terça-feira, 27 de maio de 2008

Sai um magro para a mesa onze!

Cada vez que encaro com uma televisão, apanho um susto !

O último foi quando um senhor vestido de engenheiro agrónomo em dia de saída de campo, garantia no pequeno ecrã, posando num cenário de Hollywood, que uma vaca de uma marca qualquer dava um leite magro natural.

Corri para casa a limpar o pó aos desusados manuais de vacas leiteiras para recapitular essa capacidade que em devido tempo me teria passado completamente ao lado. Mas como os ditos já têm uns bons anos fiquei sem a dúvida esclarecida ! Seria uma vaca moderna, modelo OGM ? E neste caso seria uma vaca especializada em leite magro ou um protótipo ainda mais avançado, capaz de dar leite magro numa teta, leite com chocolate na outra, da terceira iogurte líquido e da última leite com sumos e enriquecido a vitaminas ?

A vaca do cenário da televisão até pastava, imagine-se ! Supus por isso que nesse aspecto fosse um up-grade das vacas leiteiras que eu julgava conhecer, para quem a necessidade incontornável que têm de um bocadinho de erva e ginástica era a maior dor de cabeça dos respectivos nutricionistas e proprietários.

Explico!

As vacas foram feitas com uma característica que a fileira de lacticínios da modernidade bem dispensava: são ruminantes. Para que aquela imensa parte de estômago da vaca a que se chama rúmen funcione, precisa de fibras longas, ou seja, qualquer pedaço de erva verde ou seca com mais de dois centímetros de comprimento. E não são apenas meia dúzia de troços mas uma quantidade relativamente significativa a que alguém se lembrou de designar pelo palavrão de “coeficiente de balastro” e que se refere exactamente à quantidade mínima de fibra que é necessária na ração. O balastro faz-se com palha, por exemplo. Palha que é preciso transportar, armazenar, enfim, uma trabalheira, porque afinal a palha não tem valor nutritivo bastante para fazer leite que se veja. Isso é trabalho para os "concentrados", isto é, misturas de cereais, oleaginosas, sub-produtos vegetais vários e outros como as farinhas de sangue, carne e peixe, antibióticos e gorduras by-pass, mistelas que uma vaca que preze a sua produtividade não prescinde e dos quais consome no mínimo uns seis quilitos diários. Mas além disto, as vacas precisam ainda de um mínimo de ginástica para não entrevarem precocemente. Outra chatice, sobretudo para quem as instala em autênticos prédios de andares como já vi em São Paulo e em fotos obtidas no Japão.

Ora como é evidente, de natural estas dinâmicas têm tanto como o tem a estupidez que nos leva a trocar por leite alimentos que também utilizamos sem qualquer ganho alimentar no processo! Mas o caso é que com todo o poder de comunicação que tem que lhe ser reconhecido, a publicidade tem vindo a produzir uma interminável e fluorescente repintura verde de toda a fileira alimentar. E com sólidos resultados na opinião pública informada, cuja boa formação teórica nem sempre consegue ultrapassar os “truques “ tecnológicos subjacentes à alimentação natural que procura e que paga principescamente.

O caso do leite “naturalmente” magro é um desses magníficos truques.

A fileira dos lacticínios é, nos dias que correm, uma actividade industrial da nascente à foz, com uma utilidade relativa mais que discutível. O mito da imprescindibilidade do leite da vaca na roda dos alimentos é algo que devia estar sob a alçada criminal. Fala-se do cálcio no leite como se nós não o conseguíssemos ir buscar às couves, tal como a vaca o vai buscar às ervas. Fala-se na proteína como se a que serve para a vaca dar leite não nos servisse com considerável economia. E como se tudo não bastasse, quer-se fazer passar a ideia de que a vaca…produz leite à la carte:
- Sai um magro para a mesa onze!

Mas não sai! Ainda não há vacas dessas, só das outras. E estas são peças de uma cadeia de montagem que se alimenta de petróleo para nos dar a ilusão de que nos alimentamos de leite. Desde a sementeira do milho para silagem até à desnatagem, a produção de leite é tão natural que até o sexo com touros é proibido às vacas. À vaca leiteira só é permitido uma espécie de sexo com um homem: o inseminador. E mesmo isso porque sem partos elas não dão leite, pelo que, mesmo que os vitelos nunca lhes chupem uma única teta, têm que os parir. E esta deve ser das poucas partes biológicas da produção leiteira moderna. Porque o que se segue na cadeia de transformação de "bio" tem apenas o facto de a pasteurização ou a ultra-pasteurização matarem a maior parte da flora microbiana presente naturalmente no leite.

