segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Novas Oportunidades

O Henrique Santos sugeriu-me a leitura do seu livro, “ Do tempo e da Paisagem – Manual para leitura de paisagens”. Já encomendei. A ideia é ajudar-me na dificil compreensão de problemáticas e conceitos que obviamente não domino. Estão em causa ideias de património, cultura, paisagem, conservação. E está visto que tirei mau proveito das lições e leituras de O Ribeiro, G R Telles, M Feio , C Carvalho, G Guerreiro. De resto, suponho que para os critérios em uso estes gajos já estejam ultrapassados. E eu também, naturalmente. Um dos aspectos em que melhor se revela esse meu desfasamento face à realidade corrente, é no mau hábito de detestar a mania de usar as mesmas palavras para exprimir coisas diferentes. Há conceitos que se revelam insuficientes, errados, inadequados, e por isso têm de ser alterados. É assim, as coisas mudam. Mas herdei daqueles fulanos que referi a ideia de que até esses só têm a ganhar com palavras novas, para melhor se distinguirem do eventual disparate. Dessa forma, diziam eles, evitavam-se diálogos de surdos, como este que ( aqui...caixa de comentários ) eu e o HPS protagonizamos.

Foram ainda aqueles "dinossauros", maioritariamente extintos, quem me chamou a atenção para o que consideravam dois erros comuns no que diz respeito á forma como nos referimos ao património. O primeiro é pensar que património é sobre natureza ou sobre edifícios, quando é sobre as pessoas e o que elas investem em si, na terra ou nos tijolos. O segundo, é pensar que património é sobre o passado quando é sobre o futuro, sobre o que ficará depois de nós desaparecermos.Dai derivava a distinção que me explicaram entre conservação e preservação. Disseram-me que a preservação visava impedir que as coisas acontecessem , e que a conservação ( coisa ainda mais antiga que a Reforma dos Graco ) tinha a ver com a gestão da mudança no sentido de permitir continuar a colher.


São noções deste tipo que me têm condicionado a reflexão. Por isso, quando ouço falar em politicas de conservação, só me faz sentido pensar nas couves no contexto das estratégias que permitam às pessoas continuar a colhe-las. Quando ouço falar em património, só me ocorre pensar naquilo que as pessoas têm produzido ( cultura - e tanto me faz se são Biblias, sinfonias ou lagares de azeite ) ao longo dos processos que empreenderam para se viabilizarem nos territórios que colonizaram. Estou convencido que Levi-Strauss, mesmo morto, ainda deve ficar de cabelos em pé de cada vez que se fala nesse contra-senso que se plasma na expressão de “património natural”. A melhoria das interacções das sociedades com o território, no sentido de fortalecer as dinâmicas de perenidade, não carece em nada que a natureza deixe de ser conceptualizada como sempre foi pela ecologia humana: como meio e recurso. Dizia-o o H Odum, outro dinossauro extinto, e eu, dinossauro desactualizado mas não extinto, até ver não encontrei abordagem que me fizesse melhor sentido.


Claro que tudo isto está prestes a mudar com a iminente chegada a esta casa da obra de HPS. Já abri na estante espaço para ela. Vai ficar entre o G. Hoyois e o Dolfuss, ao lado deixo o Zonneveld . Assim, se quiserem podem organizar-se para umas partidas de poker. Entretanto, na obvia falta de cv relevante ou de obra publicada capaz de recomendar a quem quer que seja, coisa facilmente constatadas pelo HPS ( e que qualquer aprendiz de mestre das nouvelle ciências de avant-garde como essa coisa extraordinária que dá pelo nome de biologia da conservação que me lesse estes dislates, corroboraria sem hesitações …. ) tudo o que me resta é procurar consolo nos escritos de velhos colegas de tarimba que pelos vistos, tal como eu, tb perceberam tudo mal. A d’Abreu e T Correia, por exemplo, produziram recentemente na UE por encomenda da DGOTDU, um trabalho que intitulam de “Identificação e caracterização de unidades de paisagem em Portugal”, em que definiam a paisagem nos seguintes termos: “ A paisagem é na generalidade do território europeu, uma paisagem cultural, expressão dos diversos recursos ( e condicionalismos, acrescento eu… ) naturais existentes mas tb d acção humana sobre esses recursos. A paisagem natural é aquela onde a articulação dos factores ao longo do tempo não foi afectada pela acção humana, o que é raro na Europa. De forma directa ou indirecta existe em todas as paisagens europeias algum impacte de acção humana."

