quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Ciência em Contra Ponto - VI

Ponto Final

Pratts, numa das inúmeras vezes que deu voz a Maltese, confronta-o com uma situação em que, regressado de longa viagem, todos se espantaram de o ver, pois tinham-no por morto. Impávido como sempre, Corto comentou a situação nos seguintes termos: “Como é evidente, a notícia da minha morte foi manifestamente prematura!”


Não consigo deixar de recordar esta frase quando ouço ou leio alguém defendendo que a única alternativa à ciência é o obscurantismo. O caso é que a espécie superou a prova darwiniana de milénios de suposto “obscurantismo” antes de parir a ciência, e não se extinguiu! Portanto, parece-me pouco provável que isso sucedesse se amanhã eventualmente a ciência deixasse de estar entre nós.


É evidente que não falta quem argumente à La Palisse, como faz Sagan, ao aventar que,” apesar de tudo, sem ciência não teríamos melhorado a esperança média de vida nem a mortalidade infantil”. De tão óbvia este tipo de constatação roça a demagogia, até porque reporta para uma situação impossível de contestar, uma vez que ainda não há como regressar à história e refazer agulhas para mudar de via o caminho civilizacional.


Assim, no percurso que nos trouxe até aqui, feito de forças e fragilidades, de muitas coisas boas e outras nem tanto, por entre comprometedoras dependências, naturais contradições e desnecessárias imodéstias, a ciência criou-nos um quartinho de ideias arrumadinhas e etiquetadas para nos facilitar a vida. E, em parte graças ao estatuto de imunidade que a ciência conquistou, a generalidade de nós vive segundo a noção de que este é o melhor dos mundos possível.


Pessoalmente aceito que seja prático. Sei, por experiência, que é mais fácil encontrar a pasta de dentes que costumo usar num hipermercado que na mercearia da Dona Isabelinha.


Mas se um hipermercado se pode definir como um conjunto de géneros alinhados, ordenados e devidamente etiquetados, já um conjunto arrumado de ideias etiquetadas não basta para garantir um futuro. Para isso, além de respostas para explicar o mundo, é necessário um paradigma e ainda um sistema de controlo sobre as ideias e a forma como elas interagem, pois ao contrário do que acontece com as pastas de dentes nos hipermercados, as ideias são como as pastas de dentes na Dona Isabelinha – estão sempre a mudar de marca, de sítio e por vezes até trocam de embalagem.


Esta tríada, justificação - paradigma - sistema de controlo, é uma definição possível para uma ideologia, e se o Marx sonha que o reescrevi assim de certeza que me vem assombrar o resto da existência.


As ideologias, quaisquer que elas sejam, têm em comum o facto de se alimentarem das suas próprias certezas. Marx identificou-lhes também a propensão para ocultarem por detrás de uma face externa de idealismos de fácil adesão um sentido de devir desenhado pelas classes dominantes em cada época. E não há melhor lugar para as difundir que a escola.


Se olharmos para a história à procura de um sistema que revele uma capacidade inata de se metamorfosear, esse sistema responderá pelo nome de capitalismo. Por natureza vazio de moral, o capitalismo tem revelado uma tremenda capacidade de se adaptar a quaisquer circunstâncias. Ocasionalmente perde batalhas, é certo, mas rapidamente transforma as fraquezas em vantagens para manter o controlo da guerra. Nesse processo, adapta vocabulários, muda de roupagens e de instrumentos, mas não muda de dinâmica, tentando potenciar a seu favor até as ideologias. E a ciência como potencial ideologia, capaz de justificar o mundo, projectar o futuro e controlar o processo, aí está de bandeja pronta a ser usada. Nisso tem tudo a seu favor: sabe de onde viemos, garante-nos o melhor dos mundos e assegura que sabe como chegar lá. Tudo com o selo de garantia do “método” e uma capacidade de difusão que deixaria fulos de raiva os Padres Missionários.