A Fisga

Neste espaço tenho tentado partilhar, com quem tem tido a paciência de me ler, a minha intuição de que muitos dos ciclos viciosos que afectam os nossos quotidianos, têm mais a ver com as limitações que são inerentes à nossa percepção do que nos rodeia e às respostas ideológicas com que o explicamos, que com outra questão qualquer. Mas há inequivocamente quem o consiga muito melhor do que eu, pelo que só posso recomendar muito vivamente a sua leitura atenta.

sábado, 24 de maio de 2008

O Paradoxo Tecnológico


… como travar/abrandar o vórtice tecnológico, sem ser por demérito? Ou
seja, sem obstruir a razão infinita do Homem? Porque a "vida campesina" é uma falácia - a cidade é um fenómeno da natureza, porquanto nós somos da natureza.…Mas essa compreensão é fulcral: a tecnologia ameaçando a natureza, ameaça o nosso modo de ser originário, destitui-nos de memória e de sentido.”

Pertinentes questões da multicolor e esvoaçante Papillon que me remetem para algumas considerações sobre o que julgo um preconceito ( tramado ) no pensamento da modernidade.

Arriscava dizer que ele se apoia no seguinte tripé:
1. O entendimento do processo tecnológico como deriva unidireccional, ou seja, o progresso só poderia ter decorrido na direcção que tomou.
2. A "vida campesina" como paradigma de regressão, isto é, usada como símbolo de romantismo saloio, a ruralidade é pensada como antónima de progresso.
3. A cidade como complexo necessariamente metropolitano e, aí sim, símbolo de progresso.

Ou seja e em síntese, o progresso concebe-se enquadrado numa moldura da razão que o apresenta em grossas pinceladas de determinismo técnico e científico, sobre uma base de negação da ruralidade e tendo na metrópole elemento central da composição.

Para já tentarei desmontar o primeiro quadro deste tríptico – o tecnológico.

Deve haver por aí óptimas definições para tecnologia. Vou usar apenas a noção que dela tenho: complemento da inteligência na interacção com o meio, instrumentalização da conflitualidade que é inerente a essa interacção. Não me refiro à instrumentalização apenas no sentido mecânico, pois deixo espaço para as ferramentas de raciocínio como a matemática, capazes de abrir espaço a leituras do mundo como a lógica. Mas qualquer destes instrumentos tem um objectivo comum declarado: facilitar, i.é, descolar de condicionalismos de labuta sistemática para resolver as questões elementares, tornar mais efectivo o trabalho, ganhar tempo. Desde a roda ao micro-ondas, é isso que a tecnologia nos proporciona: respostas a necessidades.

Mas é aqui que a coisa patina. Nas necessidades. Porque estas não podem ser tidas como alheias à condição cultural. As necessidades básicas, ou seja, as do comer, abrigar e reproduzir, quase instintivas, não são do mesmo tipo das restantes, as culturais, que, embora elaboradas a partir das primeiras, sofisticaram-se a um ponto que se autonomizaram.

Vamos a ver se não me deixo colher nesta faena.

Da mesma forma que a necessidade de nos alimentarmos não é independente do que concebemos por comida, entre a necessidade de nos deslocarmos e a de o fazer de carro, também existe uma diferença que vai além da sofisticação da resposta. É que hoje dificilmente se dissocia mobilidade de automóvel. Pensa-se "carro" como se pensa "pão", produto final de um processo de reposta a uma necessidade antiga. E chega-se ao ponto de interiorizar culturalmente que a sofisticação da necessidade de nos deslocarmos só poderia ter tido no carro a única solução possível. Por isso olhamos para o processo tecnológica que lhe deu origem como algo de inevitável ou de predestinado, com uma trajectória própria e incontornável, como se tivesse sido escrito nas estrelas que um dia o motor de combustão interna iria encontrar-se com a roda e…

Ora é exactamente esta acepção inevitável de progresso (tecnológico) que gostaria de questionar.