O livro do HPS decerto será capaz de desmontar esta tese e evidenciar sem margem para dúvidas que as AP’s portuguesas são, não só paisagens naturais, como património natural, e que, por conseguinte, faz todo o sentido que a prioridade de conservação nesses territórios deva ir no sentido da biodiversidade, tarefa que cabe ao ICNB segundo os critérios do ICNB, e bitola pela qual se deverá medir a sua eficácia, goste-se ou não.

Com toda a legitimidade, o HPS acha que a melhor forma de promover as interacções conservacionistas que reclama para as agora designadas AP, é através da centralização da decisão politica a implementar. Talvez seja. Mas não deixa de ser uma situação irónica. Durante séculos, houve pessoas maioritariamente analfabetas que, à margem da civilização, à margem da ciência, das academias e dos seus lentes, desenvolveram estratégias de conservação que deram origem a paisagens tão ricas e a formas de habitar tão interessantes que, chegadas ao nosso tempo, toda a gente, arquitectos paisagistas incluídos, acham por bem valorizar. Mas ao mesmo tempo que lhes reconhecem o mérito, declaram os criadores dessas paisagens incompetentes para continuar a fazer o que sempre fizeram – conservá-las! Estranho ? Talvez não seja. Não o será seguramente se, além do mais, se estiver também a confundir conservação com preservação. Mas só o poderei afirmar depois de concluídas as leituras que agora tão gentilmente me recomendam. Embora dinossauro sem obra publicada que me atreava a recomendar, continuo aberto a novas oportunidades.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Conferência de Copenhaga - a versão de 1898

“Em 1898, representantes de todo o mundo reuniram-se em Nova Iorque para a primeira conferência internacional de planeamento urbano. Não foi a habitação, a utilização da terra, o desenvolvimento económico ou as infra-estruturas que dominaram as discussões. Os participantes estavam desesperados por causa dos cavalos.

Os cavalos não eram uma novidade na vida urbana. Mas no final do século XIX, o problema da poluição com origem nos cavalos atingia níveis sem precedentes. O crescimento do número de cavalos ultrapassava até o rápido crescimento do número de residentes urbanos. As cidades americanas atolavam-se em excremento de cavalo bem como noutros desagradáveis problemas: cheiro a mijo , moscas por todo o lado, engarrafamentos, carcaças abandonadas, acidentes de trânsito, a degradação publica da crueldade contra cavalos.

Em 1894, o jornal Times , de Londres, estimou que por 1950 todas as ruas da cidade estariam sob quase 3 metros de excremento de cavalo. Na cidade de Nova Iorque previa-se que por 1930 o excremento de cavalo alcançariam as janelas do terceiro andar dos prédios de Manhattan. Uma crise de saúde pública e de salubridade de dimensões impensáveis parecia inevitável.Não se vislumbrava qualquer solução. De facto, o cavalo tinha sido o meio de transporte dominante nos últimos séculos. Os cavalos eram imprescindíveis para o funcionamento da cidade do século XIX: para o transporte pessoal, para o transporte de mercadorias e até para força mecânica. Sem cavalos, as cidades definhariam.Todos os esforços para mitigar o problema revelavam-se desadequados. Sentindo-se impotente , a conferência de planeamento urbano declarou infrutíferos os seus trabalhos e acabou ao fim de 3 dias em lugar dos 10 que estavam previstos"

Interessados ? Podem continuar a leitura aqui. Vale a pena.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Decroissance ( II )


Os limites do crescimento e a refundação das bases do capitalismo já ocuparam tanta gente e sobre o tema já se escreveu tanta coisa, que sempre que encaro o assunto não consigo evitar a sensação de perda de tempo. Há dinâmicas que parecem ter vida própria, e já dei por mim a questionar-me se nesses casos não faríamos melhor se nos chegássemos para o lado para as deixar fazer o seu caminho.

Quem já meteu ombros à recuperação de antigas casas de família, percebe melhor do que estou a falar. Os edifícios antigos têm características concretas de construção que não se podem contornar. Qualquer renovação com vista a um uso diferente do original tem de obedecer de algum modo a essa matriz. Posso mudar portas, janelas, soalhos, telhas, rebocos. Mas não posso tirar paredes de travamento e fazer daquilo um open-space.

