terça-feira, 14 de outubro de 2008

Nem sei como lhe chame...

A história e a importância da ideia de progresso não são consensuais. Há quem lhes atribua mero significado ideológico e inclusive o sentido da palavra não está isento de disputas, havendo mesmo quem considere que o seu conceito entre os clássicos não poderia rever-se no sentido moderno da expressão. Este, lido à la Kant, dá do progresso a ideia de movimento unificado de toda a humanidade para uma sociedade baseada na justiça e na liberdade do individuo. Uma espécie de céu na terra com fortes indícios de nostalgia religiosa, género de imagem espelhada de um cristianismo revisitado para secularizar a ideia do paraíso através de algumas premissas que Beker tipificava assim: um optimismo inato acerca da condição e do destino da humanidade; a recusa de sentido caótico na história; a crença na posteridade; o conhecimento como força motriz da sociedade; a perfeição como destino.

Há quem defenda que as sequelas da revolução francesa terão produzido algum efeito “moderador” sobre todo este optimismo. Pessoalmente confesso que nunca percebi muito bem onde. Mas independentemente disso parece que se manteve a centralidade atribuída ao conhecimento na capacidade humana de compreensão e projecção de si mesma, pelo que não admira que a ciência e a razão se tenham estabelecido como pilares de uma utopia global positivista para o futuro.

Assim concebida, como crescente sofisticação do conhecimento e melhoria da vida, e reconhecida como força motora do ocidente, a ideia de progresso desaguou positivista na modernidade . Mas este positivismo teve uma particularidade de origem: um carácter marcadamente materialista, que nos colocou a olhar para o progresso como um estádio de prosperidade material de indução cientifica e capitalista. Com tal ênfase que o crescimento continuado dessa prosperidade passou a ser tido por imperativo de progresso. Para isso sofisticou-se a complexidade mas negligenciaram-se os impactos culturais, sociais ou ambientais das iniciativas em seu nome empreendidas. Na verdade a ciência não produziu uma moral e a modernidade não resolveu a conflitualidade entre o interesse colectivo e o interesse individual. Os jogos de palavras com que a pós-modernidade nos tem brindado, poderão ajudar a iludir esta questão, mas não a resolve-la. De facto, a partir do momento em que mundo passou a representar-se a si mesmo como se não houvesse constrangimentos à prossecução dos sonhos, fossem eles quais fossem, originou-se também um alargamento da ideia de progresso que, sem nunca prescindir da abundância como paradigma, abandonou a solidez das estruturas típicas do pragmatismo vitoriano para incorporar de forma algo ambivalente noções de contingência nos termos das quais tudo é possível, bem como o seu contrário. A perenidade como valor deixou de ser considerada e a propensão para o pensamento global especializado conduziu a níveis de abstracção cujas fragilidades só se vislumbram quando, como agora, aqueles que eram unanimemente reconhecidos como os “pilares dourados” do progresso ocidental cederam fragorosamente.

Por conta deste acidente há gente melhor que eu que antecipa o fim da modernidade e o advento de uma nova era. Não necessariamente de novas concepções de progresso, note-se, mas de um género de correcção de rota norteado por um melhor entendimento global dos fenómenos , entendimento esse que reivindicamos como sinónimo de uma melhoria significativa da nossa capacidade cientifica de percepção das realidades complexas e por conseguinte também de controlo do seu devir. Simplificando, há quem defenda que nada existe de errado com o paradigma, mas apenas com o funcionamento do sistema que o serve.

Ora aqui hesito. Hesito porque retenho da história a propensão para transformar bons princípios em processos de resultados duvidosos.

Quando Morin sugeriu que a acção politica poderia ser melhorada pela compreensão global da realidade a que respeita, supôs seguramente que seria possível retirar benefícios práticos de melhores níveis de entendimento sistémico do funcionamento das estruturas com as quais interagimos. Mas, como sobressai da tentativa de abordagem macroscópica de Rosnay, a nossa necessidade de estabelecer padrões de comportamento para compreender o funcionamento das coisas não se dá bem com o aumento continuado do número de varáveis que as influenciam. Daí que a tentativa de apreensão de mecanismos de elevada complexidade tenda a apresentar como reverso uma espécie de paralisia operacional. Curiosamente isso acontece com igual facilidade quando derivamos para a especialização e com isso perdemos perspectiva, como quando a tentamos recuperar recorrendo a noções globais construídas por adição sucessiva de abstracções redutoras. É o caso de conceitos como humanidade, clima, história, economia, ambiente, entidades ás quais o progresso conferiu um significado global mas que não se conseguem descrever segundo os processos de narrativa convencionais.