Sabendo-se isso, importaria perceber se, quando a ciência reivindica mais ciência nas escolas, na prática não estará a disponibilizar-se para, qual Cavalo de Tróia, funcionar como sistema de controlo e reprodução ideológica da versão “ novas oportunidades globais “ do capitalismo vigente.

Aparentemente, o deslumbramento de proeminentes actores científicos perante a magnitude das conquistas alcançadas, corre o risco de lançar a ciência numa deriva ideológica de crença de cariz totalitário, quando, ao contrário das ideologias, as ciências têm a obrigação de alimentar as incertezas e de explicar o mundo com a capacidade de o questionar, pois a quem vai andar por aí durante muitos anos interessa muito mais aprender a pescar do que receber em dote uma certa dose de bacalhau.

Poderá argumentar-se que o sentido da assimilação dos conhecimentos também depende da pedagogia que veicula a informação que os suporta. É verdade. Mas, como se sabe, ainda não se encontrou uma via que permita informar sobre a ciência com a laicidade equivalente à razoavelmente já disponível para a abordagem do religioso.

Quando o ensino da ciência, como o ensino do que quer que seja, acontecer antes do desenvolvimento de um espírito crítico bem estruturado, ele corre o risco de desaguar numa visão tão dogmática do Mundo como outro fundamentalismo qualquer.

É exactamente por isso e pelas atitudes predominantes no mundinho das ciências, profusamente contaminado por inequívocos tiques de arrogância, que concluo com sérias reservas sobre o desenrolar dos próximos capítulos.

Pessimista?

Não!

Mas, como dizia o tal meu velho amigo que não gostava de ver “meninos vestidos de parvos comandados por uns parvos vestidos de meninos ” um “ pessimista é apenas uma versão bem informada de um optimista”.

10 comentários:

Fernando Dias disse...

Um muito pessimista diz que quem teve a habilidade foi um seu avô há 2 milhões de anos quando perante um dilema pegou numa pedra e resolveu o problema.

Um pouco pessimista diz que quem teve rasgo foi um seu avô há 500 mil anos que fez fogo.

Um pouco optimista diz que quem teve talento foi um seu avô há 200 mil anos que resolveu falar.

Um muito optimista diz que quem foi de génio foi um seu avô há 6 mil anos que inventou a escrita.

E isto não acabaria aqui se ainda quiséssemos repescar os hiperqualquercoisa…

Anónimo disse...

Olá Manuel Rocha:

Confesso que a forma como acaba este seu ensaio me apanhou de surpresa. Nunca tinha pensado nos termos da perspectiva que desenvolve e, como professora que sou, e por isso muito tentada a contestá-lo nalguma coisa, a verdade é que não sinto que tenha muito por onde lhe pegar porque o senhor não deixa pontas soltas.

Texto preocupante, porque bem conseguido.

O comentário anterior do F Dias é que sinceramente não atingi. Se voltar por cá e quiser deixar algumas palavras em complemento, contaria com o meu agradecimento.

Matilde Costa

alf disse...

um comentário meu no seu anterior post liga-se a isto. Você tem toda a razão mas está-se a referir a uma coisa que não é exactamente a ciência.

Como eu disse, um grande probleam da ciêncai é que não é autónoma, o que a coloca ao serviço de quem lhe paga. Acontece que os governantes usam então a ciência para a prossecução das suas políticas, como dantes faziam os reis e imperadores com os sacerdotes e religiões.

Também disse que estamos inundados de "ciência tablóide". Esses sabichões, roçando a arrogância, que surgem nas TV ou a publicar livros cheios de certezas não são verdadeiros cientistas. É o negócio dos media que está interessado nisso e encontra terreno fertil nos mal-pagos cientistas.

Um cientista está preocupado com as duvidas, não tem certezas. Não são apenas pessoas que tiraram uma licenciatura em Física e dão aulas de ciências. O hábito não faz o monge...