Passa-se algo do género quando se preconiza que a sociedade capitalista deveria abandonar o imperativo do crescimento económico. Não é que não seja possível pensar uma sociedade que não inscreva no seu projecto económico o crescimento continuo do PIB, possível, é. Mas não como remodelação do edifício capitalista, cuja estrutura não foi desenhada para suportar esse tipo de arranjo.

Seria pois de esperar que quem pretende abandonar os condicionalismos do capitalismo, fundasse ao lado obra nova, isto é, que fosse dando corpo a um novo paradigma. Mas não. Então, de tempos a tempos , acontece o que é normal nos edifícios antigos. Aparece alguém para retocar os estuques e pintar de fresco paredes velhas. Eventualmente aproveita e muda também a decoração, mas é tudo.

Foi o que aconteceu quando há cerca de vinte anitos uma dona de casa norueguesa, daquelas matriarcas capazes de qualquer coisa para manter a harmonia no lar , tirou da caçarola uma ideia peregrina de contornos imprecisos que teve na sua vacuidade ideológica o principal atractivo e por isso se tornou rapidamente consensual. Chamou-lhe "desenvolvimento sustentável". Um género de sopa da pedra, sabe-se que leva pedra, que não é a pedra quem lhe dá substancia, mas é tudo o que se sabe e para muita gente é quanto basta. Percebe-se. A sustentabilidade é o sonho ideal de todos os narcisos, pois ajuda-os na crença de que a juventude e a beleza eternas são possíveis. Como de narcisos todos temos qualquer coisa e como o capitalismo de parvo não tem nada, desde então que passou a servir-nos sustentabilidade a todas as refeições e lucrado com isso. A coisa chegou a pontos de até as famigeradas rotundas serem consideradas “sustentáveis”. Naturalmente os menos narcisos fartaram-se de tanta sustentabilidade e têm procurado variar a ementa discursiva.

Uma das variantes mais recentes baptizou-se de decroissance. É uma corrente anti produtivista e anti consumista que de novo só tem o nome. Preconiza consumir menos, produzir menos, reproduzir menos. Quer dizer, sugere que se retirem as paredes interiores do edifício em que vivemos, mas não explica como segurar o telhado. Ora a sociedade capitalista implode se lhe tiram o ai Jesus do consuminho, conforme tem sido evidente nos últimos tempos. E como o pessoal já percebeu isso, reage muito mal ás lógicas de decroissance. Dos ricos, que não querem deixar de o ser, aos pobres, que não entendem por que terão de continuar pobres, passando pelos remediados, que, finalmente, estavam quase, quase, a ser ricos, o decroissance constitui uma das raras matérias que conta com a oposição unânime de quase toda a gente. Portanto, não admira que até ver não haja quem faça a mínima ideia de como ir por diante com semelhante propósito.

Tim Jackson tentou desatar essa nozada. Retomou a ideia de sustentabilidade para tentar demonstrar que ela se pode realizar sem crescimento económico, mas a ideia sai mal misturada, tipo azeite e água. Nada de original até aqui. Já outros o tinham tentado. A originalidade do TJ é que tenta marcar os golos em falta metendo a bola pelo lado de trás da baliza, tentando demonstrar que é possível conjugar crescimentos zero ou negativos com prosperidade . Mas aí, a meu ver, espalhou-se !

A verdade é que o discurso de TJ é redondo, e o livro lê-se bastante bem. Em termos de conteúdos, é uma espécie de salada mista de Relatório Meadows com Convivencialidade. Falta-lhe é qualquer coisa que ligue aquilo, qualquer coisa como uma teoria convincente apoiada numa alternativa clara ao conceito clássico de “prosperidade”, e este um dos seus pontos mais fracos.

