- Tens o quê ?!
- Então não sabes ?! Aquele jogo, o “Tribal War”!…
Vocês sabem, claro, mas eu não sabia. Inconvenientes da “interioridade”. Mas ele explicou-me direitinho que o jogo organiza-se em aldeias que o jogador administra e cuja subsistência, riqueza e progresso, dependem dos recursos que consegue gerar ou gamar aos vizinhos. Depois de olhar melhor para a coisa, rapidamente concluí que reproduz com uma assombrosa crueza aquilo que, embora com mais sofisticação e inenarráveis sofismas, se passa na vida real. Há pois essa diferença entre o jogo e a realidade: a ideologia não tem lugar no jogo, isto é, no ambiente do pc as coisas são o que são sem necessidade de se mistificarem de outra coisa qualquer, e nessa medida o Tribal War é uma belíssima lição de economia politica na sua expressão mais vernácula.
Assim, quando o Hugo para “crescer” já não lhe chega o que produz e precisa do que está nos celeiros do pc de outro gajo qualquer, manda as tropas ir lá buscar o que lhe inveja e se o outro não tiver com que se defender ou uma aliança tácita que o proteja , está feito : out of game !
Era assim que segundo consta faziam os Romanos antes de JC apresentar um caderno reivindicativo que fez tanto sucesso que a partir daí os herdeiros de Roma continuaram a fazer exactamente o mesmo que já faziam antes, é verdade, mas com a grande diferença de se benzerem primeiro.
A matriz cultural cristã do Ocidente colocou-nos, assim, perante a necessidade de travestir as tradicionais dinâmicas de usurpação e conquista de lógicas menos lineares, na tentativa de iludir a contradição da nossa prática com o corpo central das nossas doutrinas fundadoras. Um dos ensaios iniciais desta estratégia foi a tentativa de “libertação” da Terra Santa, processo no qual os saques de Constantinopla ou o escorraçar da mourama que fundara Lisboa foram meros acidentes de percurso, bem entendido! Mas houve mais.É que a ideia de que há práticas culturais e modos de vida "impróprios para consumo" não é de agora nem é criação da ASAE. Existe na matriz civilizacional do Ocidente uma propensão historicamente comprovada para conviver mal com o que é diferente e para implementar a nossa própria concepção do que está bem. É algo que nos está nos genes e é transversal a tudo o que fazemos. A nossa história poderia ser narrada nesse registo de convívio pouco pacifico com a diferença. Assim, quando uns anos depois o Ocidente resolveu ir buscar especiarias por mar em vez de as continuar a pagar a quem até aí as trazia por terra, rapidamente se impôs a necessidade de levar uns evangelizadores na bagagem que, como contrapartida civilizadora pelas possessões comerciais de que nos fomos apropriando pelo caminho, suponho eu, explicaram aos povos dessas bandas aqueles que foram os predecessores dos regulamentos comunitários que hoje se aplicam aos galheteiros. Esta lógica estendeu-se às Américas onde de novo se materializou a nossa inesgotável propensão evangelizadora e civilizadora, num negócio memorável que nos deu a posse de um continente inteiro a troco de uma crença salvadora para os convertidos que restaram para a fruir, depois de devidamente acantonados.
E deixem-se disso que estão a pensar! Não estou a escrever um ensaio anti-ocidente, nem nada que se pareça, embora admita o cinismo inevitável do registo. Mas a história é isto, uma permanente Tribal War, e não temos sequer forma de saber se o Mundo hoje seria melhor se ontem as coisas tivessem decorrido de outra forma. Se trago o assunto à estampa é apenas porque não me parece que ele possa ser escamoteado por quem seriamente pretenda contribuir para uma discussão construtiva sobre as questões da geografia da fome.
Se ser pobre é sobreviver com muito pouco e com grande dificuldade, quando essa dificuldade dá lugar à incapacidade de produzir sequer o que comer, a isso chamo miséria. Ora a capacidade cultural de obter os meios necessários à sobrevivência é um processo de longa maturação que resulta da solução de uma matriz múltipla, onde convergem os condicionalismos geográficos e o desenvolvimento circunstancial das aptidões humanas para os manipular. Estes equilíbrios encerram em si fragilidades aleatórias inerentes às características concretas das soluções encontradas, normalmente resolvidas pela incorporação nos códigos de tradições locais de valores que permitem de algum modo criar a desejada reprodutividade da solução encontrada . É bom exemplo o saudável princípio agrícola de afolhamento do espaço e de rotações de cultivos instalado na tradição mediterrânica. Quando este processo é interrompido e abruptamente alterado pela introdução de inovações sem que estas decorram em paralelo com outras capazes de criar um sistema alternativo e coerente, as desregulações são inevitáveis. Como sucede quando se actua repentinamente sobre a mortalidade infantil, reduzindo-a, sem que esse processo seja acompanhado da resposta na produção alimentar ao aumento populacional que daí possa decorrer.
O encontro do Ocidente com o Mundo foi um desses ressaltos de aceleração da história que ainda hoje e depois de séculos não está devidamente resolvido, e tem na miséria de muitos uma das suas consequências. Uma das razões a meu ver centrais para explicar esse resultado, é o tremendo desajuste que se criou entre a mudança de paradigma introduzida nos sistemas de valores e a (in)capacidade de o reproduzir. Não se sonha “fora” do que se conhece, e nas últimas décadas a banalização mediática do “american way of life” colocou a fasquia do sonho altíssima em qualquer recanto do Planeta. O dinheiro impôs-se como mediador no acesso ao poder e até à felicidade. A miséria instala-se nessa "região" onde a recusa da pobreza como paradigma se encontra com a incapacidade de obter dinheiro para a resolver comprando o que culturalmente se deixou de ser capaz de produzir. Ghandy percebeu isso quando escolheu a manufactura do linho e do sal como reivindicações simbólicas da luta pela independência da Índia. Ele sabia que a independência dos povos é cultural antes de ser política ou económica.