sábado, 8 de dezembro de 2007

Ciência em Contra Ponto - III

O Princípio da Imodéstia

A dependência de agendas alheias mas poderosas e o beneficio de uma estranha forma de benevolência social, poderão ser factores que explicam e estruturam a sobranceira imodéstia com que a classe científica se relaciona com as restantes criaturas.

Instados a esclarecer as dúvidas dos supostos leigos sobre as suas supostas certezas, é com inusitada frequência que vastos sectores desta importante comunidade banalizaram como arma argumentativa a arrogância intelectual.

Fazem-no de duas formas.

A primeira é elementar. Sacam-se os galões de um intangível grau académico e debita-se com inenarrável desdém um lugar comum, pois o estado ígnaro do interlocutor mais não justifica. Exemplo: "Como Doutorado em Química digo que a homeopatia é uma patetice porque é um placebo".

A segunda é mais elaborada. Recorre às linguagens cifradas e citações em círculos concêntricos para explicar que os mistérios da ciência à ciência pertencem. Exemplo: “E=mc2 é a energia duma partícula massiva no seu referencial próprio. A expressão aparece naturalmente na formação do 4º vector–momento na forma tensorial com a métrica dum espaço de Minkowski. A necessidade de interpretar a componente temporal como energia segue da própria formulação tensorial da teoria.”

Seria de uma enorme injustiça dizer que os homens e as mulheres da ciência estão sós nesta propensão. Sabe-se que não é o caso, mas agora é deles que falamos.

Colocados perante este tipo de manifestações da sua própria arrogância, não são raros os casos dos cientistas que argumentam com o absurdo das falsas modéstias. De acordo. Mas embora a imodéstia não tenha necessariamente de ser arrogante, o caso é mais complexo e a razão é simples: a ciência não é infalível e também se engana !

Também na ciência o erro é algo que só a muito custo e a frio se reconhece, a menos que sirva como arma de arremesso para dirimir rivalidades internas dos seus protagonistas. Nestes casos vale tudo, quanto mais mediatizado melhor e a troco de pouco envia-se a ética para Ítaca. De resto, a história da ciência está bem recheada de erros trágicos, embora se saiba que o panorama seria ainda mais trágico se fossem revistos os critérios que definem o erro em ciência e a avaliação integrasse de forma mais abrangente os impactos sociais a que conduz. É que, lá está, não foi Truman quem concebeu a Litlle Boy.

Se o direito do cientista ao erro não merece grande contestação, já a atitude com que a ele reage é outro assunto. É que erros há muitos. Ora nem todos são meros enganos, simples produto de mundividências confinadas, ou resultado da urgência de gritar eureka e com isso conquistar um lugar visível nas prateleiras da história. Quando hoje se olha para o Mundo apercebemo-nos de inúmeras dinâmicas de catástrofe que têm na sua génese erros da ciência. Por isso, por todos os erros passados e futuros, a humildade deveria ter lugar obrigatório no método científico. Mas pelo que se tem visto, não tem !

8 comentários:

Unknown disse...

Caro Manuel Rocha,

Como princípio concordo com o que diz. Mas, por favor, sugira-me lá uma estratégia eficaz para se falar com alguém que diz que "este produto é mto bom pq não tem químicos" e se é, por acaso, doutorado em química? Pode-se ser mais didático do que puxar dos galões, é certo, mas resulta?

Manuel Rocha disse...

Olá Joana.

Não, não sou doutorado em quimica, mas tenho a sensação que quando a componente didáctica não funciona a autoritária ainda funciona menos.

Sociológicamente, não creio que os argumentos de autoritarismo estejam bem cotados, ao contrário de um argumento publicitário, por exemplo. Tem mais impacto o Criostiano Ronaldo a dizer mal ou bem de um medicamento que o mais cotado dos doutorados em quimica.

Mas a questão é outra, pois remete para uma atitude mais abrangente que muitas vezes ofusca de tal forma quem está do lado de cá da ciência que nos torna incapazes de nos olharmos a nós mesmos com o indispensável sentido critico.

