sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

A Palha do Deodato


Quando aqui há uns anos me ensinaram os rudimentos da Economia, falaram-me inevitavelmente dos seus grandes sectores: primário, secundário, terciário. Percebia-se rapidamente que nem a denominação nem a ordem propostas eram arbitrárias. De facto, antes de mais nada, uma sociedade precisa de se alimentar e por isso a agricultura e as pescas pontuavam no sector primário e eram tidas como o suporte da estrutura económica. A transformação dos produtos e a prestação de serviços são complementos importantes, sem dúvida, mas não nos alimentamos com sabonetes Dove e, embora eu ache que há quem não acredite, garanto que se sobrevive sem o telejornal diário.

Houve um tempo em que os países procuravam equilíbrios estruturais destes sectores nas suas economias. Um dos argumentos invocados era, senão a autonomia, pelo menos um grau aceitável dela, e nesta lógica o conceito de cobertura da balança alimentar tinha alguma relevância. Este conceito defendia que deveria ser criada e mantida uma certa capacidade de produção autónoma de bens alimentares de primeira necessidade. Mas depois veio a globalização e nunca mais ninguém pensou no caso.

Vou tentar explicar isto com um exemplo.

O meu vizinho Jeremias era um desses pequenos agricultores que com a ajuda do burro Deodato cobria a totalidade das suas balanças alimentares e contribuía para uma parte das nossas. Um dia, há já alguns anos, estava ele de passagem pela Água da Sola, a caminho das Caldas, quando se cruzou com o Nunes que fazia o caminho inverso. E pararam a trocar novidades. Estavam eles nisto quando estaca um autocarro. Abertas as portas, saiu de lá de dentro um bando de estrangeiros de máquinas fotográficas aperradas e quando o Jeremias deu por ele tinha mais de dez contos de gratificações na mão sem sequer se ter desmontado. De modo que no dia seguinte, mais ou menos pela mesma hora, fazendo de conta que não era nada com ele, arreou o Deodato e, casualmente, fizeram-se de novo ao caminho da Água da Sola, mas mal chegaram ao asfalto foram interceptados por novo autocarro. Chegados aqui poupo-lhes detalhes e concluo que em menos de um mês o Jeremias fez um up-grade do primário para o terciário e dez anos e dois Deodatos depois tem um próspero negócio de prestação de serviços turísticos que é um case-study com tabela e tudo: foto só ao Deodato – 2 euros; Jeremias e Deodato - 5 euros; Deodato com cônjuge ou parente do fotógrafo em cima - 10 euros…e por aí adiante.

Claro que esta migração trouxe consequências. Presentemente, o Deodato II só come palha espanhola e o Jeremias só não sabe de onde vem o que come porque não sabe ler os rótulos das embalagens, mas duas coisas garante ele: há doze anos que não cultiva uma batata e dinheiro para as comprar nunca mais faltou.

Por mim acabaria por aqui, mas escaldado com as indignações do António Sem Penas, obrigo-me a teclar mais qualquer coisa.

O Jeremias personifica o percurso da economia portuguesa e de muitas outras. Trocamos a quase totalidade da produção de bens de primeira necessidade pela prestação de serviços que pretendemos “de valor acrescentado” e com as gorjetas lá vamos comprando a palha espanhola e mandando vir do Canadá o trigo com que se faz o pão.

Enquanto Espanha (ou a China, tanto faz) continuar a produzir e a vender-nos palha por troca das gorjetas que os irlandeses cá vão deixando, a coisa até é “sustentável”, como se diz modernamente. O problema é se falha algo no processo, pois entretanto aprendemos tudo sobre a “nouvelle-cuisine” da batata e da etiqueta de a servir à mesa, mas esquecemo-nos de como é que elas se cultivam. E por arrastamento e falta de melhor uso, os terrenos onde isso se fazia foram vendidos, e onde não se construíram vivendas, há auto-estradas ou parques industriais ou de estacionamento.

Qualquer aprendiz de economista da modernidade nos dirá que nada disto é acessório, que se trata de uma importante dinâmica de comércio, tendo por premissa o interesse em potenciar as capacidades diferenciadas das várias economias, a gesta de novas sinergias, os ciclos de valor acrescentado, a requalificação da mão de obra, o desenvolvimento do terceiro mundo, sim, pois, claro, com certeza, los alimentos viajeros, pressupuesto, está bem visto, mas…será que não nos está a escapar alguma coisa essencial?

