sábado, 16 de maio de 2009

O Diabo é o Aborrecimento !


A frase que dá o mote a esta faena é de Peter Brook, um encenador que odeia sentir-se aborrecido quando vai ao teatro. Tomo-a de empréstimo para fazer da vida em sociedade, tal como a vamos vivendo, uma leitura que pretende interpretar o aborrecimento que a inquina como força diabólica capaz de infernizar a vida quando na verdade é o paraíso que se procura.

Na defesa deste “caso” direi que me dá a sensação de transitarmos numa sociedade que se estrutura aborrecida em fuga ao aborrecimento. Acrescento que, bem no fundo, nos vejo como gente que julgando ter resolvido o básico se confronta, aborrecida, com vazios que tenta preencher num universo paralelo. Este universo paralelo poderia descreve-lo metaforicamente como um oceano de expectativas. Um oceano de expectativas que tem sido alimentado pela industria de sonhar em que desaguou a revolução industrial. Rodando em turnos contínuos, há décadas que as máquinas de marketing dos empórios da modernidade não param de, metodicamente, produzir sonhos. Uma prática de produção em série que decorre em duas linhas de montagem paralelas mas distintas. Numa, fabricam-se os modelos de sonho topo de gama, exclusivos, que depois se vendem nas lojas de marca e se usam como símbolo de status ; na outra, as respectiva variantes utilitárias, populares e democratizadas, made in China, vendidos aos sábados nas tendas da feira de Algés e usados como status de imitação. Do sonho como peça artesanal, nem rasto. A verdade é que até os sonhos se standarizaram e aderiram ao main-stream que passa. Por isso são cada vez menos os que ousam sonhar à margem da rapaziada que procura a felicidade nas profissões e carreiras de referência para o sonho do “sucesso”, nas lojas Cerrutti, nos destinos exóticos, nos carros topo de gama, nos apartamentos com vista para…Para onde mesmo ??

Mas deve haver algo no paradigma que o auto-consome. Porque na verdade não se nota que as pessoas sejam mais felizes. O que se nota, sim. é que andam profundamente aborrecidas por não conseguirem lidar com tanta expectativa. À chatice do emprego, onde as expectativas de ordenado ou de progressão andam sempre aquém do merecido, segue-se a chatice da família, onde putos a mais, avós a menos, contas a mais ou férias a menos, infernizam a vida no apartamento com vista para o que devia ser o paraíso, mas que já não é, porque entretanto alguém pariu aquele mamarracho mesmo em frente da panorâmica da sala-de-estar, que grande aborrecimento. Para fugir deste ciclo infernal organizam-se fins-de-semana em turismo rural, com os amigos e os filhos dos amigos, que chatice, pois entretanto os amigos tinham-se zangado com os avós dos netos e não houve onde os depositar.… Não bastando, chovia ! No campo também chove nos fins-de-semana, imagine-se ! E como choveu, não houve actividades. Que graça tem jogar paint-ball, fazer traking, bikling, canoing, para-pente ou para-dente à chuva ?…Faz-se então o quê, se nem revistas há para ler ou TV-Cabo para passar o tempo, mas apenas livros, só livros, que seeeca! Ir observar plantas, pássaros, vacas, ovelhas ? Bem, se ainda fosse qualquer coisa exótica, sei lá, zemas, pamas, lebras, fandas, ou algo do género...Então aproveita-se uma aberta e organiza-se uma excursão ao zoomarine, esse equipamento de educação ambiental onde sempre se podem ver coisas verdadeiramente exóticas e educativas, como leões marinhos a bater barbatanas e catatuas a andar de bicicleta. Na verdade o zoomarine é o tipo de coisa que personifica a diabólica capacidade do aborrecimento para gerar equipamentos anti-aborrecimento. Mas acabou por ser aborrecido porque havia imeeensa gente ! O mesmo aconteceu no restaurante que o Expresso recomendava, por sinal um italiano. Os restaurantes italianos ou japoneses ou chineses, são outra modalidade de anti-aborrecimento. Pode não se comer melhor que noutros mas isso não interessa porque a decoração é menos aborrecida. E era giro, de facto, tinha imeeenso artesanato marroquino, pena que tenha acabado por ser também aborrecido porque o serviço demorou imeeenso e não havia actividades para as crianças.

