Ou, melhor, do que isso, inventar vacinas fantasmas contra o cancro. As vacinas são um excelente negócio para as farmaceuticas. Não é que não possam ser úteis, mas há sempre um objectivo de conseguir um aplicação rentável em tudo o que a indústria faz.

Mas concordo consigo em que há uma razoável área de sobreposição.