20 comentários:

Fernando Dias disse...

Gostei deste artigo. Apesar de me considerar pouco dotado para as problemáticas da economia acho que dá resposta certeira com o remate do artigo em estilo de pergunta.

Patrícia Grade disse...

Esquecemos o básico e desenvolvemos o acessório como se cultivássemos pérolas no jardim das traseiras.
Recordo-me de os meus pais ambicionarem uma casa no campo para cultivarem as hortaliças e criarem uma galinhita ou duas. Hoje queremos mais portáteis e telemoveis para estarmos sempre contactáveis... com quem?
As famílias desintegraram-se. Alguns partiram para outros continentes em busca de melhores condições e as tarifas são tão elevadas que nem arriscamos ligar os telefones. Temos um televisor em cada divisão da casa que é pequena e mal construída. Esquecemos a ligação à terra porque isso não é chique e comemos toda a porcaria que nos apresentam na televisão como se não bastasse já a fast food nas cadeias por todo o país.
Por todo o mundo se enaltece a cozinha mediterrânea, no que a nossa é uma das melhores e essa ideia é-nos vendida de volta por investigadores do outro lado do Atlântico como se nunca tivéssemos tido conhecimento dela. Continuamos a engolir hamburgueres como se não houvesse amanhã e até a carne é importada, porque cá já não há vacas.
Haverá esperança? Teremos de fazer nova revolução para que as pessoas acordem?
Dá trabalho a revolta e o povo dos brandos costumes amoleceu de tal forma que agora quem lhe não dá reality shows e batatas fritas já não é merecedor de nada.
Entretanto, para afastar as rugas, vamos suspirando por cirurgias estéticas e injecções de botox para o ego...
Mã que gêto, moss deb

antonio ganhão disse...

O essencial é o A4 parado à porta de casa, tudo o resto é acessório.

Cultivar hortaliças? Poupem-me por favor.

Manuel, você fez um esforço mas quebrou o ritmo a meio e como não sabia como sair da situação lá chamou o antónio como na canção popular!

Anónimo disse...

Olá!
Já cá tinha estado, mas ainda não tinha deixado comentário =P
Parabéns pelo bog =)
É verdade, so vemos o que nos põem na mão e depois já nem sabemos cultivar batatas, pois compramo-las com aquilo que nos põem na mão.
Depois, quando perecisamos de ser nós a cultivar batatastemos um problema, pois não sabemos como faze-lo...
Isto está tudo ao contrario =S

Virei visita-lo mais vezes =)

antonio ganhão disse...

Que mau feitio! Então não é que o link para o meu blog tem por lá uma virgula esquecida? Onde devia de estar um ponto?

A virgula atravessada é fatal, encrava-me o link... medo da concorrência?

Tiago R Cardoso disse...

Discutir economia é com o Sr. Sócrates que só vê paraísos, resolvi hoje tentar ver no mapa o país que ele descreveu mas não encontrei, sendo assim fico pela leitura do seu texto...

Manuel Rocha disse...

Acho que a pergunta que o Dias identificou está bem justificada na reflexão que nos deixou a Indomável.

Tiago:

A economia discute-se nas nossas opções diárias como consumidores. São elas que dão matéria de análise a quem as aprecia. Por mim vejo o país que nós os seus cidadãos temos construido, não os governos. Tal como o Tiago não gosto de muita coisa do que vejo. Mas não tenho ilusões de que há muito quem goste e queira mais do mesmo, reclamando apenas quando não lhe calha o quinhão a que se julga com direito, nomeadamente um bom emprego em lugar de trabalho.

O Tiago deixou no seu espaço um belissimo texto sobre as assimetrias regionais e a desertificação do interior. Esse é um tema central na economia. Mas reparou que quando deixei por lá a questão de saber quem estava disposto a voltar ao interior toda a gente fez de conta que não viu, certo ?

A economia faz-se sobretudo disto, das nossas opções.

quintarantino disse...

Meu caro Manuel Rocha, a economia faz-se efectivamente das pequenas opções que tomamos no dia-a-dia. Sendo que muitas dessas são condicionadas pelas nossas disponibilidades financeiras. Como penso deveria ser óbvio.

