segunda-feira, 21 de abril de 2008

Tribal War

Há aí uns tempos o Hugo e a Ana (uns catitas) apareceram cá por casa. Num desses dias estávamos de digestiva tagarela de volta de um chá de mirtilo, quando o Hugo se desculpou pela retirada precoce invocando que tinha que ir mandar umas tropas para defender a aldeia do não sei quantos que estava a ser atacada.

- Tens o quê ?!
- Então não sabes ?! Aquele jogo, o “Tribal War”!…

Vocês sabem, claro, mas eu não sabia. Inconvenientes da “interioridade”. Mas ele explicou-me direitinho que o jogo organiza-se em aldeias que o jogador administra e cuja subsistência, riqueza e progresso, dependem dos recursos que consegue gerar ou gamar aos vizinhos. Depois de olhar melhor para a coisa, rapidamente concluí que reproduz com uma assombrosa crueza aquilo que, embora com mais sofisticação e inenarráveis sofismas, se passa na vida real. Há pois essa diferença entre o jogo e a realidade: a ideologia não tem lugar no jogo, isto é, no ambiente do pc as coisas são o que são sem necessidade de se mistificarem de outra coisa qualquer, e nessa medida o Tribal War é uma belíssima lição de economia politica na sua expressão mais vernácula.
Assim, quando o Hugo para “crescer” já não lhe chega o que produz e precisa do que está nos celeiros do pc de outro gajo qualquer, manda as tropas ir lá buscar o que lhe inveja e se o outro não tiver com que se defender ou uma aliança tácita que o proteja , está feito : out of game !

Era assim que segundo consta faziam os Romanos antes de JC apresentar um caderno reivindicativo que fez tanto sucesso que a partir daí os herdeiros de Roma continuaram a fazer exactamente o mesmo que já faziam antes, é verdade, mas com a grande diferença de se benzerem primeiro.

A matriz cultural cristã do Ocidente colocou-nos, assim, perante a necessidade de travestir as tradicionais dinâmicas de usurpação e conquista de lógicas menos lineares, na tentativa de iludir a contradição da nossa prática com o corpo central das nossas doutrinas fundadoras. Um dos ensaios iniciais desta estratégia foi a tentativa de “libertação” da Terra Santa, processo no qual os saques de Constantinopla ou o escorraçar da mourama que fundara Lisboa foram meros acidentes de percurso, bem entendido! Mas houve mais.É que a ideia de que há práticas culturais e modos de vida "impróprios para consumo" não é de agora nem é criação da ASAE. Existe na matriz civilizacional do Ocidente uma propensão historicamente comprovada para conviver mal com o que é diferente e para implementar a nossa própria concepção do que está bem. É algo que nos está nos genes e é transversal a tudo o que fazemos. A nossa história poderia ser narrada nesse registo de convívio pouco pacifico com a diferença. Assim, quando uns anos depois o Ocidente resolveu ir buscar especiarias por mar em vez de as continuar a pagar a quem até aí as trazia por terra, rapidamente se impôs a necessidade de levar uns evangelizadores na bagagem que, como contrapartida civilizadora pelas possessões comerciais de que nos fomos apropriando pelo caminho, suponho eu, explicaram aos povos dessas bandas aqueles que foram os predecessores dos regulamentos comunitários que hoje se aplicam aos galheteiros. Esta lógica estendeu-se às Américas onde de novo se materializou a nossa inesgotável propensão evangelizadora e civilizadora, num negócio memorável que nos deu a posse de um continente inteiro a troco de uma crença salvadora para os convertidos que restaram para a fruir, depois de devidamente acantonados.

E deixem-se disso que estão a pensar! Não estou a escrever um ensaio anti-ocidente, nem nada que se pareça, embora admita o cinismo inevitável do registo. Mas a história é isto, uma permanente Tribal War, e não temos sequer forma de saber se o Mundo hoje seria melhor se ontem as coisas tivessem decorrido de outra forma. Se trago o assunto à estampa é apenas porque não me parece que ele possa ser escamoteado por quem seriamente pretenda contribuir para uma discussão construtiva sobre as questões da geografia da fome.

