domingo, 2 de dezembro de 2007

Direito à Memória


Fredo, nos testemunhos que nos deixou dos seus diálogos com Sócrates, refere a história que este lhe contou sobre a entrevista de Tot com um dos Faraós do Antigo Egipto. Tot era o Deus Egípcio inventor do jogo das damas, dos números, da geometria, da astronomia e da escrita, e fora convocado para que o Soberano pudesse colocar todas estas invenções ao serviço do seu povo. O Faraó terá discutido os méritos e os inconvenientes de cada uma das ofertas e, quando chegaram à escrita, Tot terá dito:
- “
Aqui temos um ramo do saber que lhes aperfeiçoará a memória. A minha descoberta é uma receita tanto para a memória como para a sabedoria.”
A isto o Soberano replicou:
-“Se os homens aprenderem a escrever, tal implantará o esquecimento nas suas almas; deixarão de exercitar a memória, pois passarão a depender do que está escrito, não mais chamando as coisas à memória de dentro de si mesmos, mas por intermédio de marcas externas. O que descobriste, não é uma receita para a memória, mas para a lembrança. E não é verdadeira sabedoria o que lhes ofereces, mas apenas a sua aparência, pois ao dizer-lhes muitas coisas sem lhes ensinar nada, farás que pareçam saber muito, quando na realidade nada saberão”.

Quando o Faraó distinguia, perante Tot, memória e lembrança, estava também a demarcar uma das premissas centrais da memória, que é a sua sedimentação cultural? Nunca se saberá ! Mas parece legítima a tese de que mais que um acervo de informação, para ele a memória era, devia ser, um repositório de saberes com sentido de devir, a um tempo reflexiva e crítica do que somos. O caso no entanto é outro, porque o acesso à memória e o seu controlo, desde sempre, foram também instrumentos de poder.

Agostinho da Silva ajuda-nos a percorrer os meandros históricos da construção da memória e a desvendar como o seu controlo tem sido ao longo dos tempos alvo de conflitos, integrados na luta mais vasta pelo poder. A apropriação da memória é uma das preocupações dos grupos e das forças que travam essa luta, tal como os esquecimentos e os silêncios da história são mecanismos da sua manipulação.

Três mil anos depois os faraós do nosso tempo, agora eleitos pelo voto popular, já não convocam Tot quando querem dar algo aos seus povos. Convocam hordas de supostos sábios que são os deuses possíveis num mundo céptico quanto às divindades, mas crédulo, demasiado crédulo, quanto aos méritos da ciência e da técnica. Convocam-nos e pagam-lhes, porque estes deuses não fazem nada de borla. Pagam-lhes principescamente a incumbência de construir memórias como quem transcreve epístolas e se possível, de as servir em imagens, cuja credibilidade acrescida advém de supostamente traduzirem a realidade.

Assim, em páginas repletas de caracteres só inteligíveis a iniciados, ou em pacotes de imagens que os intérpretes do regime fabricam para uso dos leigos, registam-se para a posteridade profecias de cataclismos bíblicos, como quem proclama verdades inconvenientes. Tal como as antigas, também as pragas destes nossos Egiptos são reversíveis ou mesmo evitáveis, mas não a troco de rezas ou oferendas para acalmar a ira divina. A solução passa agora por novos investimentos na técnica e na ciência. Na mesma ciência e na mesma técnica que, enchendo de resmas de símbolos as bibliotecas ou viajando no espaço à velocidade da luz, distraiu de tal forma os povos com tanto saber escrito que eles se esqueceram de questões tão elementares como não construir em leito de cheia.

Séculos de escrita com lembranças de saberes antigos para memórias futuras, que depois de servirem para pôr um homem na Lua, até são capazes de fazer nevar no Dubai, revelam-se assim incapazes de regrar questões aparentemente tão elementares como a gestão sustentável da água potável, a conservação dos solos ou o uso da energia.
A cada novo problema da técnica contrapõe-se mais técnica. Mas o que de facto está a acontecer é que se contrapõe ao desenvolvimento de uma sociedade a criação de um mundo mecânico! Nada há que a ciência e a técnica não resolvam ! Tudo descrito e explicado em caracteres, fórmulas, imagens, tudo devidamente Nobelizado. Será tudo possível ? Sim, eventualmente ! Mas… para quê ?

Como Montaigne já sabia, os “factos” são interpretações. E como sugere Lourenço, um “facto” que dura pode ser uma boa definição de “mito”. Toda a leitura do nosso passado como digno de memória, ou a prospectiva do nosso futuro, estão suspensos de “factos”. E como essa leitura é uma trama densa de textos, em que os “factos” se comentam, glosam, cantam, analisam e mais raramente se discutem, é nela que se funda o nosso mito civilizacional. Confuso, incerto, porventura infundado, mas não temos outro paradigma senão este em que o enriquecimento material permanente se nos apresenta como único motor de progresso. Perante a sua capacidade persuasora sacrifica-se tudo. Tal como em séculos passados se sacrificaram os Índios e os Negros, mesmo que para isso se tivesse recorrido à lógica Aristotélica, com maior facilidade se tem encontrado hoje forma de contornar os pruridos éticos aos impactos ambientais das actividades humanas. Mas agora estamos numa nova fase: aquela em que o conhecimento desses impactos se transforma, ele mesmo, em arma de conquista do poder e veículo de enriquecimento.

Seria a memória quem nos devia situar evitando-nos a deriva para um pragmatismo autista. Competiria à memória fundada na sabedoria secular, a compreensão de um sentido que não pode reduzir-se ao simplismo de uma permanente dinâmica de conquista. A adaptação aos condicionalismos naturais, a compreensão dos seus ciclos e dinâmicas, provou no passado ser mais sustentável que a recente tentativa insana de os condicionar. Mas é obvio que são os processos passíveis de enfrentar o inegociável numa envergadura faraónica, os que verdadeiramente interessam aos que se movimentam na órbita do poder, ainda que para isso tenham de controlar a memória, criando por antecipação as novas verdades do tempo, como novos “factos” para o mesmo mito.

É dessa obra que somos mercenários involuntários. Escrevemos, de facto ! Dizemos imenso, parecendo por isso sabermos muito. Mas a realidade é que não sabemos nada, e por isso o que se documenta não é uma receita para a memória, mas para a lembrança.

A memória, essa, perdemo-la !

3 comentários:

Fernando Dias disse...

Caro Manuel Rocha:
Agradeço a sua participação e simpatia.
Quanto à sua questão, está certo. O condicionamento cultural é decisivo e fundamental. E está certo quando suspeita que não uso a palavra “cultura” intencionalmente.

A resposta a isto pode ter dois registos, um mais complexo e profundo, que não consigo dizê-lo por dificuldade de síntese conceptual e linguística, e outra mais simples que é o seguinte: a palavra “cultura” nos debates contemporâneos tem sofrido desvios com conotações ambíguas e armadilhadas, motivo porque evito utilizá-la quando posso.

Anónimo disse...

Brilhante dissertação esta sua, Manuel Rocha. Sinceros parabéns !

Tomara que cada um de nós no seu tempo e no seu espaço atingisse o alcance das suas considerações. Mas andamos todos demasiado ocupados com a nossa "genialidade" para olhar um pouco em redor da história e perceber o que nos trouxe até aqui.

Continue !

Mariano Feio

antonio ganhão disse...

Um texto e uma reflexão brilhantes. Sim no dia de hoje Tot não nos conduz nos caminhos do progresso e da globalização. Dispensemos pois o personagem...