Pegando no "case study" do António, se não tenho dinheiro para um A4 à porta de casa porque hei-de ter um? Por causa do vizinho?
E, contudo, nunva vi tanto cavalheiro devidamente acondicionado em grandes máquimas quase todas elas importadas...

O mesmo noutros sectores.
Ele é "liftings", "restylings", silicone e quejandos...

Vive-se um pouco (ou até muito) no mundo da aparência e da ilusão da felicidade efémera, esquecendo-se que é na dureza da vida que se erguem projectos e nações.

Lamentavelmente, meu caro, tem razão quando diz que muitos reclamam quando o quinhão não lhes toca, mas permita também que lhe diga que também há muitos que trabalham e são injustiçados.

O meu caro amigo, homem certamente conhecedor de alguns meandros decisórios, haverá de convir que pelas nossas bandas quase sempre se toca a corda para o lado dos mais fracos.

Tiago R Cardoso disse...

Pois pego eu na pergunta que deixou, onde é que o Manuel viu essa cidade no interior com essas condições ?

Existindo essas condições, porque não vão para lá as populações ?

Acredito no caso trata-se em parte de "preconceito", se todos os dias somos bombardeados com noticias onde o interior é arrasado, andando perto de um deserto, o que seria de esperar ?

Manuel Rocha disse...

Quint:

O trabalho injustiçado é quase uma inevitabilidade. E duma forma ou outra toca toca a todos. E é evidente que é para o lado dos mais fracos que as coisas se complicam mais.

Até aí estamos completamente de acordo.

Mas a nossa mediania funciona noutro registo.

O post de ontem do Tiago sobre o encerramento dos SAP está correcto em tudo.

Mas aqueles mais fracos em concreto o que maioritariamente procuram num SAP são panaceias para as suas solidões, pois deixaram de ter lugar na vida dos descendentes que deram o fora e não têm tempo nem espaço para estorvos lá por casa e por isso vão à terra pelo Natal reclamar da falta de condições do lar e do encerramento do SAP com a mesmissima atitude com que culpam a ministra da educação pelo obesidade dos filhos pois, imagine-se, não lhes dá horas de ginástica suficiente !!!

O internamento dos avós em armazéns de terceira idade ou o seu abandono puro e simples, não é um decreto-lei !

E é esta desagregação facultativa da familia atrás de paradigmas A4 que remetem para responsabilidades individuais concretas. Mas claro que aceitarmos isso quando nos barbeamos de manhã é complicado e é muito mais fácil arranjar um bode expiatório.

Manuel Rocha disse...

Exemplos, Tiago ?

Três assim de repente : Monchique, Mértola e Odemira.

Nem sequer são cidades.

Monchique é sede de concelho, está a 20 km de Portimão, e nem o Presidente da Cãmara lá mora, tal como de resto a generalidade do funcionalismo que todos os dias faz de automóvel a ida e volta para Portimão. Tem tudo quanto faz falta, menos gente nova. E os velhos quando deixam de se poder governar são "arquivados" no lar do sitio onde aos domingos os familiares residentes em Portimão lhes vão dizer olá de passagem e no regresso do almoço num dos restaurantes da Fóia. Isto, claro, se não estiver de chuva.

Repare: há inúmeras questões que se prendem com a qualidade da nossa sociedade a que os governos são alheios. Não há governante nacional ou local que decrete que quando o contentor do lixo está cheio o saco que lá vamos colocar deve ser posto ao lado!Há anos e anos que andam por aí campanhas mil para a reciclagem mas se cada um de nós meter agora mesmo a mão na consciência sabe bem o caso que delas faz.Os meus vizinhos do lado só os vejo a seguir aos icêndios para vir reclamar que os bombeiros deviam ter apagado e que o governo devia ter enviado submarinos, mas entre os fogos nem rasto deles a limpar um panasco.

Ficariamos aqui horas a fio a destilar exemplos, porque a questão é esta: que Belenos me livre de fazer a apologia de qualquer governante , mas não me lixem, pois como cidadãos estamos a anos luz dos minimos exigiveis! E não é por falta de informação, mas por atitude!

quintarantino disse...

Assim começamos a chegar a algum lado... de facto, a atitude indigente da lusa população em matéria de cidadania dá no que ilustra... o problema, meu caro amigo, é que os que nos governam (pense local, regional ou nacional) saem da lusa população... é um ciclo vicioso ao qual pouco auguro de famoso ...

Fátima Lopes disse...

