A história e a importância da ideia de progresso não são consensuais. Há quem lhes atribua mero significado ideológico e inclusive o sentido da palavra não está isento de disputas, havendo mesmo quem considere que o seu conceito entre os clássicos não poderia rever-se no sentido moderno da expressão. Este, lido à la Kant, dá do progresso a ideia de movimento unificado de toda a humanidade para uma sociedade baseada na justiça e na liberdade do individuo. Uma espécie de céu na terra com fortes indícios de nostalgia religiosa, género de imagem espelhada de um cristianismo revisitado para secularizar a ideia do paraíso através de algumas premissas que Beker tipificava assim: um optimismo inato acerca da condição e do destino da humanidade; a recusa de sentido caótico na história; a crença na posteridade; o conhecimento como força motriz da sociedade; a perfeição como destino.
Há quem defenda que as sequelas da revolução francesa terão produzido algum efeito “moderador” sobre todo este optimismo. Pessoalmente confesso que nunca percebi muito bem onde. Mas independentemente disso parece que se manteve a centralidade atribuída ao conhecimento na capacidade humana de compreensão e projecção de si mesma, pelo que não admira que a ciência e a razão se tenham estabelecido como pilares de uma utopia global positivista para o futuro.
Assim concebida, como crescente sofisticação do conhecimento e melhoria da vida, e reconhecida como força motora do ocidente, a ideia de progresso desaguou positivista na modernidade . Mas este positivismo teve uma particularidade de origem: um carácter marcadamente materialista, que nos colocou a olhar para o progresso como um estádio de prosperidade material de indução cientifica e capitalista. Com tal ênfase que o crescimento continuado dessa prosperidade passou a ser tido por imperativo de progresso. Para isso sofisticou-se a complexidade mas negligenciaram-se os impactos culturais, sociais ou ambientais das iniciativas em seu nome empreendidas. Na verdade a ciência não produziu uma moral e a modernidade não resolveu a conflitualidade entre o interesse colectivo e o interesse individual. Os jogos de palavras com que a pós-modernidade nos tem brindado, poderão ajudar a iludir esta questão, mas não a resolve-la. De facto, a partir do momento em que mundo passou a representar-se a si mesmo como se não houvesse constrangimentos à prossecução dos sonhos, fossem eles quais fossem, originou-se também um alargamento da ideia de progresso que, sem nunca prescindir da abundância como paradigma, abandonou a solidez das estruturas típicas do pragmatismo vitoriano para incorporar de forma algo ambivalente noções de contingência nos termos das quais tudo é possível, bem como o seu contrário. A perenidade como valor deixou de ser considerada e a propensão para o pensamento global especializado conduziu a níveis de abstracção cujas fragilidades só se vislumbram quando, como agora, aqueles que eram unanimemente reconhecidos como os “pilares dourados” do progresso ocidental cederam fragorosamente.
Por conta deste acidente há gente melhor que eu que antecipa o fim da modernidade e o advento de uma nova era. Não necessariamente de novas concepções de progresso, note-se, mas de um género de correcção de rota norteado por um melhor entendimento global dos fenómenos , entendimento esse que reivindicamos como sinónimo de uma melhoria significativa da nossa capacidade cientifica de percepção das realidades complexas e por conseguinte também de controlo do seu devir. Simplificando, há quem defenda que nada existe de errado com o paradigma, mas apenas com o funcionamento do sistema que o serve.
Ora aqui hesito. Hesito porque retenho da história a propensão para transformar bons princípios em processos de resultados duvidosos.
Quando Morin sugeriu que a acção politica poderia ser melhorada pela compreensão global da realidade a que respeita, supôs seguramente que seria possível retirar benefícios práticos de melhores níveis de entendimento sistémico do funcionamento das estruturas com as quais interagimos. Mas, como sobressai da tentativa de abordagem macroscópica de Rosnay, a nossa necessidade de estabelecer padrões de comportamento para compreender o funcionamento das coisas não se dá bem com o aumento continuado do número de varáveis que as influenciam. Daí que a tentativa de apreensão de mecanismos de elevada complexidade tenda a apresentar como reverso uma espécie de paralisia operacional. Curiosamente isso acontece com igual facilidade quando derivamos para a especialização e com isso perdemos perspectiva, como quando a tentamos recuperar recorrendo a noções globais construídas por adição sucessiva de abstracções redutoras. É o caso de conceitos como humanidade, clima, história, economia, ambiente, entidades ás quais o progresso conferiu um significado global mas que não se conseguem descrever segundo os processos de narrativa convencionais.
No caso da economia, por exemplo, embora seja possível representar e descrever a totalidade dos sistemas lineares de produção e troca que acontecem no interior de um espaço num determinado tempo, bem como os comportamentos que os acompanharam, não há nenhuma matriz capaz de integrar a infinitude de acontecimentos materiais e emocionais que ocorreram nas sua múltiplas interacções concretas e menos ainda de as prever. Esta impossibilidade e o desejo de facilitar e potenciar os resultados associados aos processos de troca, conduziu o progresso económico ( e outros com ele ) no sentido da homogeneização de procedimentos. Em consequência reduziu-se a diversidade de práticas e abandonaram-se estratégia pragmáticas fundadas sobre o principio da precaução ( constituição de reservas ) por troca com a crença nas virtudes da especialização e da interdependência Mas esta interdependência é lida em chave equivoca. Equivoca porque existe uma diferença significativa entre a realidade que ela representa e a imagem de complementaridade que pretende transmitir. Em economia a complementaridade tem sentido e funciona quando existe um nível de autonomia significativo. Isto é, entre a minha actividade de agricultor e a do meu vizinho pescador existe toda a complementaridade do mundo porque trocamos peixe por batata e ambos ficamos satisfeitos com a diversificação do menu. Mas a verdade é que se nos zangassemos eu sobreviva bem só com batata e ele só com peixe. Seria uma dieta monótona mas viável. Ora outro tanto deixa de acontecer se eu e o meu vizinho decidirmos dedicar-nos em exclusivo ao turismo. Por troca com os nossos serviços os turistas que nos visitam trazem-nos os excedentes de peixes e de batatas que produzem. Mas a verdade é que se o ano for mau na terra deles e não conseguirem produzir excedentes, em vez de virem de férias ficam em casa, e eu e o meu vizinho ficamos de barriga vazia. Ora isto acontece porque os bens que aqui se trocam não são equivalentes e a complementaridade só funciona nessa condição. Fora dela o que chamamos de interdependência pode na prática significar dependência e vulnerabilidade.
No momento em que alinhavo estas linhas leio a noticia da corrida aos supermercados num dos países que se encontra no top-ten dos mais ricos do mundo – a Islândia. Ou seja, o progresso, este progresso, positivista, cientifico, racional, não foi capaz de resolver as questões do aprovisionamento e das trocas da energia que são fundadoras do funcionamento das sociedades e camuflou essa insuficiência instituindo subsistemas, como o financeiro, cuja visibilidade e aparência complexa iludem a natureza transitória e supérflua da prosperidade que se tem por adquirida. Como está à vista, a prosperidade adquirida funda-se afinal na mera troca de expectativas. Ora como resultado de uma dinâmica que se reivindica herdeira da ciência e da razão, teremos que convir que é pouco. Tão pouco que legitima a dúvida de saber se será insuficiência do processo ou se, afinal, o problema está mesmo no paradigma. E que a ideia de progresso como sistema cartesiano que pretende combinar prosperidade, justiça e liberdade para todos em todo o lado seja afinal uma equação impossível.