Desde logo porque se auto-valoriza, isto é, não se limita a considerar-se como processo para logo acrescentar que é um processo especifico, um processo para o bem, e por isso um progresso. Mas este acto de racionalização do que pertence ao bem ou ao mal, não é independente do agente que o promove e das suas crenças: a comunidade e a sua cultura. Nessa medida há nos processos ditos de progresso uma carga ideológica inevitável. Além disso, a problematização da necessidade não se constrói fora do que é possível, ou seja, ela não pode ser tida por absoluta. A necessidade de nos alimentarmos não quer dizer “pão”. Mas é a existência da entidade “pão”, que abre caminho à necessidade de uma sandes. Da mesma forma é a possibilidade de viajar de ida e volta de Lisboa ao Algarve no mesmo dia, que torna esse evento equacionável. A partir daí a necessidade de o fazer auto-reproduz-se mediante a frequência do uso, a tal ponto que a eventualidade de ir de véspera e usar o transporte público passa a ser marginal quando entram na equação outras necessidades entretanto induzidas, como a facilidade de movimentos e o conforto que o automóvel proporciona. Estas, são ambas valorizadas como bens mas, tal como a primeira, também elas súbditas dos mesmos pressupostos de racionalização que estão na sua origem. Ou seja, quando as necessidades se transformam em valores elas tendem a auto-justificar-se na finalidade a que respeitam e adquirem uma espécie de imunidade ao raciocínio critico.

Nessa medida o carro como conceito é um bom exemplo. Não apenas de um concentrado tecnológico que incorpora necessidades induzidas alheias a critérios éticos. Mas também de estereótipo da inversão dos valores que deveriam estar por detrás dos processos tecnológicos, pois a partir do momento em que a vida se pensa, projecta e vive em função do carro, instala-se um paradoxo tecnológico: afinal, quem é instrumento de quem ? Ou a tecnologia não é apenas meio mas finalidade em si mesma e por isso o sentido da vida pode resumir-se no carro ?

Ora a nossa interacção com o ambiente está inquinada deste tipo de raciocínios circulares. A tecnocracia instalada na governação e a educação tecnocrática encarregam-se de nos incutir como necessário um pacote tecnológico cuja eventual contestação raia a heresia. Essa leitura determinista da história que nos leva a olhar para os processos tecnológicos conhecidos como se eles fossem desde sempre a única via possível, constitui um sério obstáculo ao desenvolvimento. É que instala um preconceito dicotómico que bloqueia a discussão entre ser-se a favor ou contra o progresso - este progresso - como se não existisse outro progresso possível, e é nessa medida que nos destitui “de memória e de sentido”.

domingo, 18 de maio de 2008

Coeficiente de Caganço

Qualquer discurso de concorrente a Misse de qualquer coisa, tem nos votos de paz, liberdade, direitos das crianças, fim da pobreza e da fome, os seus lugares comuns de eleição. Magníficas utopias que, de resto, na sua mediania habitual, os discursos da política institucional raramente ultrapassam na sua retórica pelo mesmo tipo de banalidades com que as Misses enredam o pensamento em círculos intermináveis. Mas não respondem à questão subjacente, cuja pertinência até preocupa ilustres ET’s: “… quanta vida suporta a Terra e em que condições?Por agora, estamos a suportar a população com os combustíveis fósseis; estes não são infinitos e podemos deparar-nos de repente com várias vezes a população que a energia que recebemos do Sol pode sustentar.”

A dúvida não é nova. Há séculos que hordas de futuristas, nem sempre malthusianos, se dedicam a periódicos assaltos aos mistérios do futuro. Hoje, à cabeça desses novos exércitos, temos a mui respeitável e multicultural ONU . Diferentes épocas, novos sponsors e equipamento topo de gama, mas a estratégia de sempre para abordar o tema. Basicamente, continuamos a partir de um paradigma, inventariam-se os recursos , atribui-se uma ponderação à tecnologia disponível, estimam-se produtividades, inventa-se um coeficiente de caganço e, consoante os interesses do patrocinador ou a tese pré - formatada do autor, assim o resultado final. Nestes, encontram-se números para todos os gostos. E para afirmar isto não é preciso que se subentenda que estou a pôr em causa a seriedade de quem o faz. Não é isso. O que se passa é que a realidade global não se rege pelas mesmas premissas das suas variantes locais.


Esta discrepância entre realidades tem a ver (1) com a multiplicidade e variabilidade dos factores que interferem na dinâmica das populações e na geração de recursos que utilizam, (2) com as metodologias e os instrumentos de análise disponíveis para a sua representação, e (3) com os pressupostos de gestão subjacentes.

Vejamos se consigo explicar porquê.