Se ser pobre é sobreviver com muito pouco e com grande dificuldade, quando essa dificuldade dá lugar à incapacidade de produzir sequer o que comer, a isso chamo miséria. Ora a capacidade cultural de obter os meios necessários à sobrevivência é um processo de longa maturação que resulta da solução de uma matriz múltipla, onde convergem os condicionalismos geográficos e o desenvolvimento circunstancial das aptidões humanas para os manipular. Estes equilíbrios encerram em si fragilidades aleatórias inerentes às características concretas das soluções encontradas, normalmente resolvidas pela incorporação nos códigos de tradições locais de valores que permitem de algum modo criar a desejada reprodutividade da solução encontrada . É bom exemplo o saudável princípio agrícola de afolhamento do espaço e de rotações de cultivos instalado na tradição mediterrânica. Quando este processo é interrompido e abruptamente alterado pela introdução de inovações sem que estas decorram em paralelo com outras capazes de criar um sistema alternativo e coerente, as desregulações são inevitáveis. Como sucede quando se actua repentinamente sobre a mortalidade infantil, reduzindo-a, sem que esse processo seja acompanhado da resposta na produção alimentar ao aumento populacional que daí possa decorrer.

O encontro do Ocidente com o Mundo foi um desses ressaltos de aceleração da história que ainda hoje e depois de séculos não está devidamente resolvido, e tem na miséria de muitos uma das suas consequências. Uma das razões a meu ver centrais para explicar esse resultado, é o tremendo desajuste que se criou entre a mudança de paradigma introduzida nos sistemas de valores e a (in)capacidade de o reproduzir. Não se sonha “fora” do que se conhece, e nas últimas décadas a banalização mediática do “american way of life” colocou a fasquia do sonho altíssima em qualquer recanto do Planeta. O dinheiro impôs-se como mediador no acesso ao poder e até à felicidade. A miséria instala-se nessa "região" onde a recusa da pobreza como paradigma se encontra com a incapacidade de obter dinheiro para a resolver comprando o que culturalmente se deixou de ser capaz de produzir. Ghandy percebeu isso quando escolheu a manufactura do linho e do sal como reivindicações simbólicas da luta pela independência da Índia. Ele sabia que a independência dos povos é cultural antes de ser política ou económica.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

O Rio Ajuda

As palavras não são neutras. Menos ainda quando se referem a conceitos. Entre essas, algumas há que têm mesmo o fantástico poder de fixar os termos das discussões numa órbita inalterável porque contêm em si mesmas todo um programa.

A pobreza é uma delas e tentarei explicar porque o digo.

Quando falamos de pobreza, todos a tomamos como uma questão absoluta. Ser pobre é não ter acesso ao elementar. Mas quando se pretende concretizar esta noção de elementar, a pobreza relativiza-se. Essa relativização é devida à nossa natural tendência para definirmos o que nos rodeia em função do nosso próprio paradigma. E no nosso caso, ocidentais, tem ainda a ver com a nossa propensão para as leituras disciplinares do real.

Assim, enquanto os economistas tendem a abordar a pobreza pelo lado da produção e distribuição dos bens, os técnicos de saúde alertam para que sem pessoas saudáveis não há economia possível, e os pedagogos logo acrescentam que saúde e economia são também uma questão de educação pelo que sem ela nada feito.É evidente que qualquer deles tem a sua parte da razão. E como além disso a exprimem sob prismas e metodologias diferentes, resulta que a pobreza aparece definida tal como é, uma realidade multifacetada.
Apesar disso há convergência quanto à forma de a resolver, ou seja, actuando sobre os problemas prioritários, isto é, quem tem fome tem de comer, quem morre de sarampo tem de ser vacinado, quem é analfabeto tem que ser alfabetizado.