Para fazer vingar a sua tese, TJ recorre à etimologia da palavra, e recorda que prosperidade quer dizer de acordo com a expectativa. Assim é. Mas as expectativas de prosperidade globalizadas e em uso estão plasmadas nos modelos de bem-estar dos ocidentais de sucesso. Ignorar isso torna qualquer reflexão politica mero exercício académico, e TJ cai nessa esparrela. A ideia que se tem da prosperidade não é a que TJ gostava que fosse, é a que é, e só num cenário de prosperidade generalizada tal qual é entendida, é que as sociedades poderiam eventualmente estar disponíveis para aceitar discutir cenários de crescimento zero. As próprias sociedades de referência são elas próprias um terreno fértil em fragilidades estruturais que TJ faz de conta que ignora, como a dependência energética. Talvez tivesse sido por isso que TJ evita qualquer proposta de transição no sentido do crescimento zero para as instituições e para os sistemas que funcionam dentro da lógica do capitalismo vigente. Na verdade, mesmo desprezando prováveis alterações nos custos da energia, ninguém sabe como fazer a transição das modernas economias de bem-estar fundadas no crescimento económico e na energia barata para essa impossibilidade prática de conciliar uma economia próspera com um crescimento zero, ou negativo.

Essa critica necessária às teorias económicas vigentes, fica pelo acessório no trabalho de TJ. Ele não se detém sobre o detalhe de que as teorias que suportam as politicas de crescimento económico foram desenvolvidas sob pressupostos artificias. Esses pressupostos estavam perfeitamente claros na mente de muitos dos seus autores, mas são têm-se revelado perfeitamente nebulosos para a generalidade dos economistas. São poucos os que reconhecem que as teorias de crescimento económico funcionam apenas porque os modelos matemáticos em que se apoiam são verdadeiros. Nas academias a ortodoxia impera e são ainda menos os que se aventuram a desbravar a noção de que os bens cuja produção, transacção e consumo se estuda, não são abstracções matemáticas. Os modelos de Walras e respectivos sucedâneos, aplicam-se a bens monetarizáveis, comercializáveis e reproduzíveis, quer dizer, a abstracções, pois os combustíveis fósseis, solos, metais, nutrientes, necessários para os reproduzir, não são eles mesmos reproduzíveis, não são renováveis. Walras percebia isso. Quem lhe usa os modelos acha que não precisa de perceber isso, e portanto atreveu-se na aventura da globalização sem ter antes percebido que a economia no fundo produziu teorias e modelos para um mundo físico ideal que não existe. Os economistas deixaram-se aprisionar nessa ficção de que as economias são desmaterializáveis. Depois, renderam-se ao presente, e mostram-se incapazes de se libertar das grilhetas da instrumentalização que inventaram para o descrever. TJ não foge à regra. Neste livro agora publicado terá feito o que pôde, mas sabe a pouco.



domingo, 19 de setembro de 2010

Uma Pocilga no Rossio




“… o post não é sobre quem está mal mude-se, é sobre as pessoas que querendo desenvolver uma actividade económica num sítio onde legalmente não podem (por exemplo, instalar uma pocilga no Rossio), usam esse facto para tentar obter vantagens em vez de fazer uma de duas opções: ou adaptar a sua actividade económica ao enquadramento legal existente; ou mudar para onde seja possível o desenvolvimento do que querem fazer da vida.”

Henrique Pereira dos Santos






O uso do argumento da “legalidade” para justificar um qualquer status quo, é uma das mais estafadas falácias de autoridade. A “legalidade” não é necessariamente boa, não é imutável, nem preexiste desde os princípios dos tempos. A legalidade é simplesmente a tentativa de circunstância de adaptar as regras ao tempo em nome de duma ideia de bem comum.

Outra falácia, desta vez de falso dilema, é usar o argumento do bem comum como se se tratasse de um único caminho, oposto ao do mal comum. Tal como o mal também o bem tem vários caminhos possíveis . Mas nenhum deles corresponde a um conceito com uma objectividade intemporal inquestionável que abarque simultaneamente o bem de todos e de cada um. O bem comum é apenas a narrativa que num determinado contexto social e politico reúne o consenso com poder bastante para impor a sua visão das coisas.

Ainda assim o processo politico para alcançar o bem comum raramente é linear. Mesmo quando o objectivo de bem comum venha a ser plenamente alcançado, isso não quer dizer que todos tenham sido beneficiados de igual modo e que nunca existam vitimas de percurso.

