sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Lágrimas Negras


Há uns anos atrás duas algarvias marafadas puseram-se à conversa de volta de uns carapaus fritos com arroz de tomate.

Uma, andava com vontade de fazer nas escolas alguma coisa de educação ambiental que não fosse a estafada cantilena dos três erres; a outra, marinheira inveterada, andava danada com o tráfego marítimo ao largo do Cabo São Vicente.

Sabia-se que muitos dos imensos navios que por ali passam diariamente atalham caminho para poupar umas milhas e cruzam o Cabo à vista de terra. Qual o problema? Bem…se com mar de sudoeste um dia um deles com uma carga mais complica tem uma simples avaria nas máquinas, é mais que muita a probabilidade de se estatelar contra uma falésia antes que um rebocador de alto mar lhe acuda. E o espectro de uma maré negra no Algarve dispensa considerações.

Precisava-se afastar o corredor marítimo e controlar o tráfego. Mas não havia meios para isso. Seriam precisas umas estações especiais denominadas VTS. O poder andava distraído com outras coisas e não se vislumbrava solução. Que fazer ?

Conversa puxa conversa e a ideia nasceu: um projecto escolar liderado pela própria Direcção Regional de Educação do Algarve iria usar a expressão artística para sensibilizar as escolas e as respectivas comunidades para o problema do tráfego marítimo ao largo da costa algarvia e para a necessidade de o monitorizar e afastar.

Chamaram-lhe Operação Lágrimas Negras. Arregaçaram as mangas e ao fim de dois anos tinham entregue ao Presidente da Assembleia da República uma petição com trinta e três mil assinaturas que obrigava o Parlamento a discutir a questão em plenário.

Depois dos trâmites habituais, uma proposta de lei com base nas premissas da petição foi votada em plenário e aprovada por unanimidade. Sete anos depois os VTS estão construídos, equipados e prestes a entrar em funcionamento, prevendo-se a sua inauguração para o início do próximo ano, e quem quiser saber mais sobre isto é procurar no site da DREAlg.

Vem isto a propósito do quê ?
Por um lado, para fazer um post com algo positivo como há muito me reivindica a Matilde.

Por outro lado, para mostrar que, neste país onde toda a gente se queixa de tudo e de mais alguma coisa, afinal sempre existem caminhos para ir resolvendo os problemas que por aí proliferam. Parece mesmo que o exercício da cidadania até é viável e profícuo. Mas, claro, dá trabalho!
De facto, é muito mais fácil blogar queixumes sobre os impactos que eventuais parques eólicos terão nas paisagens do parque de Montesinho, ou que as barragens terão no rio Sabor, que procurar soluções para resolver as questões envolvidas. Ora é nestas coisas que a rés-pública se afirma ou não. Sendo certo que quando em democracia nos demitimos colectivamente do exercício da cidadania, a exigência de uma governança iluminada, tipo Rei Sol omnisciente, não é só incoerente - é no mínimo ridícula.

Conheço outros bons exemplos de resultados concretos de iniciativas de cidadania promovidas ao nível local, que é desde logo onde elas fazem mais sentido porque interferem com a vida concreta e diária das pessoas, seja no prédio de habitação ou no local de trabalho. Sou dos que não percebem porque é que um prédio onde habitam quatrocentas pessoas necessita de vir ao fim de um ano reclamar no telejornal das treze porque a respectiva CM nunca mais lhes arranja o jardim de duzentos metros quadrados que existe na frontaria! Quer dizer, perceber eu até percebo, basta olhar para o prédio e ver que cada marquise tem a sua parabólica particular.

O problema é que além de individualistas até à raiz dos cabelos, culturalmente precisamos de locomotivas para movimentarmos algo mais que a língua, pois a inércia do nosso comodismo pesa muito. E locomotivas há poucas disponíveis. Até porque se cansam de ser apedrejadas sempre que tentam pôr em movimento os combóios do corporativismo há muito imóveis nas linhas. Para esses vagões de reclamações inacabáveis, é mais fácil ficar em frente da TV mandando umas bocas ao ministro que estiver mais à mão porque não foi ber se as tomadas do Tribunal da Boa Hora tinham corrente, carago !