Prisioneira conceptual deste tipo de urgências, a pobreza tem dado origem a um enorme caudal de ajudas . Um autêntico rio de dinheiro. Só de um dos seus afluentes, o BM, fluíram para esse rio em duas décadas ( 80 /90 ) algo como 600 biliões de dólares. Mas não é este impressionante caudal a particularidade mais importante deste rio. Esse estatuto está reservado para a originalidade da sua forma, pois ele é um rio circular que desagua no mesmo sitio onde nasce, isto é, nos corredores do poder económico do ocidente. No seu percurso, o "Rio Ajuda" revela ainda uma espantosa capacidade de erosão selectiva, ou seja, só arrasta como sedimentos certas coisas, como ouro e diamantes, petróleo, madeiras exóticas, os melhores cérebros, filetes das percas do Nilo que infestam o lago Malawi. Mas além disso, ao dar de beber à pobreza ele faz crescer a miséria. E embora ambas sejam sinónimos de desgraça, tentarei explicar porque importa fazer-lhes distinção.

A escassez do que é elementar pode ter diferentes origens. Mas não é muito complicado construir com elas duas categorias. Numa, podemos incluir a escassez como o resultado de um qualquer desajuste transitório entre necessidades e disponibilidades de recursos, como o que pode acontecer com os bens alimentares em consequência de condições de seca agrícola prolongada. Na outra, é possível agrupar os factores que culturalmente bloqueiam a gestão dos recursos disponíveis e não permitem potenciá-los como resposta aos problemas de escassez do elementar.

A pobreza do sem-terra não é, neste sentido, um problema com contornos idênticos à sua miséria. Porque o que faz a pobreza do sem-terra é a miséria cultural da civilização que lhe dá terra quando ele já não sabe o que fazer dela. Ele não sabe subsistir da terra porque lhe falta uma tradição cultural que não tem. Mas além disso ele não quer subsistir da terra. Para o sem-terra, a terra é vista como a possibilidade de através dela constituir um rendimento que lhe dê acesso ao paradigma cuja chave é o dinheiro. A terra não é vista como algo que serve para produzir alimentos, mas dinheiro. Ora boa parte dos programas de combate à pobreza que conseguem ir um pouco mais além que as ajudas de emergência, como alguns em curso no Brasil, incorrem nesse pecadilho original de tentar reconduzir populações para dentro de um paradigma de subsistências onde, não só não se revêem, como cortaram os laços culturais que o poderia recuperar. É neste impasse cultural que reside a miséria. A deles, que é também pobreza, e a nossa, que é civilizacional.

Existem pois nestas matérias diferenças que importa estabelecer entre o que são desacertos circunstanciais e rupturas culturais de longa duração de raiz civilizacional. Porque basicamente, a pobreza do terceiro mundo vive da ressaca global da democratização do paradigma que o ocidente desenhou ao longo dos últimos séculos; vive numa espécie de terra de ninguém entre uma tradição perdida e um paraíso aparente que, apesar de lhes vedar o acesso, não se coíbe de promover constantemente os seus méritos . Sem se perceber isso não há como ensaiar a ruptura com os ciclos viciosos de análise e acção sobre um problema em que a única alteração de ano para ano tem sido o adiamento sucessivo dos objectivos estabelecidos.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Um Falo das Américas


O Joshua tentou-me para algumas teclas sobre o FMI, mas sou a pessoa errada. Falta-me em relação às políticas da Instituição o distanciamento que facilita a objectividade. Feita esta “declaração de interesses”, tenho que dizer que considero que quem representa o FMI só teria alguma legitimidade para se referir publicamente às questões da geografia da fome, no dia em que tivesse terminado com a existência mesma do Fundo que lidera, e já vou explicar porquê.

Percebe-se pois que não vejo o FMI como guardião da virtuosa virgem capitalista, batalhando pela pomposamente declamada “regulação e fiscalização do sistema financeiro internacional”. Usando uma linguagem muito pouco “económica”, diria mesmo que vejo o FMI como o filho bastardo que o capitalismo americano fez à Europa quando a apanhou de gatas depois de atropelada pelos panzers de Rommel.