Um dos pilares da nossa ordenação social é a propriedade privada. Não comento se é um pilar bom ou mau, constato que existe. Facto. O valor da propriedade, como a terra, é determinado por factores objectivos e subjectivos, ou seja, pelo valor de uso e eventualmente por mais qualquer coisa eventualmente fortuita, como a vista de mar . Mudanças nas regras de uso do território, implicam mudanças nos processos pré-existentes de valoração da propriedade e por conseguinte afectam inevitavelmente a vida dos terratenentes. Uma barragem que transforme terras de sequeiro em regadio vai valorizá-las duplamente - potencia a produtividade, a rentabilidade, e consequentemente aumenta o valor de mercado. Do mesmo modo, uma regra de ordenamento impeditiva da construção excepto onde ela já exista, valoriza o pré-edificado. E valoriza-o duplamente se a regra se impõe em relação a um território onde a apetência para a edificação já existia. Facto. Se o meu sonho é construir uma casa de férias com vista de mar, é absolutamente diferente adquirir para o efeito um lote de terreno com vista de mar mas integrado numa urbanização, ou um prédio misto isolado numa AP do litoral . Obvio que neste caso tenho a manutenção da vista razoavelmente garantida, enquanto no primeiro estou dependente das particularidades dos projectos circundantes. E, claro, tudo isto se reflecte nos preços.

Para constatar que as coisas funcionam assim, não é preciso um estudo académico. Basta uma consulta ao cardápio da REMAX. Não foi por acaso que o preço médio do ha de sequeiro em Ferreira do Alentejo saltou seis degraus logo que se começaram a construir os adutores ao Alqueva.Como também não é por acaso que a REMAX não promove prédios rústicos no Portinho da Arrábida ou na Costa Vicentina. Dou de barato que a transposição de correlações para casualidades nem sempre é tão fácil. Mas não sejamos ingénuos. Qualquer intervenção sobre o território em contexto de propriedade privada da terra, é tudo o que se queira menos neutra. Altera os equilíbrios anteriores, produz mudança, e nas margens do processo acorrem beneficiados e prejudicados concretos. Seja o traçado de uma estrada ou a localização de um aeroporto, um perímetro de rega ou uma AP, qualquer dessas intervenções sobre o território constituem mudanças com impactos sobre a situação anterior. Será inevitável. O que não é inevitável é que se remeta esse tipo de fenómenos para a categoria dos azares do destino, como seria cair-me um raio em cima.

Posto isto passemos à magna questão da pocilga no Rossio, tentando comparar o que é comparável.

A possibilidade de construir pocilgas no Rossio está fora de questão há muito. Por isso a ideia só poderia ocorrer a um ET ou ao equivalente terráqueo capaz de qualquer coisa para aparecer no telejornal das 20. Para as pessoas normais, o simples enunciado dessa possibilidade numa discussão séria resume-se ao que é: um fait-divers pouco imaginativo inserido numa tipica falácia de derrapagem.

De facto a hipótese colocada nada tem a ver com o caso do rústico a quem de um dia para o outro informam que vai deixar de poder criar porcos e de fazer mais uma série de coisas onde sempre o tinha feito. Bem, os tempos mudam e as regras mudam. Muitas vezes essas mudanças são decidas por todos menos por aqueles a quem vão afectar diariamente, mas tudo bem, deixemos isso para outra discussão. Para esta, o ponto é que o gajo é casmurro e teima em querer continuar a viver ali mesmo depois de lhe terem inviabilizado o modo de vida a que estava habituado. Sugerir a este tipo concreto que se adapte ou então que se mude, terá que ter uma ponderação diferente de idêntica sugestão feita ao verde-urbano em fuga ao stress citadino que resolveu mudar-se para o sitio já na vigência das novas regras mas que não gosta de algumas delas. Além disso, ainda em relação aos que já lá estavam, mesmo dando de barato a bondade da sugestão, importa perceber que nem todos os criadores de porcos a quem as novas regras vieram mudar a vida têm as mesmas condições para realizar a adaptação ou a mudança sugeridas. Deu-se a circunstância de que uns tantos tinham construído uma pocilgas de taipa em vez de simplesmente deixarem as porcas parirem a campo. Ora como quem proibiu a criação de porcos não proibiu a reconversão das ditas pocilgas em versões várias de romantismo rústico para veraneio urbano, houve ex-suinicultores a quem saiu literalmente a lotaria, enquanto os outros ficaram agarrados ao cajado. Ou seja, enquanto os primeiros se quiserem podem abrir uma pizzaria no Rossio e mudar de vida por cima, aos restantes que também se queiram mudar resta-lhes oferecerem-se para empregados de limpeza da dita, mudando de vida por baixo.

