segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Rosas Brancas


Apesar de só ter a terceira classe completa, o meu avô era um homem de grande cultura. Graças a ele sobrevivo onde quer me que me deixem e sou sempre capaz de encontrar o caminho de regresso a casa. Desde os cogumelos e bagas silvestres comestíveis, à orientação pelas estrelas, do empate de um anzol à confecção de uma caldeirada, da sementeira de um alho ao capar de um porco, da técnica da enxada ao afiar de um gadanho, do gosto pela leitura ao gosto pelo xadrez, da previsão do tempo de amanhã ao valor do compromisso e da verdade, tudo isso foram conhecimentos essenciais que dele adquiri.

O meu avô tinha da sua vida a noção de elo de uma cadeia mais complexa, mas com um inquestionável corolário: nela competia-lhe passar um certo testemunho. Foi o que fez com a competência de que sou o resultado possível.

O meu avô era, aliás, um excelente pedagogo.

Quando eu tinha cinco anos entendeu que era tempo de me ensinar a nadar. Fomos de caleche até ao Carvoeiro, nós dois e o Tejo (os rafeiros lá de casa sempre se chamaram Tejo…era mais prático). Uma vez na praia percorremos a vereda até um pontão natural num extremo da pequena enseada, que distava cerca de uns 30 metros da rebentação. Lá chegados o meu avó atirou um pau à água e ordenou ao cão: Busca. O Tejo atirou-se ao mar e fez o que era suposto. O meu avô virou-se para mim e perguntou-me: Viste como o cão fez? Eu assenti e ele concluiu: Então faz igual e vai a nadar p’ra praia. E eu fui.

Teria eu os meus onze anos quando o meu avô me convidou para o acompanhar à Feira de Castro, onde se deslocava metodicamente de cinco em cinco anos para renovar o stock de bestas lá da casa. Tomamos o Comboio-Correio da meia-noite e vinte e, cumpridas as seis horas de tombos e apeadeiros inerentes aos 160 km do percurso, chegamos a Castro com o sol a levantar-se e a feira a animar. Pouco depois estava concluído o negócio de dois belíssimos muares, e nessa altura o meu avô estendeu-me duas notas de cinquenta escudos e informou-me do que se seguia no programa: Zé, tenho que ir a Beja e tu vais andando com os machos para casa. E eu fui.

Dois anos mais tarde, quando numa tarde de Novembro cirandávamos por entre as barracas da feira anual de Portimão, o meu avô deve ter reparado que quando as gaiatonas passavam por nós eu virava a cabeça com inusitada frequência. De modo que à tardinha encaminhou os passos para os lados da Estação, bateu à porta da Maria Guerreira, mandou chamar a patroa e instruiu apontando para mim: É p’ra desmamar. Assim foi. Depois, fomos jantar ao Nacional e ficamos jogando xadrez enquanto aguardávamos a carreira da EVA que nos levaria de regresso.

Apesar de ler poucos jornais (ainda que quisesse eles só chegavam à província embrulhando alguma encomenda de bacalhau do alto…) o meu avô era um homem bem informado e grande apreciador de boa literatura que o amigo de sempre, o professor Vieira, regente da disciplina de História no Liceu, lhe trazia periodicamente de empréstimo. Como ele já via mal ao perto, quando eu tinha os meus oito anos começou por me passar para as mãos As Pupilas do Senhor Reitor, para que lho lesse aos serões à luz do candeeiro a petróleo. De modo que aos dez anos lia-lhe Anna Karenina, Guerra e Paz, Doutor Jivago, e obras que tais, até se esgotar o stock da biblioteca do professor Vieira e os começar a requisitar na Biblioteca Itinerante da Gulbenkian que demandava a Vila nas primeiras quintas-feiras do mês.

Num magnífico fim de tarde de Agosto, estava eu e o meu avô no eirado enrolando e protegendo as esteiras de figos que secavam ao sol, quando apareceu em passeio um velho amigo que estava de férias na Vila, acompanhado por um senhor bem-posto e de fino trato, de nome Azevedo. No decurso da conversa deu-se o caso de o meu avô ter deixado sair que estava a proteger os figos porque nessa noite iria chover. A essa informação replicou o Senhor Azevedo, de forma educada mas convicta, que estava informado do boletim meteorológico e que não estava prevista chuva para toda a semana. E olhando para o céu limpo como cama feita de lavado, ninguém em seu perfeito juízo afiançaria a ocorrência. Mas às quatro da madrugada as torneiras dos céus abriram-se e choveu de escantilhão. Nessa manhã, ainda as ruas não tinham secado e já o senhor Azevedo as percorria demandando a Quinta para tentar perceber por que artes o meu avô soubera que iria chover quando ninguém o previra. O meu avô admirou-se tanto da questão que tenho a certeza que só se dignou respondeu por mera cortesia: Essa agora…então…vê-se e sente-se!
O veraneante, soube-o anos depois, era o Eng Anthyminio de Azevedo, conceituado meteorologista.

Nos últimos anos da sua longa vida o meu avô ficou um pouco “duro de ouvido”. Por isso, se por esses dias em que eu já frequentava as aulas de filosofia do “Trinta Cabelinhos” (desculpem mas nunca soube ao certo o nome do senhor) o questionasse sobre algo relacionado com Kant, é natural que ele me retorquisse no sentido de tentar perceber que queria eu que ele cantasse – o meu avô era um homem alegre e gostava de cantar.
Mas é natural que, se eu insistisse, falando mais alto e questionando-o sobre o que para ele era a “verdade”, o meu avô me olhasse com uma expressão de imenso desânimo antes de se levantar do poial invocando a urgência de ir dar de beber ao gado.