Há várias razões para que seja incontrolável ( no sentido em que escapa à compreensão exacta ) a dinâmica das populações em interacção ecológica à escala global. Mas aquela que a meu ver é a mais importante tem a ver com o comportamento característico dos grandes números que estão envolvidos. É que, na grande escala, a necessidade de traduzir a realidade por indicadores para a compreender, reduz a variáveis aleatórias a essência do que se pretende representar. Aleatórias porque as medidas de tendência central, sejam médias, medianas ou normas, reduzem necessariamente os limites ( distribuição ) do universo em estudo a uma identidade fictícia que tem um valor indicativo mas não é medida de governabilidade de grande escala. Um desvio de 1% de qualquer coisa cujo universo é da ordem da potência de milhão significa milhares de mortos de fome ou mega toneladas de alimentos deitadas ao mar. Ou seja, embora quatro seja o dobro de dois, o dobro de duzentos milhões não “é só” quatrocentos milhões. Quer isto dizer que a facilidade com que o gnocchi al tuno previsto para o jantar a dois desenrasca também o jantar do casal de amigos que inesperadamente apareceu de visita, não tem nada a ver com as implicações logísticas duma eventual redistribuição por quatrocentos milhões do que aparenta ser bastante para duzentos milhões. As regras da proporcionalidade vacilam e os métodos de representação estatística claudicam perante a natureza não linear do real complexo em grande escala. E os valores preditivos que se procuram, mesmo quando se apoiam em dados aparentemente fiáveis, não resistem a um auditoria que inclua uma estimativa da incerteza a eles associada.

A este comportamento atípico da realidade associam-se as razões de composição do universo em estudo. O Mundo não é uma entidade uniforme onde os condicionalismos de localização possam ser descartados por irrelevantes, pois um todo em interacção dinâmica nunca é igual ao mero somatório das suas partes que não são estáticas. Apesar das derivas em sentido contrário, continuamos subordinados à preponderância da casualidade (geográfica, por exemplo) em relação à técnica. Por isso a gestão do Mundo não pode ser vista como a gestão de uma grande empresa. Mas há ainda outra razão para isso. É que o Mundo não é uma comunidade de interesses. A territorialidade e a conflitualidade a ela associada são variáveis determinantes deste jogo da Vida . Em face delas, os concretos sociais contratualizados são válidos mas apenas enquanto não se confrontam em condições extremas. Nessas, todas as regras se alteram e ignorar isso é negar a memória da História.

Da impossibilidade de construir um polinómio credível para solucionar a questão “quantos cabem”, decorre a minha convicção de que ela não tem resposta útil em contexto de ecologia humana, pelo que qualquer exercício que se faça nesse sentido redundará sempre num produto de academismo redutor, ultrapassado a cada instante por um devir que não se controla.
Mas estas derivas peregrinas pela tentativa de tentar controlar o incontrolável encerram em si perigos complexos. Um deles é o de remeter para uma burocracia global ( mercado do carbono, p.e.) que, ao tentar estabelecer-se, instala um tipo de racionalização necessariamente simplificadora. Como simplificar o real implica reduzir-lhe a variabilidade, logo a diversidade, essa deriva também nos torna mais susceptíveis à imprevisibilidade do futuro, pois a diversidade é recurso em si mesma, como bem viu o alien dos oito estômagos quando nos fez saber entre visitas ao frigorifico da casa onde se acolhe que “ a nossa sobrevivência está de novo dependente de coisas que não controlamos. Quando a produção de alimentos era diversificada, um azar num lado podia ser compensado por outro. Mas com a centralização e a produção em grande escala, a escala dos "azares" passou a ser outra porque perdeu-se diversidade - diversidade de espécies cultivadas, diversidade de locais de cultivo…”


Portanto, mais que na dificuldade ou na diversidade de respostas possíveis, o problema de “quantos cabem “ está nos pressupostos da pergunta. Isto porque perante a complexidade da organização do algoritmo da resposta, ela seria sempre o resultado de todas as simplificações inevitáveis, indutoras de ilacções à-la-Palisse do tipo das que nos fornecem alguns neo-malthusianos como os nobilitados Gore & IPPCC: o clima não é constante! Pois! Brilhante novidade !!! O mesmo se passa com a capacidade de carga, que também não é constante, variando desde logo ( e muito ) com o clima, por exemplo.


