segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Ciência em Contra Ponto - IV


O Princípio da Insustentabilidade

Nos tempos que correm um discurso que se queira minimamente actual e politicamente correcto deve incluir sempre duas palavras: desenvolvimento e sustentabilidade. Contextualizadas ou não, elas devem estar lá.

É claro que falar de um desenvolvimento sustentável poderia ser visto como coisa redundante. Acontece que há já décadas que a sustentabilidade foi conceptualizada pela ecologia humana como estratégia indispensável na gestão da energia nas nossas interacções com o meio, e se eu já soubesse “linkar”, teria aqui uma oportunidade de ouro para o fazer a Odum (exacto, a Odum e não à Senhora Brundtqualquercoisa…) mas como não sei, adiante, antes que perca o ponto.

Se ali em cima escrevi “poderia” é porque a ênfase na “sustentabilidade” pode ser apenas uma forma de distrair as atenções de um enunciado incompleto.

Conceptualizar o desenvolvimento apenas como sustentável é como tentar demonstrar o teorema de Pitágoras sem os catetos do triângulo. No caso esses catetos dão pelo nome de ética e equidade social e também desde há décadas que incorporam o conceito, e aqui deveria ficar mais um link para o IRFED.

Esta volta toda foi para suportar um argumento difícil e que é o seguinte: a actividade científica não deveria ser alheia ao facto de que se tem alicerçado em dinâmicas que não só não contemplam preocupações elementares de gestão de energia, como a utilizam sem quaisquer pruridos pela total falta de respeito pelos direitos dos que a têm disponibilizado.

Os grandes avanços que a ciência tem registado nas últimas décadas não se podem dissociar da dinâmica intrínseca à civilização do petróleo. Claro que aqui o petróleo é também metáfora para dizer a dinâmica mais vasta do uso avassalador de recursos não renováveis. É verdade que não tem sido aos cientistas que tem competido a negociação dos preços a que se tem transaccionado o petróleo. Limitam-se a usar a energia e demais recursos que o sistema que integram compra baratos para com eles produzir investigação que de outro modo seria incomportável. Lá está, Openheimer limitou-se a conceber a bomba. Mas o caso aqui é ainda mais bicudo, porque tem sido sentada sobre o petróleo alheio que a ciência tem contribuído para impor a hegemonia do Ocidente.

Foi o petróleo que permitiu a agricultura industrial e a abundância indispensável para fazer ciência e criar a dinâmica daquilo a que os ilustres economistas chamam “potenciar os ciclos de valor acrescentado” e que é exactamente a mesma coisa a que qualquer colonialista chamaria simplesmente “explorar o preto”. O sistema era e é simples: o preço do trabalho na machamba nunca chega para saldar a conta de géneros que a cantina da machamba fornece em exclusivo. Quando a coisa se torna incomportável opera-se um “perdão da divida”, eventualmente a troco de uma hipoteca interessante, como por exemplo um direito de exploração vitalício de petróleo em off-shore. E a título de cereja no topo do bolo, oferece-se ainda uma magnânima bolsa de estudos científicos no Ocidente aos melhores cérebros locais que, claro, só serão devolvidos à proveniência se se revelarem improdutivos.

Como se sabe, estes processos apelidados de cooperação e desenvolvimento teriam muito maior valor semântico se adjectivados apenas pelo que são: enriquecimento próprio a troco do empobrecimento alheio, embora também haja quem lhe chame “empreendedorismo global”. O que não é politicamente correcto é dizer-se que a ciência é, tem sido, peça indispensável desta engrenagem, e por isso inestimável instrumento de estratificação social e geopolítica e determinante na gestão do status-quo da insustentabilidade vigente.

5 comentários:

antonio ganhão disse...

Noto aqui um discurso de retornado Moçambicano. Mais tarde voltarei ao texto.

Olha, as letras continuam a irritar-me.

antonio ganhão disse...

Olha, manda-me um email para o sem.penas@gmail.com que eu dou-te umas lições sobre como blogar.

Em particular como tirar estas letras que me irritam.

Mariano Feio disse...

Ora, ora...

Parece que o meu incentivo teve resultados.

Tenho que lhe confessar uma coisa, Manuel Rocha, e que é a seguinte.

Quando leio os seus posts, aqui e ali apetece-me meter colherada. Só que vistos em perspectiva são como muralhas.

Neste, por exemplo, apercebo-me do que pode ser uma pequena brecha nos conceitos e vou arriscar uma timida investida.

Acha mesmo que não se deveria dar ênfase à noção de que o modelo de desenvolvimento que se vinha seguindo teria de ser invertido no sentido da sustentabilidade ?

Quanto ao resto, estou rendido.

Manuel Rocha disse...

António:

Vejo que és susceptível ( às letras ..)
Definitivamente, agradas-me pequeno !!!

Ocatarinetabellatchitchix

Mariano:

Já cá volto que essa é das difíceis...

Manuel Rocha disse...

Então é assim, Mariano.

Quando comecei a ouvir falar destas coisas do "desenvolvimento" foi em meados dos anos 70. E as primeiras dicas que apareceram sobre o assunto vinham na sequência dos trabalhos daquele grupo que ficou conhecido por "clube de Roma" ( Meadows e outros...). Ora esses tipos apareceram desde logo com um discurso de ruptura. E o conceito de desenvolvimento era a peça central desse discurso, porque aparecia em oposição à noção de progresso apoiada no crescimento económico contínuo, como até então ( e até hoje ) era concebido.

O conceito estruturou-se em redor de três ideias eixo: perenidade nas interacções com o meio ( o conceito vem de Odum e sustentabilidade é dele mero sinónimo ), equidade social e ética ( estes dois derivam dos trabalhos do IRFED ).

É claro que o discurso corrente apropriou-se logo da palavra, tal como também já se apropriou do " sustentável".

O Mia Couto disse há tempos que "não é mudando as palavras que se muda a realidade", mas não é bem assim, pois muitas vezes de tanto as deturparmos construimos uma realidade paralela. Tenho a sensação que foi o que aconteceu no caso do "desenvolvimento" e já está também a acontecer com o que é "sustentável"...

É claro que a Revolução Francesa também foi promovida com base em três ideias mestras ( liberté, egalité, fraternité ) e depois ficou-se pela primeira e mesmo essa, enfim...

Há quem diga que existe por aí uma "máquina" que se alimenta de utopias, tritura-as, digere-as, regurgita-as; mudam os cenários e as moscas, mas o essencial esse é sempre o mesmo, certo ?