Porque o caso é que o meu avô tinha da verdade noções dificilmente rebatíveis. Ter fome depois de passar três dias sem comer era o exemplo de uma verdade inquestionável. Como o seria a dor na testa depois de uma tremenda cabeçada na porra da viga da porta da cavalariça, cuja altura mestre Amadeu calculara pela bitola errada, ou a dor de costas depois de uma jorna a alumiar vinha. Qualquer destas situações era de resto facilmente verificável, bastando para isso repetir as condições objectivas em que ocorriam.

A mentira também era fácil de definir. Por exemplo, se alguém lhe dissesse “ontem choveu em Benagil” e o meu avô lá tivesse passado o dia varejando alfarroba e regressado já depois da meia-noite e da carrada feita sem que uma pinga vinda do céu lhe tivesse refrescado a testa, retorquia de forma tão seca que nem um pelotão de cavalaria se atreveria a contradizê-lo: Isso é mentira!

Certezas relativas, o meu avó tinha muitas, mas absolutas tinha apenas uma.
- Qual, avô?
- Um dia destes, morro!
De resto, problemas existenciais como os da morte, ou da vida para além da morte, eram assuntos que ele tinha bem resolvidos.
- Avó, quando morremos para onde vamos?
- Para debaixo da terra!
- E depois?
- E depois ficamos feitos em estrume!
Até hoje não houve biólogo que me explicasse melhor esta questão!

Quando comecei com as aulas de biologia, é verdade que um dia partilhei com o meu avô as teorias em voga sobre o “caldo primitivo”. Algures a meio do meu discurso surgiu ao meu avô uma dúvida inadiável:
- Já regaste as cebolas?
Eu ainda não as tinha regado e fui tratar disso que o dia ia quente. Quarenta anos depois e embora já saiba o que é uma hipótese, uma teoria, ou como se infere de acordo com as regras do método cientifico, continuo sem saber como surgiu a vida.

O Padre Oliveira tinha algumas ideias sobre isso. E por vezes passava lá pela Quinta tentando levar ao redil aquela ovelha que nunca lhe aparecia no cercado da Igreja. Mas assim que a conversa deixasse de versar o problema da geada negra que acabara de dar cabo das favas em flor e começasse a descambar para o lado dos pecados da carne e respectiva expiação, o meu avô recorria logo a um argumento demolidor:
- O Senhor Padre já almoçou?
E a partir daí discutiam-se os segredos da arte da Gracinda na preparação do tacho da lebre com feijão branco.

Apesar de lá em casa não haver memória de ano em que tenha faltado o que comer, não se julgue que o meu avô era um pragmático destituído da mais elementar capacidade filosófica e de reflexão abstracta. Nada disso. Provo-o terminando com o relato de uma conversa de profundo recorte filosófico que lhe escutei certo fim de tarde no café do Zé David.

Já não sei porquê o assunto derivara para a cor das bestas. Farto de questão tão risível, o meu avô interveio na tentativa de lhe colocar um ponto final.
- Pois eu lá em casa tenho um macho cor-de-rosa!
Esta afirmação provocou previsivel silêncio tumular, pois apesar de incrédulos os presentes conheciam sobejamente as consequências de se duvidar da palavra de um Rocha. Assim, só um forasteiro teve a veleidade de aventar timidamente:
- Aí está uma coisa que eu nunca vi….
Excepcionalmente o meu avô condescendeu ser questionado, mas respondeu-lhe com inenarrável desdém:
- Tem visto pouco! ... Nunca viu rosas brancas?

4 comentários:

Fernando Dias disse...

Que sortudo, Manuel Rocha!Ter um avô como este é uma felicidade.

anonimodenome disse...

gosto do seu avô, e das suas verdades inquestionáveis.
un sítio a frequentar mais vezes, o seu.
muitos parabéns.

Fátima Lopes disse...

Olá Manuel,

Lindo!!! Adorei este texto! O seu avô lembra-me o meu pai. Também ele só com a 3ª classe. Com ele também aprendi, e aprendo, muito. Ensinou-me a distinguir os pássaros pelos seus sons, a calcular o tempo olhando para o céu, a dar biberão a borregos e cabritos, a conduzir rebanhos, a fazer nós de marinheiro, a rachar lenha, a apreciar o céu estrelado e o som das cigarras no Verão, a sentir respeito pela natureza e por todas as coisa e sobretudo a sentir-me grata e feliz mesmo numa casa sem água canalizada nem luz eléctrica, onde vivi até aos 11 anos. A sabedoria de uma vida feita de pequenos nadas, que exactamente por serem pequenos e escassos se tornam tão importantes e valiosos. Que bom seria poder recuperar essa sabedoria profunda e humilde de quem vive a vida “enraizado” e “alimentado” por ela, sem artifícios, sem pretensões e ainda assim, com alegria.

Bem haja Manuel pelo seu texto

antonio ganhão disse...

O meu avô, o dos contos, é mais um pai ausente...

Dexei um comentário no Factor Sopas e vou linká-lo... é o que dá visitar blogs pouco recomendáveis como o Outramargem.

(seria possível tirar as letrinhas de preenchimento obrigatório? Só servem para chatear!)