Portanto o aborrecimento inspira o diabo. Diabólico como é, o diabo inspira o anti-aborrecimento e põe meio mundo a congeminar maneira de viver à custa do aborrecimento da outra metade. Isto alternadamente, esclareça-se. E já não se trata apenas de decorar o jardim da vivenda com as águias do Benfica ou o portão do quintal com os leões do Sporting, e assim passar de forma menos aborrecida as tardes da merecida reforma de funcionário público jubilado, tentando ficar para a história como o Gaudi da Malveira. O anti-aborrecimento institucionalizou-se e é coisa séria mesmo, género parques temáticos pré-pagos onde se macaqueia menires e antas, onde se dorme em cabanas celtas e se toma o pequeno almoço em tendas de supostas feiras medievais. Eu conheço mesmo um gajo que se especializou e ganha a vida a fazer de pedinte medieval que sai de dentro de um pote nessas ocasiões. E tudo isto no que sobra de uma antiga quinta dentro de um parque natural, outra coisa que foi criada para tornar o contacto com a natureza menos aborrecido.

No entanto, passado o efeito da novidade, em que toda a gente, animados e animadores, alardeiam contentamentos postiços, o aborrecimento volta em força e ataca por igual os que já andavam aborrecidos, pois talvez seja essa a condição de quem acha genuinamente que nunca terá o bastante de nada e por isso quer tudo mesmo que não saiba exactamente o quê, mas também os outros, que se propunham anti-aborrecer, pois depressa concluem que não há pachorra! É que quem procura alternativas ao aborrecimento quer coisas de "colidade", sei lá… Por exemplo, onde já se viu uma cabana celta sem ar condicionado ou uma tenda medieva sem máquina expresso ?! Imaginam o possidónio ?

Ridículo ? Nada disso ! Civilizacional , apenas. Um ambiente cultural que funciona num limbo estranho sem perceber muito bem o que está em causa e que a barbárie espreita na outra página. Duvidam ? Entrem na internet e procurem contactar alguém na corte de Cleópatra ou algum patrício da Roma de César. Depois falamos. E desculpem se os aborreci.

domingo, 10 de maio de 2009

Contra-Fogos

Os bombeiros profissionais, particularmente os especializados em fogos em contexto florestal, conhecem a técnica de combater o fogo com o próprio fogo. Os que já tiveram a possibilidade de a pôr em prática, também sabem que, fora de uma faixa muito estreita de condições ideais, em vez de contribuir para combater o incêndio, o contra-fogo pode aumentar-lhe a dimensão e torná-lo incontrolável. Por isso raramente o usam. Os economistas, no entanto, parece navegarem muito ao largo deste tipo de sensibilidade e poderá ser por isso que os tenho visto insistir em combater a crise instalada no sistema capitalista usando o mesmo fenómeno que o originou : o consumo. Sim, escrevo “ o consumo” e não o “sub-prime”, porque na realidade o sub-prime nada mais foi que a tentativa desesperada de contrariar os impactos na economia da crise de consumo que se instalara na construção. No entanto, a reflexão que tem predominado continua a ser linear: se há problemas associados à retracção da procura, a injecção de liquidez no sistema deveria permitir a retoma do crescimento do consumo. Como se vê não funcionou no caso do sub-prime e como se continua a ver também não funciona na economia real apesar dos milhões atirados para o poço sem fundo das expectativas goradas. Eventualmente, o que poderá estar aqui em questão é a dificuldade de prescindir da crença fortemente enraizada de que o consumo é coisa dotada de possibilidade de crescimento ilimitada. Não é . Para que o crescimento constante do consumo fosse uma possibilidade real, seriam necessárias pelo menos duas condições: em primeiro lugar que a capacidade de consumir fosse de facto inesgotável; em segundo lugar, que as economias tivessem um potencial ilimitado de responder a essa apetência.

