Cada vez que encaro com uma televisão, apanho um susto !
O último foi quando um senhor vestido de engenheiro agrónomo em dia de saída de campo, garantia no pequeno ecrã, posando num cenário de Hollywood, que uma vaca de uma marca qualquer dava um leite magro natural.
Corri para casa a limpar o pó aos desusados manuais de vacas leiteiras para recapitular essa capacidade que em devido tempo me teria passado completamente ao lado. Mas como os ditos já têm uns bons anos fiquei sem a dúvida esclarecida ! Seria uma vaca moderna, modelo OGM ? E neste caso seria uma vaca especializada em leite magro ou um protótipo ainda mais avançado, capaz de dar leite magro numa teta, leite com chocolate na outra, da terceira iogurte líquido e da última leite com sumos e enriquecido a vitaminas ?
A vaca do cenário da televisão até pastava, imagine-se ! Supus por isso que nesse aspecto fosse um up-grade das vacas leiteiras que eu julgava conhecer, para quem a necessidade incontornável que têm de um bocadinho de erva e ginástica era a maior dor de cabeça dos respectivos nutricionistas e proprietários.
Explico!
As vacas foram feitas com uma característica que a fileira de lacticínios da modernidade bem dispensava: são ruminantes. Para que aquela imensa parte de estômago da vaca a que se chama rúmen funcione, precisa de fibras longas, ou seja, qualquer pedaço de erva verde ou seca com mais de dois centímetros de comprimento. E não são apenas meia dúzia de troços mas uma quantidade relativamente significativa a que alguém se lembrou de designar pelo palavrão de “coeficiente de balastro” e que se refere exactamente à quantidade mínima de fibra que é necessária na ração. O balastro faz-se com palha, por exemplo. Palha que é preciso transportar, armazenar, enfim, uma trabalheira, porque afinal a palha não tem valor nutritivo bastante para fazer leite que se veja. Isso é trabalho para os "concentrados", isto é, misturas de cereais, oleaginosas, sub-produtos vegetais vários e outros como as farinhas de sangue, carne e peixe, antibióticos e gorduras by-pass, mistelas que uma vaca que preze a sua produtividade não prescinde e dos quais consome no mínimo uns seis quilitos diários. Mas além disto, as vacas precisam ainda de um mínimo de ginástica para não entrevarem precocemente. Outra chatice, sobretudo para quem as instala em autênticos prédios de andares como já vi em São Paulo e em fotos obtidas no Japão.
Ora como é evidente, de natural estas dinâmicas têm tanto como o tem a estupidez que nos leva a trocar por leite alimentos que também utilizamos sem qualquer ganho alimentar no processo! Mas o caso é que com todo o poder de comunicação que tem que lhe ser reconhecido, a publicidade tem vindo a produzir uma interminável e fluorescente repintura verde de toda a fileira alimentar. E com sólidos resultados na opinião pública informada, cuja boa formação teórica nem sempre consegue ultrapassar os “truques “ tecnológicos subjacentes à alimentação natural que procura e que paga principescamente.
O caso do leite “naturalmente” magro é um desses magníficos truques.
A fileira dos lacticínios é, nos dias que correm, uma actividade industrial da nascente à foz, com uma utilidade relativa mais que discutível. O mito da imprescindibilidade do leite da vaca na roda dos alimentos é algo que devia estar sob a alçada criminal. Fala-se do cálcio no leite como se nós não o conseguíssemos ir buscar às couves, tal como a vaca o vai buscar às ervas. Fala-se na proteína como se a que serve para a vaca dar leite não nos servisse com considerável economia. E como se tudo não bastasse, quer-se fazer passar a ideia de que a vaca…produz leite à la carte:
- Sai um magro para a mesa onze!
Mas não sai! Ainda não há vacas dessas, só das outras. E estas são peças de uma cadeia de montagem que se alimenta de petróleo para nos dar a ilusão de que nos alimentamos de leite. Desde a sementeira do milho para silagem até à desnatagem, a produção de leite é tão natural que até o sexo com touros é proibido às vacas. À vaca leiteira só é permitido uma espécie de sexo com um homem: o inseminador. E mesmo isso porque sem partos elas não dão leite, pelo que, mesmo que os vitelos nunca lhes chupem uma única teta, têm que os parir. E esta deve ser das poucas partes biológicas da produção leiteira moderna. Porque o que se segue na cadeia de transformação de "bio" tem apenas o facto de a pasteurização ou a ultra-pasteurização matarem a maior parte da flora microbiana presente naturalmente no leite.