A modernidade capitalista encetou na América do Norte as experiências com “bolhas”, isto é, com essa técnica que perdura de negociar o inexistente : a bolsa. A ideia parece funcionar na Praça do Giraldo nos dias de "São Porco". Mas aplicada a maiores escalas verifica-se que depressa se começam a vender porcos que as porcas nunca hão-de sequer parir, num roulement à Dona Branca que precisa continuadamente de novos territórios por onde se expandir sob pena de se desfazer como castelo de cartas à mínima brisa, como aconteceu nos anos trinta e volta agora a ameaçar.

A Europa destruída do pós-guerra foi a oportunidade de relançamento dessa lógica e o FMI, mera sucursal da Reserva Federal, o instrumento da nova ordem made in USA. Mas a garantia dos fundadores de manter a convertibilidade do dólar ao ouro a taxa fixa e câmbios fixos, promovendo sobre essa base linhas de crédito de curto prazo para ajustes conjunturais na balança de pagamentos ( que foi a forma encontrada pelo credor (americano) de garantir a solidariedade dos devedores ( europeus ) pela divida de qualquer deles ), esgotou-se com a reconstrução económica europeia. Por isso os EUA não perderam tempo a abandonar o acordo e a mandarem às urtigas o padrão ouro. Diz-se que a partir daí o FMI trabalha fora da sua esfera original porque não alterou os seus estatutos, coisa que só agora ensaia. Mas deve ser piada, porque nestas coisas não há memória de que os americanos revelem modos quando se sentam à mesa dos seus interesses.

Portanto, tudo o que o FMI fez foi adaptar-se e procurar fórmulas rentáveis de continuar a manter o mundo sob o poder do US Dólar . Dessa vez através da flutuabilidade permanente da moeda que, largado o “ lastro”, passou a permitir a quem tem o dinheiro colocar a taxa de câmbio onde quisesse. Mas fez melhor ainda, criando processos que se auto-alimentam, porque ao promover a liberalização das economias periféricas, o FMI mais não fez que aumentar a sua vulnerabilidade ao poder do capital financeiro internacional, até ao ponto em que os contratantes são capturadas para dentro de ciclos de onde não há saída. E não há porque os “arranjos” de politica económica que o FMI promoveu desde os anos setenta como condição necessária à concessão ou aval a créditos, acabaram por ser internalizados ( engolidos ) e passaram a fazer parte das lógicas internas que os adoptaram, transformando-se numa segunda pele sem a qual já não nos sabemos pensar : o neoliberalismo.

Foi o tempo em que Bella-Balassa andou pelo mundo trajando de messias da economia e levando a “salvação”, universalmente possível, à Coreia, ao Egipto, ao Chile, ou a Portugal , onde pregou na catedral da Gulbenkian em Outubro de 76. Só não foi a Espanha porque, contam os anedotários, Franco e Adolfo Suarez só entendiam castelhano, e pelo que hoje se vê só beneficiaram por isso. A mesma sorte não teve o Brasil, cujo divórcio do Fundo, uma magnifica telenovela, César Benjamim conta como ninguém.

De certo modo o FMI apresentou-se como apóstolo da integração económica que estaria no advento do que hoje se chama globalização, banalizando uma nova terminologia do capitalismo que outro Benjamim ( Walter ), adoraria ter conhecido quando nos anos vinte se referiu ao capitalismo como um culto religioso que promove a salvação pela intensificação de um sistema que oferece a crença em si mesmo como única esperança, uma vez que, dizia, como sistema fechado, coerente e monolítico, o capitalismo não tem reforma possível.

Quando assumidos capitalistas, como André Jordan, não se coíbem de dizer na praça pública que se se quisesse efectivamente controlar a extrema volatilidade dos mercados financeiros os capitais especulativos deveriam ser taxados nas praças onde são aplicados em lugar de ( não ) o serem nos paraísos fiscais onde estão domiciliados, prevendo logo a seguir que não há interessados em semelhante abordagem, percebe-se melhor que a única coisa que está em causa são estratégias para tecer as linhas que irão permitir manter nos locais do costume o controlo dos aparelhos por onde se irá manipular a ordem internacional nos próximos anos.

