Há dias colhi o grão-de-bico que tinha semeado em Abril. Se as primaveras não correrem secas, o grão é uma cultura fácil. Pouco dado a problemas sanitários, também não tem exigências de cultivo especiais. Gosta de terrenos com boa exposição solar e com boa capacidade de retenção para a água. Com estas condições tenho um canteiro com uns cem metros quadrados. Depois de estrumado, cavado e destorroado, foi nele que semeei o litro de grão-de-bico que me arranjou a vizinha Júlia. Quatro meses, três sachas e outras tantas mondas depois, ceifei, debulhei e limpei. Eis o resultado: catorze sementes. Para quem não está habituado a este linguajar, esclareça-se que se dizia assim a produtividade da colheita, estabelecendo o factor pelo qual se multiplica cada unidade deitada à terra. No caso do grão em sequeiro, afianço que é um bom resultado.
Mas, contas feitas por alto, os catorze litros de grão que colhi correspondem ao produto de cerca de uma semana de trabalho – quarenta horas, grosso modo. Ora, na mercearia da Dona Isabelinha, vende-se o grão a 1,65€ o kg, o que quer dizer que a preços correntes a semana de trabalho que acumulei no canteiro de grão-de-bico que produzi vale no mercado convencional cerca de …18,5 € (1 kg de grão tem cerca de 1,25 litros). E se desprezar o custo dos factores de produção envolvidos (semente e matéria orgânica) teria sido esta a minha receita, correspondendo pois a uma remuneração do trabalho que não chegaria a cinquenta cêntimos por hora. Vamos admitir que eu sou pouco rotativo e que podia ter feito o trabalho em metade do tempo, que ainda assim a remuneração da hora de trabalho não ultrapassava um Euro. Ou seja, cerca de 1/3 da remuneração horária considerada pelo salário mínimo nacional.
Se utilizar como exemplo outras culturas agrícolas conduzidas de forma tradicional, o resultado não é muito diferente, o que leva a uma questão pertinente: por quanto teria de ser vendida a colheita para remunerar decentemente os factores de produção?
Bom, o problema não é a resposta, mas a pergunta, uma vez que a dificuldade não está em encontrar o valor teórico correspondente, mas quem o pague. O caso é que o modo de produção tradicional não está estruturado para o mercado tal como ele existe e funciona. Aliás, ele nem sequer se articula com a estrutura da sociedade tal como ela desaguou no século XXI. E isto porque os modos de produção agrícola tradicionais não são monetaristas nem produtivistas, como ficou bem claro quando ontem fui às compras à Dona Isabelinha e paguei 19,30 € por um pão, um pacote de manteiga, dois de massa, um quilo de arroz e duas meloas. Ou seja, vendidos ao público, os meus catorze litros de grão não davam para pagar a conta. Mas enquanto com o grão que colhi eu tenho o bastante para a base de pelo menos cinquenta refeições, aquilo que comprei por valor equivalente não me dá para meia dúzia.
Portanto, ao invés da produção agrícola tradicional, as premissas da organização do mercado e da formação de preços agrícolas da modernidade não são as da satisfação das necessidades alimentares básicas, mas outras. Ora é dentro destas “outras” que se insere a nouvelle corrente da agricultura biológica (AB).
Embora se inspire em lógicas, métodos e técnicas tradicionais, a AB não é um modo de produção tradicional, mas um up-grade híbrido, que combina alguma mitologia do tradicional, enquanto suporte de marketing, com a nata tecnológica da “revolução verde”, como modo de produção.
Com a retaguarda quantitativa assegurada pela agricultura industrial, a sociedade da abundância aceita de bom grado que a AB explore nichos de poder de compra claramente acima da média, disponíveis para pagar mais por produtos agrícolas supostamente mais saudáveis. Mas claro que esta disponibilidade tem um limite, e por isso quem investe na produção AB poderá ter que fazer vista grossa a pressupostos centrais de sustentabilidade na prática agrícola, como única forma de lhe preservar a margem bruta. Ou seja, a postura comercial do agricultor biológico não tem nada a ver com a do tradicional, que apenas ia à praça quando tinha um excedente de produção. O agricultor biológico cultiva objectivamente para um mercado e tem encargos fixos decorrentes dessa opção. Por isso ele tem que promover uma política de controlo de riscos numa perspectiva de pragmatismo produtivista / monetarista cuja lógica é tacitamente aceite e reconhecida pelo normativo europeu que “define” a AB - o Reg CEE 2092 /91, cuja leitura aconselho vivamente a quem sofra de insónias nas férias.
Quer isto dizer que se eu quisesse sobreviver como agricultor biológico, alguma coisa teria que fazer além de requerer a etiqueta “bio” para os meus grãos tradicionais e pagar o devido controlo a uma entidade certificadora. Porque se é verdade que com a etiqueta posso vender os grãos mais caros, essa diferença ainda não chegaria para remunerar os factores de produção e em particular o trabalho, que na agricultura tradicional é preponderante. Portanto, e no mínimo, seria sensato pensar em trocar os canteiros por uma parcela onde fosse possível mecanizar o trabalho, em vez de o fazer manualmente. Além disso, seria de bom tom prescindir das sementes tradicionais da tia Júlia e usar uns garbanzos espanhóis “decentes”, pois já se sabe que os olhos são os primeiros a comer e entre os berlindes híbridos de nuestros hermanos e as cabeças de alfinete tradicionais da minha vizinha, não há consumidor que se preze que opte por estes. Depois, se um de vocês passar por lá e me encontrar de garrafa de gás propano e maçarico em punho a queimar erva, não se admire, porque essa é uma das técnicas aceites em AB para controlo de infestantes.
Acontece pois, que embora a AB assente o seu argumentário em noções muito válidas, como conservação do solo e preservação dos ciclos da matéria orgânica e da água e recuse os agro-químicos de síntese, ela tem como irrelevante a origem das fontes de energia investidas no processo produtivo agrícola, bem como o respectivo balanço. Não seria por usar matéria orgânica produzida em França, turfa irlandesa ou guano chileno, em vez do esterco das minhas ovelhas, que os meus grãos deixariam de ser AB. Tal como não é por voarem diariamente de Faro ou de Nairobi para Londres que os hortícolas certificados como biológicos e produzidos em Odemira ou no Quénia para serem vendidos no Harrods, perdem a etiqueta.
É por razões desta natureza que, embora tenha de positivo o facto de repensar o modelo de racionalidade técnica que tem norteado a “revolução verde”, a AB não é uma alternativa ao modo de produção agrícola industrial. A AB é apenas uma sua variante soft com claras motivações comerciais, porque continua a ser financeira e não energética a lógica em que é pensada a sua viabilidade - em última análise, se não der dinheiro, não se faz! Além disso, há aspectos do modo de produção que preconiza que são de crítica incontornável. Mas essas ficam para a próxima.