Então a pergunta não faz sentido? Faz, mas não à escala global. É nas sinergias de proximidade de matriz regional de pequena e média escala que temos de procurar as faixas de tolerância dos ecossistemas em que a vida se pode reproduzir com alguma continuidade. É nessa escala que a variância das estimativas de incerteza se torna aceitável e é ainda ela que torna exequíveis princípios de precaução elementares. Um deles e de grande importância é a autonomia energética e tudo o que ela implica. Não, não é de gasolina para ir ao cinema e à praia que falo, mas de calorias, i.é, energia metabólica, quero dizer, comida, ou seja, aquilo sem o que não funcionamos e ponto final.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

"Apenas" dois por cento !


Sexta Feira, 15 Maio, 23 horas. Havia um televisor ligado e a palavra “biocombustiveis” chama-me a atenção. Em redor de uma mesa de um estúdio da RTP 2, três engravatados discutiam a “economia” da questão na perspectiva da concorrência com a produção de alimentos.

Vi tudo para poder contar. Dava matéria para várias teses e inúmeros posts, mas fico por um breve comentário a uma afirmação que foi feita com o intuito confessado de “desmistificar” essa "ideia de competição entre produção de cereais ( dieta de base alimentar ) e os biocombustiveis", que é o que cabe neste compasso de espera em que me encontro. Disse-se : " … apenas dois por cento das terras aráveis têm esse tipo ( biocombustiveis )de ocupação”.

Que sugestões para uma leitura critica desta informação?

Procuremo-las.

O que são “terras aráveis “ ? A totalidade das áreas vocacionadas para produtos agrícolas, incluindo nelas pomares, vinhas, culturas não alimentares permanentes ? Como no meio de vinhas não se semeia trigo, e para que tivéssemos uma ideia mais precisa daquilo que estamos a discutir, talvez não fosse má ideia ter dito qual a percentagem de terras com vocação para a produção de cereais que tem sido hipotecada aos biocombustiveis, em lugar de usar como termo de comparação a totalidade de terras com qualquer tipo de vocação agrícola.

E para que a a leitura fosse ainda mais correcta, não seria despropositado pedir que o arroz não entrasse nestes cálculos, uma vez que por razões de tolerância climática e ao encharcamento, o arroz não se pode considerar concorrente arvense ( genérico deste tipo de cultivos anuais em extensão ) do trigo ou do milho.

Feitos estes acertos continuaríamos a falar de dois por cento ? Talvez não. Mas suponhamos que sim, para não complicar a vida ao jornalista de serviço que até dá uns toques na bola económica mas que revelou fraco jogo de cabeça.

Explico-me com um exemplo do nosso Alentejo e um número redondo para a respectiva Superfície Agrícola Útil (SAU) com alguma capacidade arvense: 1 milhão de hectares. Dois por cento disto seriam apenas 20.000 ha, certo ? Mas 20.000 ha, onde ? Nos solos delgados do Campo Branco ou nos barros negros de Ferreira ? É que, se nos primeiros uma produção média de 1,5 t / ha de trigo se considera uma boa performance, em Ferreira, menos de 5 t /ha não é um bom resultado! Ou seja, na mesma área, Ferreira produz no mínimo o triplo da produção máxima do Campo Branco. Dito de outra forma: 2% da SAU do Alentejo nos barros de Ferreira, não produziriam dois, mas seis por cento do trigo regional.

Se sairmos da micro escala do Alentejo para a escala global, convém que se saiba que a produtividade média do trigo na bacia de Paris ronda as 10 t /ha . E que se localizarmos 2% das tais “terras aráveis” no delta do Mississipi / Missouri ( os melhores solos do Mundo no melhor clima agrícola do Mundo para o milho, p.e. ) eles bastam para abastecer a totalidade das necessidades de milho de África inteira!

As coisas que se conseguem esconder por debaixo de uma “inofensiva” percentagem!!!

segunda-feira, 12 de maio de 2008

A Varinha Mágica


Há dias a varinha mágica que costumava fazer serviço na cozinha cá de casa, parou. Embora nova, a geringonça recusou peremptoriamente triturar a sopa. E esta manhã, sobre a bancada da oficina, resolvi-me autopsiar os mistérios daquela morte súbita na expectativa de uma fácil ressurreição.
Mas o caso é que ao contrário do que sucedia com o passe-vite da avó Clara, utensílio mecânico de idêntica finalidade, tracção manual e fácil acesso, o motor eléctrico da VM está encarcerado num corpo plástico blindado e por isso inacessível não só aos seus segredos constitutivos, como à mais simples intervenção eléctrica, uma vez que ainda que se saiba soldar um reles condutor desligado, não se chega lá sem escaqueirar o electrodoméstico.