Mas não se preocupe, isso vai tudo levar uma grande volta quando as minhas teorias sobre o Universo começarem a surgir e as actuais cairem no ridiculo.. embora isso ainda possa demorar algum tempo...(parece arrogância minha mas não é, o futuro o dirá)

Anónimo disse...

Tenho vindo a lé-lo com regularidade e agora manifesto-me.

O assunto que aborda está longe de ter sido esgotado, mas a solução que encontrou para o abordar neste formato parece-me francamente boa.

Deixo sómente uma nota retirada dos comentários.

Trabalhando eu na indústria farmacéutica, tive que rir quando o Alf escreveu que ciência e tecnologia eram áreas diferentes. Recordou-me certos políticos que em desempenho de cargos produzem declarações em que separam a sua opinião politica da sua posição pessoal.
Impraticável.
Na farmaceutica, a promiscuidade entre ciência, tecnologia e economia é total. Noutras indústrias, como a téxtil onde também já trabalhei, idem, idem.
Eu sei que quem aqui escreve não é ingénuo e sabe isso. Mas seria bom deixá-lo bem claro a quem lê.

Cumprimentos.

Gabriel

Mariano Feio disse...

Mesmo quando se sabe que a história não acaba aqui e que há muitas maneiras de a ler e de a perspectivar, como bem o explica o Dias, e como recorda o Rocha com a citação ao Corto Maltese, o certo é que os "ismos" também me assustam.
Tenho anos suficientes para ter conhecido alguns e é assim, de mansinho, que eles começam, com argumentos tão óbvios e tão consensuais que todos aderem.
Outra caracteristica dos ismos é que raramente deixam espaço para a opinião de quem discorda das suas verdades.
O ALf diz que muitos deles não são verdadeiros cientistas e eu concordo. Mas quando vejo pessoas ligadas á ciência manifestarem-se contra produtos da ciência como os genéticamente modificados, não me apercebo de que o façam antes de mais para dentro do seu próprio sistema de produção cientifica, mas contra quem o utiliza.
É preciso andar muito distraido ou ser muito ingénuo para não identificar esses sinais de ismos nos nossos dias.
Gostei muito destas postagens.

Mariano

São disse...

Só para lhe fazer saber do meu apreço.
Bom fim de semana.

alf disse...

Há aqui um problema de semântica: eu não chamo "ciência" aquilo que surge como tal nos media e no nosso dia-a-dia.

O que acontece é que a "ciência" foi usurpada, os verdadeiros cientistas estão encostados a um canto, proibidos de falar, ameaçados de que o seus contratos não serão renovados, os seus projectos de investigação não serão aprovados.

Ainda agora li uma noticia de que os gelos do Ártico vão desaparecer daqui a 30 anos, na melhor das hipóteses! Mais uma daquelas fantásticas extrapolações exponenciais de acontecimentos seleccionados. Um aluno de ciências que fizesse uma coisa dessas num exame seria imediatamente chumbado e insultado.

Mas, é claro, dizer o contrário não é notícia, isso é que é notícia.

Esta "ciência" tem de ser combatida.

Quanto À ciência na escola:

A vocação da escola parece ser, sempre foi, a de fazer "crentes". Não tem a ver com ciência. A escola proibe a crítica e o pensamento livre. Um professor que saia desta linha é imediatamente criticado pelos colegas, pelos alunos e pelos pais destes. Sim, porque se eles puseram os filhos na escola não foi para os professores andarem a criar ideias estranhas na cabecinha das crianças...

Que me diz, manuel rocha, do ensino da história, por exemplo? é menos dogmático que o das ciencias? Porque é que não se dá os rudimentos das várias religiões? Porque isso não interessa? NÃO! Porque isso levanta a ideia de que sobre o mesmo assunto pode haver diversidade de opinião!!! E essa é a mensagem que a escola de modo algum quer dar!!!

Na minha opinião, é na atitude da nossa escola que está o problema. e é dificil de mudar porque muitos professores não estão à altura disso.

alf disse...