Portanto, as preocupações do Senhor Strauss-Kahn quanto aos problemas gerados pelas (des)economias que o FMI ajudou a criar( como o mercado dos agrocombustiveis na América do Sul ), soam-me a mero preparativo para a mudança periódica de roupagens com a qual se pretende, novamente, salvaguardar o essencial do modelo macroeconómico e financeiro que declaradamente abençoa a supremacia dos valores do capitalismo. Não me parece pois que ele esteja a pregar no deserto nem de improviso. É que o capitalismo precisa de consumidores, nem que seja de consumidores de caridade. E se para isso precisar de se vestir de “verde-humanitário”…

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Questões de Semântica

É frequente que as noticias nos apareçam sob um fraseado que altera completamente o seu conteúdo. É novamente o caso desta que parte duma suposta declaração do PM mas considerou desnecessário ler o Plano a que reporta.

Se o tivesse feito talvez tivesse constatado que há uma diferença entre "poupar" e não consumir tanto como se espera. No caso, se consumíssemos agora 100 e em 2015 estivéssemos a consumir 90, teria havido uma poupança de 10 %, sem dúvida. Mas não é isso que o Plano prevê. O que diz é que “as medidas permitem alcançar 10% eficiência energética até 2015”. Porque em relação ao consumo bruto de energia propriamente dito, o cenário ( projecção ) é um crescimento de 18,6 % de 2007 para 2015, crescimento que o Plano pretende limitar a 8,6 % com as medidas que agora preconiza. Ou seja, os 10 % de que se fala são ganhos previstos de eficiência e não uma redução bruta de volume de consumo como se pode ser levado a pensar.

De resto fica bem claro que o objectivo central do Plano é a convergência com a intensidade energética média da EU, o que no limite também poderia decorrer simplesmente de um crescimento do PIB superior ao crescimento do consumo de energia.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Elementar, Caro Watson !

Isto não é um "post" mas um comentário a uma noticia.

Parece que finalmente alguém se lembrou de pegar em papel e lápis e recapitulou a aritmética elementar. O que é estranho é que nos dias que correm seja preciso ser-se “cientista” e “ independente “ para conseguir esse dificil objectivo de perceber coisa tão prosaica como a inviabilidade da produção agricola de dez por cento dos combustiveis rodoviários usados na UE!

Há já alguns meses que correm rumores que dão conta do "arrefecimento global" do entusiasmo autista que o projecto gerou, mas só agora a principal imprensa do Ocidente resolveu começar a dar-lhe destaque.

Há coisas em que detesto ter razão por antecipação, mas esta dos agrocombustíveis é das tais tão óbvia que confesso que houve dias em que duvidei da minha saúde mental.

E em bom rigor, a verdade é que continuo sem perceber que motivações sustentam o silêncio sobre esta ( e outras...) matéria de Instituições que têm alguma responsabilidade pública, como a Ordem dos Engenheiros, entre outras. Existem propostas de solução de problemas que são uma fraude isenta do devido tratamento criminal.

Se eu quisesse ganhar a vida como Zandinga e apostar em qual seria a próxima "grande desmistificação” protagonizada por "cientistas independentes", punha todo o meu dinheiro nas eólicas, fotovoltaicas e similares.

Claro que entretanto as respectivas janelas de oportunidades têm sido bem frequentadas pelos oportunismos do costume. Na hipótese ( altamente provável ) de que tenha sido esse mesmo e apenas esse o objectivo desta deriva, aqui deixo os meus cumprimentos a quem a gizou ! Quanto a mim provou que a relação do público com a ciência e a técnica se transformou numa profissão de fé.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Navegando à Vista


Quando há mais de um século se plantaram boa parte dos montados que vão mantendo Portugal entre os maiores produtores mundiais de cortiça, ainda essa actividade não era subsidiada. Também não foram os subsídios que motivaram os trabalhos de terraceamento agrícola de muitas das nossas serras ou as despedregas do Barrocal Algarvio .Como uns e outros são exemplos de investimentos que só dão colheita para além da vida, tudo indica que teriam tido uma justificação bem distinta do carpe diem que hoje é a divisa predominante.