Olá Manuel,

Gostei do seu texto, com a qualidade a que já nos habituou. Mas escapou-me qualquer coisa, ou ninguém aqui falou de descentralização? Por mim, bora lá para o interior cultivar batatas e couves mas enquanto a moeda de troca continuar a chamar-se dinheiro não dá para pagar os estudos, os remédios, a roupa, o calçado e a prestação da casa com legumes né? O meu pai tem uma horta e cria gado para consumo próprio, praticamente não compra hortaliça ou carne mas até se reformar teve de vergar a mola numa fábrica de curtumes (paralelamente à horta, claro)São essas as nossas opções para regressar às raízes? As zonas mais acidentadas do interior não se prestam aos latifúndios para podermos viver exclusivamente da agricultura e por mais que os governantes não decretem atitudes, o facto é que a agricultura deixou de ser um investimento privilegiado na nossa economia mas as alternativas, na grande maioria das vilas e cidades do interior, são escassas para voltarmos para lá. Sinceramente não sei como se altera este estado de coisas mas certamente que não depende apenas da nossa vontade, ainda que muitos não se atrevam sequer a pensar em trocar o comando da televisão por uma enxada...

quintarantino disse...

Venho aqui propositadamente para te desejar um Próspero Ano Novo. Faço-o em meu nome pessoal, em sinal de reconhecimento.
E também em nome do NOTAS SOLTAS, IDEIAS TONTAS

Fátima Lopes disse...

Manuel,

Que tenha um excelente 2008, são os meus votos.

Pink

Tiago R Cardoso disse...

Voltei para lhe desejar um Feliz Ano de 2008, que seja o realizar de todos os seus desejos.

Tiago

Fernando Dias disse...

Manuel Rocha,
Desejo-lhe também um Bom e Feliz Ano 2008.

Rita disse...

O seu texto fez-me lembrar o caso da Argentina, que investiu tanto no cultivo de soja geneticamente modificada, convertendo os seus campos e florestas em campos de soja, que no espaço de poucos anos teve que passar a importar todos os outros bens essenciais a preços muito mais caros do que os tina quando os produzia no país. O problema não teria sido grande porque a venda da soja gerou um aumento gigantesco do PIB, mas estando o cultivo todo nas mãos de consórcios privados pode-se calcular que o aumento do PIB não foi proporcional ao aumento do poder de compra da população... e quem se lixou foi o povinho, como de costume. Anyway... desejo-lhe um bom ano novo, cheio de possibilidades, e que o céu não nos caia em cima da cabeça. Abraço****

Manuel Rocha disse...

Obrigado a quem me deseja boas bolinas.

Espero que os ventos Vos sejam favoráveis na continuação da jornada!

Pink :

Sendo óbvio que há medidas que podiam e deviam ser tomadas para fomentar o regresso ao interior, a verdade é que a disponibilidade também não existe. lembra-se da história da Presidente da Câmara de Vila de Rei que "importou" brasileiros com contrato de trabalho e casa por conta do orçamento ? Não havia voluntários nacionais e dos brasileiros também não sei se ainda lá estará algum !

Isto para dizer que se pode viver hoje no interior sem que necessáriamente tenhamos de estar ligados à agricultura. Cosntou-me ( não confirmei ) que a Gogle está sediada numa aldeola rural. Mas esteja ou não é óbvio que esse é o tipo de actividade para o qual a localização não é essencial. Tenho um vizinho suiço que gere carteiras de investidores bolsistas a partir de uma casa na serra algarvia.

Rita :

Precisamente !
E quando a "variedade" de soja se chama turismo, pior um pouco. Ao menos no caso da soja não se perde de todo a prática de produção alimentar, e a reconversão pode ser mais fácil. Se sugerissemos à nossa hotelaria a possibilidade de regresso às hortas havia de ser giro...

Anónimo disse...

"Se sugerissemos à nossa hotelaria a possibilidade de regresso às hortas havia de ser giro..."
Porquê?
Os hoteleiros não cultivam hortas porque chegaram à conclusão que naquele lugar era mais rentável plantar um hotel.
A reconversão é fácil. A informação - sob meios de produção - existe em todo o lado e muito do conhecimento existente numa dada actividade pode ser usado noutras.
E se não houver informação mas houver mercado, quem produz "batatas" virá para Portugal.
A especialização trás certamente vantagens económicas, caso contrário não existiria.