No caso da economia, por exemplo, embora seja possível representar e descrever a totalidade dos sistemas lineares de produção e troca que acontecem no interior de um espaço num determinado tempo, bem como os comportamentos que os acompanharam, não há nenhuma matriz capaz de integrar a infinitude de acontecimentos materiais e emocionais que ocorreram nas sua múltiplas interacções concretas e menos ainda de as prever. Esta impossibilidade e o desejo de facilitar e potenciar os resultados associados aos processos de troca, conduziu o progresso económico ( e outros com ele ) no sentido da homogeneização de procedimentos. Em consequência reduziu-se a diversidade de práticas e abandonaram-se estratégia pragmáticas fundadas sobre o principio da precaução ( constituição de reservas ) por troca com a crença nas virtudes da especialização e da interdependência Mas esta interdependência é lida em chave equivoca. Equivoca porque existe uma diferença significativa entre a realidade que ela representa e a imagem de complementaridade que pretende transmitir. Em economia a complementaridade tem sentido e funciona quando existe um nível de autonomia significativo. Isto é, entre a minha actividade de agricultor e a do meu vizinho pescador existe toda a complementaridade do mundo porque trocamos peixe por batata e ambos ficamos satisfeitos com a diversificação do menu. Mas a verdade é que se nos zangassemos eu sobreviva bem só com batata e ele só com peixe. Seria uma dieta monótona mas viável. Ora outro tanto deixa de acontecer se eu e o meu vizinho decidirmos dedicar-nos em exclusivo ao turismo. Por troca com os nossos serviços os turistas que nos visitam trazem-nos os excedentes de peixes e de batatas que produzem. Mas a verdade é que se o ano for mau na terra deles e não conseguirem produzir excedentes, em vez de virem de férias ficam em casa, e eu e o meu vizinho ficamos de barriga vazia. Ora isto acontece porque os bens que aqui se trocam não são equivalentes e a complementaridade só funciona nessa condição. Fora dela o que chamamos de interdependência pode na prática significar dependência e vulnerabilidade.

No momento em que alinhavo estas linhas leio a noticia da corrida aos supermercados num dos países que se encontra no top-ten dos mais ricos do mundo – a Islândia. Ou seja, o progresso, este progresso, positivista, cientifico, racional, não foi capaz de resolver as questões do aprovisionamento e das trocas da energia que são fundadoras do funcionamento das sociedades e camuflou essa insuficiência instituindo subsistemas, como o financeiro, cuja visibilidade e aparência complexa iludem a natureza transitória e supérflua da prosperidade que se tem por adquirida. Como está à vista, a prosperidade adquirida funda-se afinal na mera troca de expectativas. Ora como resultado de uma dinâmica que se reivindica herdeira da ciência e da razão, teremos que convir que é pouco. Tão pouco que legitima a dúvida de saber se será insuficiência do processo ou se, afinal, o problema está mesmo no paradigma. E que a ideia de progresso como sistema cartesiano que pretende combinar prosperidade, justiça e liberdade para todos em todo o lado seja afinal uma equação impossível.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Como um balão furado

Há nas proliferas explicações para a dita crise do sistema financeiro alguns aspectos que tendem a ser escamoteados num exercício de negacionismo revelador. No topo desta lista coloco a natureza do próprio sistema económico. Assumi-lo como centro da discussão implicaria reduzir as questões financeiras à magnifica simplicidade dos seus fundamentos económicos. Ora isso iria deixar desarmados e sem emprego todos os “magos da finança” . De facto são eles que, não encontrando outra forma de justificar a existência senão complicando o que é simples para desse modo se substituírem a uma realidade óbvia, se instalaram como mediadores para uma ficção cuja suposta complexidade foi arquitectada como instrumento de controlo e de exercício do poder.

Contrariamente ao que se pretende fazer crer, a economia não tem nada de complicado. Ela resume-se ao modo como nós particulares e nós sociedades gerimos os recursos que são necessários à nossa subsistência. É verdade que a partir de um momento qualquer cuja localização no tempo ou no espaço é irrelevante para esta arenga, decidimos que subsistir era pouco. Vai daí que estabeleceu-se o progresso como desígnio que se auto-define em critérios de bem-estar que na prática se têm traduzido principalmente em ter mais de tudo: mais casas, mais carros, mais estradas, mais roupa, mais alimentos, e, claro, mais dinheiro como símbolo da capacidade de conseguir mais de tudo isso. Neste processo ideológico, em que o new-deal foi um importante marco, o valor simbólico do dinheiro desligou-se da realidade adquirida para passar a exprimir a realidade expectável.

