quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

"Climatgate" - Ciência ou Advocacia ?

Há quem se atarefe na defesa da pureza virginal da ciência. Mas convenhamos que se trata de uma ingenuidade. Como qualquer outra actividade humana, a ciência é uma instituição imperfeita. E quem está ao seu serviço constitui claramente um grupo de interesses. Na defesa desses interesses não é raro encontrar-se quem dispa a bata e vista a toga para subir a barra mediática e fazer a defesa das suas crenças ou das suas agendas. Nessas investidas usa como “cavalo de Tróia” a credibilidade que a ciência granjeou. Mas quando a usa corre o risco de a delapidar.

Para que o trânsito pela vida não derive para um exercício de suspeição sistemática e desconfiança permanente, há certas coisas em que precisamos de acreditar. Há quem lhe baste acreditar em Deus, mas há também quem prefira acreditar no que é da objectividade. Para estes a ciência é uma importante reserva de credibilidade. Contudo, a credibilidade da ciência não se constrói sobre o mesmo género de argumentação que suporta a crença. No entanto, por razões de vária ordem, é cada vez mais frequente que quem tem funções nas áreas cientificas apareça em público a fazer a defesa das suas teses como se da defesa de crenças se tratasse. Confrontados com esta critica respondem em primeiro lugar com a autoridade do seu estatuto e em segundo lugar com “evidências”e “factos”. Mas quais ?

As evidências não são todas iguais, evidências de correlação não podem ser lidas como evidências de causalidade, por exemplo. E os factos são interpretações. Ora enquanto à ciência deve importar o que remete para o rigor do que é verificável e repetível, a quem advoga basta o rigor formal que suporte determinada retórica. Aos não especialistas tolera-se alguma ambiguidade na abordagem destas distinções. Tolera-se mesmo que dêem alguma latitude aos conteúdos científicos na defesa de opiniões. Qualquer advogado faz isso. Coisa menos inócua é que biólogos, ecologistas, meteorologistas, ou de outra especialidade qualquer, assumam postura idêntica. Quer dizer, que sejam opinativos quando o que se requer é que sejam objectivos. A questão é que há quem precise de confiar na solidez do que lhe compete divulgar sem que tenha ( nem tem que ter ) condições para o confirmar, como é o caso de quem ensina.

Ora há áreas em que a promiscuidade do trânsito que se estabelece na fronteira entre ciência e advocacia se tem revelado como um dos aspectos que inquina o estudo, a percepção e a divulgação de temas que marcam o nosso quotidiano. Este estado de coisas é particularmente sensível nas escolas, particularmente nas temáticas ligadas ao ambiente. Já por si a ecologia ( como a metereologia ), enquanto áreas de estudo cientifico, apresentam dificuldades muito próprias. Perceber o funcionamento de sistemas dinâmicos não é exactamente a mesma coisa que estudar a anatomia de uma rã anestesiada numa bancada de laboratório. O ambiente é um processo permanente de interacções complexas, onde é raro que a mesma coisa se repita durante muito tempo. Esta permanência na mudança é evidentemente um problema quando se trata de objectivar. Não é fácil confirmar uma proposição feita sobre algo que não pára “quieto”, não se repete nem é repetível artificialmente. O que não é aceitável é que se pretenda ultrapassar estas dificuldades metodológicas cunhando de definitivo e sólido o que é fluido e provisório, de cientifico o que é especulativo.

A compreensão total do funcionamento dos sistemas naturais poderá estar para lá da nossa capacidade de os entender. Apoiados nessa premissa seria prudente reforçar a humildade e perceber que o que se vai adquirindo são visões parciais de parcelas delimitadas num tempo curto, para que não se caia em erros grosseiros, como acontece quando se tenta projectar o futuro com base no passado como se a mudança não fizesse parte da equação. Algo semelhante acontece quando se procura proteger uma espécie e se esquece o habitat, quando nos preocupamos com o individuo e esquecemos a população, quando escolhemos o bonito e negligenciamos o feio.