Não deixa pois de ser curioso que enquanto o nosso processo civilizacional se tem afirmado sob a égide do cientifico e do racional, por oposição e pela independência em relação aos condicionalismos naturais, tenhamos ao mesmo tempo deixado cair essa capacidade que os nossos antepassados revelaram de sonhar para a frente sem perder a ligação à terra.

Em vez disso sonha-se para trás à procura de uma harmonia idílica supostamente perdida, ou então faz-se profissão de fé na crença de uma ciência milagreira capaz de recriar um homem sem terra. É esta uma síntese possível da atitude dominante da interacção civilizacional da modernidade com o meio, e que tem na economia o seu mediador privilegiado.

Ora a economia tem-se encarregue de nos fornecer uma nova dicotomia, dividindo o mundo entre o rentável e o não rentável. Mas a ideia de rentabilidade da neo-economia capitalista, não é uma noção absoluta, é relativa, e basicamente serve-se desse sofisma para designar não a colheita que ultrapassa em quantidade de grão o que foi semeado, mas o que é lucrativo.

Assim, o interesse das actividades humanas deixou de depender de quanto se colhe mas de quanto vale a colheita no mercado. Este ponto de vista inquinou transversalmente a sociedade, derivando para um género de reducionismo funcionalista que explica as coisas pelos seus putativos efeitos e não pelo valor histórico dos princípios que as deviam nortear, cabendo à economia que governa reeditar com novas roupagens os velhos métodos de cabotagem. Mas a linha de costa que a orienta é uma miragem, pois o dinheiro que a guia não tem utilidade real. Sendo símbolo e não recurso, o dinheiro em si não consegue realizar a sua condição de equivalente de troca se não houver com que trocar. Ou seja, em última análise o dinheiro não se come e por isso não é elo de cadeia nenhuma.

Ora quando as politicas ambientais para se imporem se vêem na necessidade de se camuflar sob roupagens da versão vigente da rentabilidade económica instituida, asseverando aos seus destinatários novas oportunidades de mais valias comparativas e promovendo o natural como produto de consumo, algo tem que se considerar intrinsecamente enviesado ao nível dos princípios que as produzem. De facto, quando procedem desse modo essas politicas não se assumem como dinâmicas de ruptura com os pressupostos de planeamento económico e social que estão na base constitutiva dos problemas que pretendem combater. Em seu lugar, enveredam pela gestão de compromissos desviantes, derivando para as mais-valias económicas marginais do conservacionismo, mas não resolvendo na origem os impedimentos conceptuais ao desenvolvimento de modelos sustentáveis, uma vez que estes não têm solução no contexto da gestão dicotómica natural vs civilizacional.

Desde logo porque aprisionam o conceito de natural numa ideia de equilíbrio perene que é equivoca: tal como o civilizacional o que é natural também não é estático, e por conseguinte não é susceptível de ser “congelado” num momento qualquer da sucessão ecológica que nos possa parecer mais interessante ou de ser compartimentado dentro de fronteiras territoriais estanques às dinâmicas envolventes.

Depois, porque a lógica que preside às trocas que dentro dos ecossistemas são pertinentes para a vida humana, não se rege pelas regras da economia de mercado mas pelos princípios da termodinâmica.

Por último, porque a criação e gestão do natural como compensação ( rentabilizavel ) pelos impactos do civilizacional, na medida em que é assumida como uma cedência ao ambientalismo, transforma-se num paliativo. Não contesto que de um ponto de vista estritamente pragmático não decorram destas “cedências” benefícios efectivos para o ambiente. Mas esta dinâmica também contribuí para nos desviar da necessidade de encarar o individuo, a sociedade e o território, como uma só unidade de interacção na procura de um sentido.

sábado, 5 de abril de 2008

Pensar Como Um Calhau

Para que amanhã um urso qualquer não se ria de nós, seria interessante que tivéssemos presente que uma das coisas que eventualmente nos pode distinguir dessas simpáticas criaturas é uma História ao longo da qual era suposto termos aprendido aquilo que o urso tem automatizado, i.é, que existem limites de tolerância nos ecossistemas que nos permitem a existência.