6 comentários:

quintarantino disse...

O amigo toca num ponto fulcral da nossa sociedade, antes, da nossa maneira de ser. Somos excelentes a reivindicar, mas pouco eficazes a concretizar as próprias reivindicações. Depois, sempre entendemos que era mais cómodo transferir o ónus para um terceiro. Transferência de responsabilidades...
Apreciei as estocadas finais.

Tiago R Cardoso disse...

Não à nada como uma boa reclamação, ainda por cima se for feita com muita audiência, então se virem uma câmara de televisão ai é que é reclamar, entretanto alguém no meio da multidão grita:
"Eu tenho um solução temos é que trabalhar".
Subitamente só se ve gente de mãos nos bolsos a assobiar.

antonio ganhão disse...

Os VTS também são um bom negócio... mas sobre o exercício da cidadania lembro-me logo do Sá Fernandes que custou a Lisboa uma pipa de massa, por causa de um túnel que acabou por ser feito.

Da birra do senhor apenas resultaram benefícios pessoais e um lugar de vereador, e muito prejuízo...

Até onde vai a cidadania?

alf disse...

Essa história pode ser fruto de pessoas com caracteristicas que nem todos temos, felizmente que as há! mas a nossa sociedade não pode depender de pessoas assim.

Mas, e eu hoje estou pouco natalicio,será que não há aí interesses escondidos? Quem vai ganhar dinheiro com isso?


Temos uma imensa falta de representatividade na nossa organização política e social. Em vez de as pessoas recorrerem ao "seu" deputado para fazerem chegar os seus problemas ao parlamento, para isso é que os deputados foram inventados, têm de andar a reunir uma infinidade de assinaturas, ter imenso trabalho e perder imenso tempo.

Enquanto eu não tiver um deputado que me represente, eu não vivo numa democracia. Mas eu quero viver numa democracia; que devo fazer? (emigrar não é solução0)

Manuel Rocha disse...

"Transferencia de responsabilidades" é a questão chave, Quint.

E se feita frente à TV então é duplo espectáculo, como diz o Tiago.

Básicamente é desse tipo de "cidadania" que fala o António, da que aparenta estar ao serviço de agendas pessoais.

Claro que mesmo quando são outros a dar o pontapé de saída, os do costume chegam-se sempre à frente para a fotografia. No caso deste exemplo também assim foi e será. Quando há iniciativas mediáticas lá estão os Directores do momento e os Presidentes dos Institutos perfilados para não serem atropelados pelo comboio em movimento, e se possivel fazendo passar a mensagem que foram eles a locomotiva.Mas isso é da natureza humana.

Quanto aos deputados, Alf, no caso a deputada Heloisa Apolónia pegou no caso e não o largou. O seu a seu dono, certo ?
Uma última nota quanto ao ganhar dinheiro. Não há aqui ingénuos. Há sempre quem lucre com tudo. Mas as tais marafadas, não me parece, porque ainda antes de ontem fui jantar com elas e tive de ser eu a pagar a conta, pois estão tão tesas como de costume.

Anónimo disse...

Manuel Rocha:

Obrigada pela referência e por não se ter esquecido do meu pedido.

Gostei do exemplo de exercicio de cidadania que deu, do qual confesso que já tinha tido ecos.

É claro que logo a seguir não se cuibiu de voltar a zurzir.

Contudo, a honestidade obriga-me a reconhecer que o faz com equilibrio. Não consigo detectar os sinais de gratuitidade que costumam acompanhar este tipo de escrita. Além disso, o senhor e o comentador Alf trazem uma leitura pouco vista e por isso mais vulnerável a antipatias: apontam o dedo a cada um de nós.

Continue a "incomodar-me" que continuarei a lé-lo.

Matilde Costa