Há quem defenda que este género de derivas possa ser devedora do facto de as actividades ligadas à ciência se terem expandido para fora das suas fronteiras habituais, tradicionalmente confinadas a departamentos estatais ou instituições com fortes ligações ao mundo académico. Na actualidade, associações, ONG’s, empresas, fundações, contratam especialistas e fazem ou aplicam ciência. Contudo, nesta moldura, nem só as linhas de investigação não se tornaram aleatórias como a apresentação de resultados deixou de ser uma consequência natural da actividade desenvolvida, passando a ser um elemento de pressão sobre os próprios resultados, pois da sua avaliação pode depender a sobrevivência do projecto. E daí ? Melhorou a independência da ciência ? Alterou-se a sede de protagonismo dos seus agentes ? Piorou a objectividade ?

Pretender dar resposta a este tipo de questões é um exercício que acaba sempre por desaguar numa contabilidade inconclusiva. Quem quer que seja consegue angariar argumentos para qualquer das teses que defenda. É evidente que com a “secularização” da ciência a sociedade civil ganhou clara relevância na governança, e a possibilidade de fazer ciência independente existe. Mas a actividade cientifica é cara, e não sejamos ingénuos ao ponto de pretender que mesmo o mais insuspeito mecenato é imune aos interesses ou aos jogos de poder que inevitavelmente se organizam em redor dos processos de aquisição e gestão do conhecimento.Na verdade, o american way de “fazer ciência” difundiu-se. Quer dizer, generalizou-se a necessidade de qualquer projecto de investigação, conservação, preservação, procurar e criar as suas próprias condições de subsistência. Ora estes processos criam dinâmicas de dependência muito próprias e não são raras as vezes em que se dá uma inversão da lógica que os inicia, quando a finalidade da iniciativa passa a ser a manutenção duma estrutura ou o modo de vida dos respectivos actores.

Qualquer empresa privada ligada ao ambiente exemplifica esta situação. Ela tem de facturar para sobreviver, e por isso é natural que possa sentir dificuldades em compatibilizar a sua subsistência com a objectividade e o rigor nas matérias sobre as quais exerce a sua actividade. Qualquer área protegida ou qualquer ONG dedicada à conservação vivem esse mesmo tipo de constrangimentos. Uma vez instaladas elas criam rotinas e habituações, e é inevitável que sintam dificuldades em separar os interesses pessoais que se constituem da objectividade da respectiva esfera de acção.As ONG’s em particular, não se podem dar ao luxo de ter ao seu serviço maus defensores das causas que as movem. O problema é quando o estatuto de credibilidade que lhes é concedido pela dedicação, pelo empenho ou pela combatividade que revelam, se confunde com a validade dos critérios científicos em que se apoiam, pois em ciência a credibilidade não é uma questão de convicção, de empenho, de oratória, ou sequer de valores.

Sabe-se que a objectividade tem naturais dificuldades em se despir dos valores de quem a procura. Contudo, a confiança que se deposita na ciência deriva da expectativa de rigor e imparcialidade que dela se tem, e importa preservar essa reserva. Por isso ao cientista tudo o que se pede é que produza conhecimento de forma tão objectiva quanto possível, e que o divulgue de forma acessível, de modo a que o processo social e politico possa gerir os conflitos no sentido do interesse público quando se trata de tomar decisões. Nada mais que isso. Ainda que esteja coberta de razão e de boas intenções, não compete à ciência nem aos seus agentes definir o que é do interesse público nem colmatar com manipulações a informação para forçar os processos de decisão no sentido do que lhe parece certo. Quando a ciência toma o partido da crença e a defende, mesmo pelo lado do bem, manipula uma faca de dois gumes, pois se a crença se revela errada é a credibilidade de toda a instituição que se malbarata.