De facto, uma possível mais valia do nosso processo civilizacional consiste na disponibilidade de alguma informação que devidamente processada nos deveria permitir compreender que a nossa existência por natureza transitória no "Grande Sistema", tem dependido da capacidade que temos revelado para proceder a manipulações bem sucedidas de alguns dos seus subsistemas ( agricultura, p.e.) . Esta é, de resto, a “receita” das espécies de sucesso. Sem ela não tínhamos atingido como espécie a dimensão e a expansão que conseguimos.


Mas seria exactamente o conhecimento dessa mesma História, mais que as projecções matemáticas, quem nos devia apoiar numa abordagem razoável aos limites objectivos de algumas práticas colonizadoras. Sabe-se através dela que sempre que se quebra de forma continuada a razão unitária entre o que se produz e o que se consome, os sistemas tendem para o desequilíbrio. Ou seja, gerar continuadamente excedentes tem como consequência um ponto de ruptura inevitável.


No entanto, graças a soluções tecnológicas de domesticação de fontes de energia de elevada performance energética ( fontes fósseis ), a modernidade tem conseguido dilatar para lá do que seria imaginável uma razão negativa dessa relação e adiar a ruptura. E quando recentemente nos apercebemos dos riscos dessa deriva, optamos por um compromisso atípico entre a negação e a acção que nos está a dividir o mundinho em duas ilhas e um deserto.


Habitamos numa das ilhas, a Metrópole, temos o jardim na outra, a Área Protegida, e deslocamo-nos entre ambas em variantes de alta velocidade através de um "deserto" onde, por processos que se dizem “sustentáveis”, são produzidos o papel dos jornais que lemos e também o combustível das veículos que nos transportam, pois os alimentos que consumimos está assente que se produzem nos supermercados.


Como qualquer placebo bem promovido, esta solução tem merecido o agrado consensual, pois “demonstra” que é possível o convívio entre o “natural” e o “civilizacional” e nessa medida funciona como um formidável paliativo de consciência para desculpabilizar todas as cavaladas ambientais que os nossos “selves” hiper-individualistas possam cometer nas ilhas metropolitanas do nosso contentamento.


Ou seja, a dicotomia natural vs civilizacional revela-se óptima receita para que a maioria de nós fique tão confiante na suficiência do natural que se protege para equilibrar o sistema dos impactos dos nossos excessos, que se permite continuar ao lado a viver despreocupadamente como se os ecossistemas fossem somatórios de partes e não um todo que artificialmente dividimos. Basicamente, estamos perante uma conveniente convicção do mesmo tipo daquela defendida há aqui uns meses por uma turma de universitários de um curso de Educadores de Infância que asseverava que “quem recicla, reduz”.


O problema é que os “salmões” de que necessitamos para as nossas “hibernações” não se produzem nem nos supermercados, nem nas AP’s, nem nas Metrópoles, mas nos “desertos” por onde transitamos em viaturas “ ecológicas” sem reparar que o território está a ser desleixado a um ponto que corremos o risco de corromper duradouramente o seu potencial de produtividade primária e por conseguinte a sua capacidade ecossistémica de nos suportar a espécie com a qualidade que pretendemos.


O abandono do mundo rural e a criação de AP’s, são as duas faces da aceitação tácita dessa moeda dicotómica que o Ocidente considera uma “inevitabilidade civilizacional”, demitindo-se assim de “pensar como uma montanha”, como disse Aldo Leopoldo, para pensar como um calhau.


( continua )

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O Homem e o Urso

Regresso à questão natural vs civilizacional.

Continuo com a sensação de que existe nesse tipo de abordagem dicotómica razoavelmente consolidada, um grosseiro erro de análise que ameaça transformar a nossa relação com o ambiente num beco sem saída.

Continuamos a encarar a nossa interacção com o meio segundo interpretações que oscilam entre dois extremos. Uma delas, pressupõe que tudo o que a natureza “produz” é sempre bom. A outra, aventando que não seja bem assim, investe tanto na domesticação da natureza que cai no erro ilusório de que a comanda.