Estas questões não são novas. Há décadas que os limites do crescimento vêm sendo debatidos por grupos claramente marginais em relação à ortodoxia reinante. Mas as reflexões criticas que têm sido produzidas sobre esta questão confrontam as grandes crenças fundadoras do capitalismo e por isso não são benvindas na maioria das academias. Na verdade, como qualquer crença que se preze, também estas têm uma natureza ideológica com fundações culturais profundas que não é fácil mudar. Em boa parte isso poderá dever-se à insegurança associada aos sentimentos de orfandade que ocorrem quando não existem crenças alternativas suficientemente credibilizadas. Mas isso não deveria bastar para desencadear o auto-bloqueio que se verifica até nas inteligências mais argutas, levando-as a recorrer a automatismos defensivos onde se socorrem de argumentos de autoridade e se refugiam sob edifícios de explicações que de tão repetidos acabam por conduzir a maioria a adoptá-los acriticamente como se de uma realidade de substituição se tratasse. Porque na outra realidade, na do dia-a-dia, há um limite para a quantidade de casas, de carros, ou de outra coisa qualquer , que cada um de nós consegue consumir. A partir de um determinado momento, naturalmente variável de acordo com o contexto e o tipo de produto em causa, a dinâmica da oferta e da procura deixa de auto-regular os fenómenos económicos. Isso acontece quando entram em jogo outras variáveis, como o espaço ou as associadas ao bem-estar das pessoas. Para quem vive ou trabalha numa cidade congestionada, por exemplo, ter carro pode deixar de ser um acessório de conforto para passar a ser um problema e um desconforto, seja pela demora nos circuitos seja pela dificuldade de estacionamento. Por isso não admira que a opção de não ter carro esteja a ser claramente assumida por vastas faixas da população apesar de terem capacidade financeira para o adquirir. O caso é que este género de atitude vem gorar as expectativas de crescimento de uma economia que fez do sector automóvel um dos pilares da sua “prosperidade”. O mesmo se poderia dizer em relação à construção como em relação ao turismo.

Os instrumentos clássicos de gestão do capitalismo têm conseguido dar a volta a estas limitações recorrendo ao marketing para criar “novas necessidades” e ao efeito da “novidade”. A receita é conhecida e chama-se “fabricar novos sonhos”. Depois, apela-se ao “empreendedorismo” para que seja capaz de manter e fomentar essa dinâmica de reestiling permanente e que se apoia numa atitude que assume por irrelevante a utilidade do que se produz desde que se venda. Por isso se “criam” e promovem “novos destinos” turísticos, casas com vistas “exclusivas”, carros com tv no lado de trás do banco do condutor. Mas aqui entra a segunda questão: a capacidade dos recursos para manter uma resposta sempre em crescendo a este género de dinâmica, e há um que já é incontornável: a necessidade de energia para a manter. Ora a energia, como já se vai percebendo, não é um recurso ilimitado . Não só não é recurso ilimitado como é dela que depende o acesso à generalidade dos outros recursos, ilimitados ou não, que continuam a fazer parte do cardápio do quotidiano das nossas “necessidades”. No entanto, como vai sendo óbvio, este género de questões continua a passar à margem da discussão económica. Em seu lugar organizam-se “sessões de fogo-de-artificio” em redor de temas como as taxas de juro, os off-shores ou a regulação bancária. Coisas excelentes para distrair a malta mas que não resolvem nada de substancial, ou seja, de paradigma. Possivelmente isso sucede porque, como dizia há dias Lula da Silva no seu jeito muito peculiar, “…os pós-doutorados das grandes capitais do capitalismo mundial, ( os tais brancos de olhos azuis a quem já se tinha referido noutra ocasião…) que sabem tudo quando a crise é na Bolívia, na Argentina ou no Brasil, não foram capazes de prever nem se mostram capazes de resolver a crise que se instalou nos seus quintais, e com isso revelam aquilo que já se sabia: que afinal não sabem nada!”