Ora a nossa relação cultural com a civilização em que vivemos é em tudo idêntica a esta situação. Quando avançamos de uma forma inusitadamente rápida da idade do passe-vite para a da varinha mágica, passamos a interagir com uma série de dinâmicas que sabemos usar enquanto operadores mas cujo concepção nos escapa. Não os internalizamos ao nível da compreensão e provavelmente nem o conseguiríamos . É assim na culinária como na economia, na educação, na saúde, nas telecomunicações. Vivemos num mundo de magias cujos truques usamos, sim, mas ignorando como se realizam, informação essa que de resto só está acessível aos que a detêm e usam como instrumento de poder. As sementes híbridas de elevada produtividade de milho ou de trigo, p.e., são patentes detidas pelas grandes corporações da agro-industria e não propriedade da agricultura que delas depende e nós dela para nos alimentarmos. Mas o caso é que assim deslumbrados pelas infinitas habilidades de tantos brinquedos disponíveis, esquecemos este ponto essencial: perdemos o controlo cultural do modelo, ou seja, da nossa própria vida colectiva e pessoal.

A incompreensão dos mecanismos que nos sustentam como civilização e a dificuldade de acesso à informação que os produz, constitui uma dupla dependência, porque nos subordina ao domínio do conhecimento especializado e à correcta articulação da miríade de instituições que o operam. Mas vai mais longe que isso. È também uma regressão cultural e não progresso, porque produz comunidades não autónomas. A esse processo de perda de autonomia gosto de chamar desintegração da cultura e é terreno propicio à sementeira de misérias várias.

No ocidente esse tipo de miséria que resulta da confusão que se faz entre dependência e interdependência, ainda é mal percebida. Mas noutros territórios já são evidentes os seus sinais concretos quando povos despojados da memória funcional da sua cultura incorporaram sonhos alheios, criando assim novas fragilidades.

Era importante percebermos como isso foi possível. Por duas razões, pelo menos. Desde logo para evitar que as tentativas de saldo de dividas de má consciência contribuam para avolumar o problema e não para a solução. Depois para, eventualmente, nos evitar a nós mesmos ocidentais um percurso semelhante.

Procuremos na construção na personalidade do individuo uma metáfora de suporte para entender a cultura e a natureza da sua desintegração.

Há condicionalismos prévios à personalidade. De género, por exemplo. Nasce-se homem ou mulher, e isso “enquadra” alguns dos nossos desempenhos. Na cultura, esse papel de género é desempenhado pela geografia e só depois pela história. Portanto, tal como a personalidade não se elabora inteiramente sobre um espaço em branco, a cultura também não se constrói senão em redor de balizas concretas. Ela não é um caldo identitário que se escolha à la carte! Tal como a criança se formata primeiro na moldura do meio familiar em que nasce antes de alargar o seu espaço à comunidade, também a cultura se estabelece na interacção da comunidade na moldura geográfica e histórica em que se insere. Por isso a cultura cria ambiente, que é a viabilização cultural da Vida, e por isso se modifica nas interacções de causa efeito da sua própria dinâmica.
Ora, tal como a estabilidade da personalidade carece de relações estruturais fortes, a estabilidade da cultura precisa de princípios de interacção reprodutíveis apoiados em sistemas sustentáveis. Antes de mais esses princípios têm de ser capazes de dar resposta organizada às estratégias de subsistência . Eles assentam num processo longo de observação, recolha e tratamento de informação. Dele resultam conhecimentos de base regional que se consolidam em saberes. Nos casos das culturas de civilizações de sucesso, estes são conjuntos coerentes de resposta a circunstâncias especificas.

Vamos dar ênfase a esta ideia de coerência como algo mais que ligação de componentes mecânicas que produzem correctamente um trabalho previamente determinado, e pensemo-la antes como “alma” que opera órgãos interdependentes que se modificam a si e ao produto durante o processo em que o produzem. Porque tal como o corpo, também a cultura não se divide em cabeça, tronco e membros – compõe-se deles. Vivemos dessa integridade funcional de peças que não são cambiáveis. E nessa medida uma prótese num corpo é como um corpo estranho numa cultura. Eventualmente adapta-se, mas num registo de funcionalidade diferente cujas performances são imprevisíveis.