Basicamente, estamos perante variantes da velha questão nunca resolvida da conflitualidade inerente à vida, das suas dinâmicas e tempos próprios, um “jogo natural” do qual o homem faz parte. A forma como o homem social tem reinterpretado as regras desse jogo, tem dado origem a soluções sempre transitórias que vão ressaltando entre os compromissos que têm sido possíveis e as abordagens mal sucedidas, e é neste contexto que temos de nos entender.

No entanto há demasiado quem argumente sobre ecologia humana como se essa pertença do homem ao natural não existisse e parta daí para advogar a defesa de uma “natureza intocável”não percebendo que já de si a decisão de não interferir é uma forma de interferência natural. Creio que isto se poderá dever a uma compreensão insuficiente da exacta consistência dos chamados fenómenos naturais e tentarei explicar porquê.

Se fosse possível isolar o instante primordial, tudo leva a crer que o processo pelo qual as espécies iniciam a sua implantação num determinado contexto é determinado pela geologia e pelo clima. A evolução dos ecossistemas nesse suporte ( habitat ),começa pela que se designa de fase pioneira, que normalmente desenvolve características ( produção excedentária de matéria orgânica, por exemplo ) que desde logo introduzem mudança nas condições físicas do habitat. Essas alterações das características físicas do suporte abrem a porta para a instalação de novas comunidades tróficas ( sistemas de seres vivos coexistindo numa lógica de interdependência alimentar ) de maior exigência, iniciando-se assim o que se designa por sucessão ecológica ( a sequência pela qual as espécies se sucedem num ecossistema ).
Nestes processos, existem comunidades que têm uma existência transitória na sucessão. O período e os acontecimentos dessas existências transitórias, são conhecido por fases serais. Por clímax entende-se o estado de maturidade de uma comunidade num habitat .
Ou seja, das fases pioneiras às de maior maturidade, as comunidades que incorporam a sucessão alteram as características da sua interacção. Raramente as comunidades pioneiras são também climáxicas. Ao longo da sucessão ecológica o ecossistema convive com comunidades temporárias que têm o seu nicho naquele “momento” e não noutro e raramente o ocupam “para sempre”do mesmo modo.
Mas mesmo os estados ditos climaxicos correspondem a um conceito que importa desmontar. Porque uma coisa é a “maturidade potencial” ( clímax climático ), outra a “maturidade possível” ( climax edafico ). Ou seja, na prática os ecossistemas raramente atingem o seu potencial, evoluindo antes através de sucessões interligadas e de velocidade variável. E a explicação para este fenómeno reside no facto de os ecossistemas não serem nem sistemas fechado nem sistemas lineares. Como tal não são susceptíveis de ser compreendidos pelos modelos analíticos convencionais e como a abordagem sistémica não faz parte do cardápio usual dos métodos pelos quais se tenta entender o infinitamente complexo que nos rodeia, somos tentados a olhar para o mundinho através de simplificações dicotómicas e a encarar o que é civilizacional como "não natural".

Mas nesta existência onde à escala do tempo geológico a ideia de estabilidade não é sinónimo de estático, a construção de nichos como estratégia de colonização de novos espaços é um processo natural e ininterrupto. Entre o urso e o homem, não existem diferenças de estratégia na abordagem da permanência nos invernos setentrionais: qualquer deles procede a reservas prévias de energia e constrói abrigos. Diferem apenas no método e na técnica que cada um aperfeiçoou a seu jeito.

Importa pois que se perceba que a capacidade de modificar a “natureza” é característica intrínseca da própria natureza. Qualquer ser vivo “manipula” o meio para nele realizar o seu “momento”, e nessa matéria não há qualquer tipo de “originalidade” por parte dos humanos. Sendo certo que o homem sofisticou as modalidades de interacção com o meio, não é menos certo que não desligou dos condicionalismos objectivos impostos pela natural limitação de recursos. De igual modo também não é especifico dos humanos a gestão irracional dos recursos de cuja sobrevivência depende. Mas é evidente que chegados a este ponto ao homem é exigível um pouco mais, quanto mais não seja porque, que se saiba, não consta que os ursos andem por aí a reivindicar racionalidade.

( Continua...)