Saudações.

Mariano Feio disse...

Vai espectacular esta sequência de textos sobre a relação da ciência com a sociedade. Linguagem acessível, bem centrados, bons exemplos. Estava a aguardar o fim da "saga" ( porque vai haver mais, não é ?...)para um comentário final mas, impaciente, não resito: despache-se, homem !

Mariano Feio

Mariano Feio disse...

Joana:

Há dias recebi um pagamento de um cliente em cheque. Sabe o que constava antes do nome ? Professor Doutor...

Havia necessidade ?

As ideias que temos, valem pelos fundamentos que delas temos ou pela forma como as adquirimos ?

O mesmo que o blogger refere para a ciência é válido para a arte. Leio textos sobre obras que fico à beira duma apoplexia. E já vi muitos artistas honestos padecerem do mesmo sindroma quando os querem obrigar a racionalizar a obra por vias tão invias que nunca lhes passaram pela cabeça.

Duvido que nestas coisas se esteja agora pior do que já se esteve. Mas agora é tudo mais visível.

antonio ganhão disse...

Vamos lançar aqui um passatempo: Adivinhem quem é o Manuel.

Como sempre um texto bem construído e ainda melhor escrito, de tal forma que fico com a impressão que o autor não escreve assim e está só a fingir…

Não sei se o Manuel leu o “Sempre a brincar” de Feynman. Verá que os verdadeiros cientistas, as mentes brilhantes são sempre pessoas humildes. Olhe, veja o meu caso e o do Alf: somos pessoas verdadeiramente humildes.

Em todas as profissões os pretensos especialistas são sempre uns rapazinhos inchados. Aqui na empresa, antes de termos passado a informática para o regime de outsourcing, detectava imediatamente um informático pela pose de peru inchado com que se pavoneava pelos corredores.

Também eu quando questionado sobre aquilo que não sei, opto por um sorriso trocista, induzindo no meu interlocutor a sensação de ter feito a pergunta mais estúpida do mundo, à qual obviamente não me vou dignar a responder!

Olha esta coisa das letras irrita-me!

Unknown disse...

o "Professor Doutor" antes do nome, no cheque, é provincianismo. Provincianismo de que padece o país, é certo. No meu caso fui refilar ao banco por me terem colocado Dra. antes do nome qd, explicitamente, disse que não queria. Não vem a propósito de nada, nestas situações.

Mas numa discussão sobre químicos, dizer-se que se é doutorado em química não arruma nenhum argumento mas confere alguma credibilidade ao argumento que se segue. Não?

E eu tb não sou doutorada em química.

Manuel Rocha disse...

Olá de novo:

Eu sei que o que vou escrever pode ser apenas fruto de um preconceito meu.
Mas entre o conhecimento do grau académico do meu interlocutor e a capacidade que ele demonstre para me explicar o infinitamente complexo de uma forma tão simples, mas tão simples, que qualquer aluno primário perceba, prefiro a segunda.
Eu sei que não é fácil ser-se divulgador. Alf's só há um...
E a vida tem-me ensinado a desconfiar dos CV's à cabeça. É que tenho notado uma fortissima correlação entre a necessidade de o mostrar e a incapacidade de quem o faz se fazer entender. Por vezes até fico com a ideia de que se trata de uma estratégia de quem o usa se defender da sua própria ignorância do tema.Mas estes casos são mais raros, admito. E mesmo assim é evidente a contigência do que escrevi. São só "sensações" apreendidas sem o rigor a que a ciência obriga.
Mas, lá está, nada obrigaria a imodéstia a ser humilde se nunca errasse. É com essa arrogância que não me conformo.

Obrigado a todos.

Unknown disse...

Bom, é verdade. Talvez seja a minha preguiça a a falar. Confesso que me tornei algo cínica, após muitas discussões, tanto académicas como outras, e que já não acredito que toda a gente entenda a fórmula simples que até um aluno da primária entenda.