A desintegração cultural decorre por processos semelhantes, como resultado de “amputações” nem sempre acidentais eventualmente seguidas de “próteses” que modificam a orgânica instituída sem que com isso se crie necessariamente uma nova coerência.
Um paradigma pode ter esse papel de "prótese", como sonho substituto mas deslocado, porque falta à cultura o saber realizá-lo. Porque um paradigma coerente é sonho apoiado em memória consolidada em saberes capazes de salvaguardar as questões essenciais, como o controlo da produção local de alimentos. Quando o mundo rural afegão ou colombiano optou pelo cultivo do ópio ou da coca em detrimento da produção alimentar, arrancou as suas raízes autonómicas procurando no dinheiro a mediação para um paradigma que não lhes pertence. Com isso descartaram uma herança cultural e os respectivos meios e mecanismos internos de reprodução e progresso. Igual caminho se segue por aqui, quando se olha para o Alentejo como posto de abastecimento de biodiesel. Este “deixar de depender de si” encerra o corte com um fio condutor que não se repara no recurso aos manuais de agronomia, porque o que lá se encontra é mero manual de instruções para operar com “varinhas mágicas”blindadas. E é essa a miséria da desintegração cultural.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Idade da Razão

Finalmente um tempinho.

As visitas em circuitos que me dispensam, a casa arrumada e é tempo de repor a ordem na horta. As chuvas de Abril deram coragem às ervas e elas querem tomar conta do campo. Chamo as ovelhas para tratar do assunto, mas há que ficar ali marcando a fronteira com o talhão de grão-de-bico. Caderno e caneta que estas são ovelhas educadas, dispensam cajado, e enquanto elas roçam proponho-me eu, na fronteira, desbravar a encomenda do Francisco.

“Pensar o ambiente como categoria filosófica exige a introdução da analítica da finitude: a morte como acontecimento certo, e a reformulação da educação tendo em vista a morte”.

Questões delicadas. Interpelo a Estrela pedindo-lhe ajuda. Ela retraça compassadamente troços de viçosa luzerna e entre dentadas contempla-me com a expressão de quem não tem dúvidas sobre estas matérias. Finitude foi o ano passado quando a Gulosa, a companheira favorita de pastoreios, não resistiu à indigestão de uma erva ruim; finitude foi o borrego que lhe nasceu morto na sequência de uma imprevista apresentação pélvica. A Estrela sente-se disso nos seus afectos. São dias e dias em que se trata mal e anda balindo pelas cercas. Mas a vida é isso. Faz-se de pequenas mortes. Não é um acontecimento, mas uma sucessão deles, em que interacções diversas desempenham papéis raramente previsíveis. De alguma forma, como solução dessas matrizes complexas, cada vida acrescenta algo às anteriores, e nesse processo não linear modifica as condições de Vida das seguintes. Desse encadeamento biogeoquímico resulta uma eternidade relativa de conjunto que deve ser lida como produto da transitoriedade dos elementos que o compõem. Estes são elos de cadeias múltiplas que se fazem, desfazem e refazem em pequenos finitos de um infinito maior. A natureza, tal como a boa ecologia e a Estrela a entendem, convive naturalmente com essas dinâmicas conflituais. Mas a humanidade não. Somos propensos a negar a morte. Mas as soluções de negação da morte em que temos investido acarretam consigo um tipo de conflitualidade com a Vida que se tem apoiado no relativismo ético para nos conduzir por um percurso a que chamamos progresso mas que se está a revelar um autêntico pesadelo ambiental.

Chegados a este ponto importa centrar o discurso no percurso civilizacional do Ocidente. Não que outras civilizações não tenham também elas a seu tempo enveredado por processos insustentáveis e dessas derivas colhido o seu declínio. Mas porque é esta a nossa, e porque pela primeira vez na História existe um fio condutor global moldado por um só paradigma, aquele que o Ocidente construiu quando transferiu o objecto da sua fé do reino dos Deuses para o condado da ciência, e decretou o inicio da Idade da Razão. É nela que se tem apoiado a concretização de uma dupla reivindicação tão antiga como o tempo: mais e melhor vida.

Mas entretanto, a secularização das ideologias religiosas trouxe também para as praças dos nossos centros comerciais uma mudança de perspectiva. Deixamos de adiar a felicidade para o além - vida de onde não há registo de regressos e de uma forma muito pragmática procurámo-la no horizonte imediato do tempo concreto de cada indivíduo. É o carpen diem. Há quem o diga como uma espécie de rendição perante a impossibilidade de forçar a vida quantitativa para além de certos limites, um género de troca simbólica de quantidade de tempo por quantidade de vivências ou a incapacidade de conceber um sentido. Adiante ! Porque qualquer que seja, a explicação é hedonista, e a prática coloca a tónica num materialismo inegociável que tem no acesso ilimitado ao consumo a sua reivindicação central.