Sobre a diferença entre ciência e tecnologia:

A ciência busca os porquês, a tecnologia busca a maneira de fazer determinada coisa. A Ciência visa compreender, a Tecnologia visa realizar.

A ciencia fica muito excitada por descobrir que a metalicidade de pico no disco exterior da nossa galáxia é um terço da do disco interior; ou descobrir como é que o centrossoma se organiza.

A tecnologia tem muitas vezes de fazer ciência para conseguir o seu objectivo; uma pessoa que trabalha numa actividade tecnológica tem muitas vezes de ser um verdadeiro cientista para descobrir um "porquê" que lhe permite depois conseguir uma determinada realização.

Ou seja, tanto um cientista como um engenheiro podem fazer ciência e tecnologia cada um: a pessoa pode ser a mesma mas a actividade não é.

Outra coisa é o uso de cientistas como se usam os juristas. A um jurista não se lhe pede que interprete a lei, pede-se-lhe que faça um parecer com determinado sentido, qualquer que seja o espírito da lei. Claro que toda a gente sabe que é assim e por isso ninguém esses pareceres têm a credibilidade que têm.

Ora acontece que se desatou a usar os cientistas como se faz aos juristas. Por exemplo, é famoso o caso do colesterol, onde a indústria farmaceutica encomendou uma série de estudos para provar que o colesterol causava ataques cardíacos. Para quem sabe da arte, é muito fácil "fabricar" estes resultados. Nos EUA ainda houve um grupo de cientistas que propos que os cientistas que fizeram esses estudos fossem processados.. foram silenciados...

A associação do tabaco ao cancro é outra dessas vigarices; mas é impossível denunciar isso, não é verdade?

E sabem o que acontece quando eu quero demonstra essas vigarices todas? as pessoas não querem saber! Querem continuar a acreditar!!

portanto, eu concluo que há pessoas que precisam dessas vigarices, que lhes digam o que devem ou não fazer, que lhes dêem a sensação de que estão a velar por elas. Isso dá-lhes tranquilidade, segurança. Há. portanto, um mercado para isso. Há um mercado para a ciência tabloide como o há para as telenovelas, para os documentários tabloides, para as noticias tabloides.

Não adiantará, por isso, combater o tabloide; o problema está do lado das pessoas que o consomem.

Cá para mim, depois muito pensar, cheguei à conclusão de que a medida mais positiva seria... ensinar as várias religiões na escola. No meu comentário anterior explico porquê.

Isto, é claro, não invalida nada do que o manuel rocha diz, que está tudo certo e muito bem dito; eu estou só a "abrir" sobre o tema, que me toca particularmente.

Fátima Lopes disse...

Só agora tive oportunidade de ler esta sequência, muito bem elaborada, muito oportuna e ai de si se o de RN a descobre :-)

A propósito do tema, acabei de comprar um livro, que oportunamente divulgarei no meu blog e que se chama precisamente "Sobreviver à Ciência" editado pelo Instituto Piaget. Ainda não li mas pela sinopse parece-me promissor.

Respondendo um pouco ao comentário do Alf, não há dúvida que há de facto pessoas que precisam do conforto do status-quo. Há uns tempos desabafava com um amigo sobre o facto de cada vez ter menos com quem partilhar ideias pois já não suporto conversas ocas e vazias de conteúdo. Dizia-lhe que preferia "estar na minha". Ele pareceu indignado e respondeu qq coisa do tipo "mas vais-te isolar? Esta é a sociedade que temos!" Como quem diz: - tens de te aguentar, ou o velho "se não podes vencê-los junta a eles".

Não, recuso-me. Antes só que mal acompanhada e felizmente até verifico que não estou assim tão só pois já são muitos por aqui a partilhar ideias semelhantes às minhas (pena que não sejam da minha geração mas esse é outro problema de que vocês não têm culpa)

Um grande abraço

Pink

Anónimo disse...

Aprendi muito