Assim, ao contrário do que era uso no tempo da economia dos nossos avós, em que só se faziam as despesas depois de obtidas as receitas, a modernidade faz as despesas na expectativa de receitas que ainda não aconteceram. Desta forma, em lugar de se centrar na troca de bens ou dos seus equivalentes simbólicos, a economia resvalou para a troca de expectativas. Esta mudança de atitude permitiu uma coisa muito interessante, sem dúvida, que é a possibilidade de usufruir já daquilo que em condições normais só se poderia adquirir daqui a não sei quanto tempo. Uma vez institucionalizado este novo principio de funcionamento, logo proliferaram as entidades especializadas na gestão de expectativas - os bancos. Mas enquanto os tradicionais emprestavam um chouriço a troco da garantia de um porco inteiro, os modernos avançam logo com o porco na crença de que com tanta gente a retribuir-lhes chouriços o risco associado à probabilidade de que uma quantia significativa de devedores falhe o seu tributo é bastante aceitável face ao enorme atractivo que constitui no curto prazo a disponibilidade de enormes fluxos monetárias para a prática especulativa. Deste modo o sistema bancário assegurou a mutação da economia real nas suas variantes de ficção, ou seja, transformou a nossa capacidade real de produzir e com produção gerar riqueza utilizável, na atraente ilusão de que a temos assegurada ainda antes de ter sido produzida.

Para que a gestão desta delicada ilusão se mantenha sem sobressaltos de maior, existe uma dupla premissa essencial: a de que a roda das expectativas não só não pare de girar como a de que enquanto gira não pare de crescer. Ou seja, um sistema que tem no consumo o seu motor, no crédito o respectivo combustível e na abundância ilimitada e universal o paradigma de referência, precisa de acreditar na possibilidade de crescimento ilimitado da riqueza com uma atitude de fé dogmática, pois sem ele nada disto funcionaria.

No entanto a abundância tem limites. Eu sei que é difícil de encaixar mas é assim mesmo. Esses limites são estabelecidos por recursos materiais concretos, pela capacidade tecnológica de os processar e pelo número de utentes potenciais. Além disso a gestão desses recursos obedece a leis tão universais como as da termodinâmica ou a dos rendimentos decrescentes. Esta em particular reza que existe um momento a partir do qual o acréscimo de resultados que se obtêm de um processo se torna inversamente proporcional à quantidade de recursos que nele se investe. Ou seja, numa parcela de terreno de dimensões definidas, há um momento a partir do qual por unidade de trabalho a mais que nele invista num determinado cultivo, já obtenho menos de uma unidade de produto. Chama-se a isto rentabilidade marginal negativa e é uma característica dos sistemas produtivos que só não é mais evidente porque os fluxos económicos tendem a ser medidos em moeda. Quer dizer, exprimem-se através da artificialidade de padrões monetários que não são realmente comparáveis entre si, em lugar de se contabilizarem numa unidade de medida facilmente padronizável como seria a energia, por exemplo.

De facto, qualquer pessoa em bom estado de saúde mental recusaria sempre a troca directa de um pão de quilo por um de meio quilo, pois seria sempre um óbvio mau negócio.Porquê ? Porque existe nessa troca uma óbvia desproporção dos respectivos valores energéticos. No entanto é frequente que a mesma pessoa não hesite em pagar pelo pão de meio quilo mais do que pagaria pelo de quilo, bastando para isso que o primeiro seja promovido como “pão de marca”. Ou seja, a economia descolou dos sistemas de troca em contexto de satisfação de necessidades bem padronizadas para se estabelecer em redor de critérios de equivalência que incorporam factores subjectivos cujo gestão foi entregue ao “deus mercado”. Desta “sofisticação” do homo economicus não adviria mal de maior ao mundo se esta dinâmica não se tivesse globalizado a reboque do recurso ao efémero, ou melhor dizendo, do abuso de um fabuloso recurso energético que ajudou a criar uma ilusão complementar de riqueza e instalou um modelo social que além de artificial é insustentável porque há muito que funciona assente em actividades de rentabilidade marginal negativa. Por isso a prosperidade desta economia tal como a conhecemos é um balão cheio de gás. Concretamente, um balão cheio do CO2 resultante da queima de combustíveis fósseis. De consistente ela não tem mais substância que a matéria de que é feito o balão. É isso que se vê quando ele se esvazia ao mínimo percalço deixando a nu a extraordinária mistificação da suposta solidez do sistema, que afinal se resume a expectativas a flutuar no que ainda sobra de um antigo lago de petróleo.
Link para um texto de quem também não gosta de complicar o que é simples.