O que já não se pode escamotear é que esta dinâmica em que temos estado empenhados tem duas consequências. Por um lado, coloca sob intensa pressão os recursos e, decorrendo das incontornáveis limitações destes, é assimétrica por condição, i.é, ao carpen diem de uns corresponde mais cedo ou mais tarde o carpir de outros.

Não vale a pena repisarmos abordagens já realizadas sobre o onde, quando e como de cada uma destas derivas, porque não é esse o ponto. O ponto é que nesta fuga para a frente empreendida pela modernidade para condicionarmos a morte ou para nos distrairmos dela, enquanto invocamos a salvaguarda da vida como valor, caímos na contradição de pôr em causa a própria Vida, algo nada óbvio mas que importa reflectir.

Porque a verdade é que em prol da vida humana a modernidade conseguiu performances assinaláveis. Em menos de um século fomos capazes de passar do modelo T da Ford ao Ferrari F40, e das sangrias aos transplantes cardíacos. Desempenhos impressionantes cuja persistente apologia tende a escamotear o que não conseguimos resolver. Mas o caso é que da mesmo forma que os bólides de Maranelo não simbolizam mais e melhor transporte, também um transplante de órgão não simboliza mais e melhor saúde. Eles são, isso sim, símbolos da genialidade do homem quando lida com recursos ilimitados. Desde a agricultura à medicina, todos os progressos obtidos no confronto vida/morte estão apoiados neste género de simbolismos de valor, em que desempenhos de ponta ilustram capacidades de espanto, sim, mas impossíveis de generalizar. E porquê ? Simples: incompatível com a relação existente entre recursos e população !
Ou seja, sonhar ser rico é fácil. Sonhar com uma vida longa e saudável graças aos avanços da ciência e da técnica, também não é difícil. Mas esses avanços materializam-se com recursos concretos, limitados, pelo que a concretização do sonho implica a apropriação e uso assimétrico desses recursos, considerando que é enorme o valor do divisor. E não ficamos por aqui. É que a expansão, mesmo que limitada, das riquezas que usufruímos sob a eufemística da qualidade de vida, implica elevadas performances energéticas que no caso do Ocidente têm sido conseguidas pelo recurso aos combustíveis fósseis. Temos de os referir neste contexto porque tem sido esta a fonte de energia que modelou a modernidade e com ela a nossa cultura de alheamento da finitude. Usados como legado de morgadio, são eles que têm permitindo suportar o crescimento populacional e a produção dos respectivos consumíveis como algo natural.

Os EUA, p.e., com apenas 5% da população mundial usam 30% de todos os recursos de energia produzidos. Desse consumo, a grande maioria não é de produção própria. O que é relevante, uma vez que o abandono da matriz económica de base regional como suporte da riqueza geradora do modo de vida com as características que temos como bem, criou sistemas de dependências que não são interdependentes. A verdade é que em contexto de penúria, não se troca arroz por petróleo nem se come turismo. Mas na busca simultânea do Reino de Sabá e do Santo Graal, produzimos este mundo tão exigente quanto alienado da real capacidade de nos continuar a alimentar a utopia. Para a gerir, concebemos instituições de poder assimétrico que viabilizam todas as extravagâncias, quando deveríamos saber que colocamos em causa a capacidade de carga dos sistemas de suporte que nos são essenciais: solo, água, biodiversidade. Para os explorar, implementamos sistemas operativos especializados que se apoiam em leituras fragmentárias do funcionamento do mundo e encaram o ambiente, o meio e o outro, como factores e produtos, custos e receitas. Com isso, confundimos os ganhos marginais de vida alcançados com um Futuro que não é ! Porque quando retiramos das equações orgânicas da Vida a Finitude, ela reduz-se à nossa vida, e essa mais não é que um ritual de passagem sem memória nem projecto.
Distraí-me !

De pança cheia as minhas roçadoras ruminam expectantes pelo regresso ao curral que o poente costuma marcar. Não terminaram o serviço e eu também não. Voltamos amanhã à procura de veredas por onde fazer passar a contra-cultura que nos possa ajudar a ultrapassar este impasse. É que não faço ideia de como se educa contra a ideologia dominante do próprio sistema que tem produzido esta deriva da Idade da Razão. Nem como se repõe a humildade na equação que tem gerido a nossa interacção com o ambiente . Talvez a Estrela tenha algo a dizer sobre isso, mas não agora, que rumina.