As áreas protegidas não integrarão regulamentação que em si mesma se possa considerar mais ou menos promotora de desigualdades que outra regulamentação qualquer sobre o uso do território. Dou isso de barato. Mas as AP’s não foram classificadas ao acaso. Elas estabeleceram-se em contextos geográficos concretos cuja mais valia paisagística já existia e foi reconhecida. Além disso aconteceram num contexto de prosperidade económica concreto, propenso à valorização e à aquisição das “ultimas jóias”. Ou seja, a “promoção da desigualdade” não terá sido uma intensão ou um processo especifico das AP’s, mas não deixa por isso de ter sido particularmente acentuado nas suas áreas de influência, dadas as circunstancias concretas em que elas evoluíram.

É a esta situação concreta que me referia na resposta em que disse que as pessoas não se adaptam ou mudam como querem, mas como podem. Nada mais que isso. Sugerir o contrário é apenas um dislate infeliz a que nenhum de nós está imune.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Decroissance


- Bom dia , Maria da luz !
- Alucinas ?! Achas que vou ter um bom dia sabendo o camarada Arnaldo Matos nos calabouços do COPCON ?!
- Mas não tinha sido libertado ontem ?...
- Mas foi preso outra vez por esses lacaios revisionistas a soldo do imperialismo soviético!
E lá seguia, brusca, azul, desenvolta, guerreira, linda. Uma tentação. Mas, com o espírito assoberbado por uma militância compulsiva na ala mais radical do MRPP, chegar à fala com ela era o cabo dos trabalhos.
- Maria da Luz, queres ir beber um cafézinho ?
- Esse hábito burguês que ignora a exploração do proletariado campesino pobre pelos grandes interesses do capitalismo agrário ianque ? Nem pensar !
- Não, Maria da Luz…este é do Nabeiro…vem de Espanha….de contrabando
…- Mas nem assim! E era uma pena. Ela bem tentava disfarçar a generosidade com que a natureza a tinha prendado. Usava uns trapos que eram o que de mais parecido devia haver com a indumentária dos guardas vermelhos. Mas perante aquela fluidez no andar nem a provecta idade do Mao ficaria indiferente. Acho que não houve adolescente daquele liceu a quem a Maria da Luz não tivesse povoado pelo menos uma insónia. Só que, a cores e ao vivo, népia, não havia registo do esboço de um sorriso que fosse, quanto mais do resto. Delicada como porcelana, Maria da Luz tinha pior feitio que o muro de Berlim e a muralha da China juntos, era duplamente intransponível. De modo que já me tinha conformado a alinhar no batalhão dos desistentes. Até que naquela manhã de Abril tudo mudou, como se fosse uma perestroika antecipada .

O “trinta cabelinhos” tinha pedido para depois da Páscoa um ensaio crítico sobre qualquer coisa. Como o tema era livre eu resolvi escolher a crítica à escola. Não foi uma escolha tão criativa quanto possam estar a pensar, confesso. Na verdade o que sucedeu é que fui procurar a nova edição do Asterix à Casa Inglesa, ali ao Largo do Dique, e junto à caixa estava aquele livrinho em francês que me chamou a atenção: “ Une societé sans ecole”. Dei uma vista rápida, estava cheio de ideias giras, achei óptimo, tipo papa feita, de modo que comprei, li em diagonal, traduzi, adaptei, resumi, e quando chegou a minha vez subi ao palanque e proclamei:

"A escola parece estar destinada a ser a igreja universal de nossa cultura em decadência."

Habitualmente alheada lá nos refundos da sala daquele mundo burguês que a enfastiava de morte, a Maria da Luz levantou os olhos. E á medida que eu prossegui debitando Illich ela começou a sorrir. Como era motivador aquele sorriso! De modo que redobrei na convicção, embora admirado por ainda haver prosa de pendor revolucionária desconhecida da Maria da Luz, que dominava de cima a baixo toda a retórica marxista-leninista, e respectivos anexos. Só mais tarde vim a saber que ela não lia estrangeiro. Ora Illich não estava traduzido. Sorte a minha. Não convenci o “trinta” com o plágio, mas a Maria da Luz foi sentar-se ao meu lado logo ao segundo tempo, na aula de biologia, dando inicio a um intimidade que durou tanto quanto o permitiu a obra publicada do austríaco, ou seja, até ao fim do ano lectivo.

Durante esse período, garanto que o Illich foi a única coisa que estudei. Tudo o resto, desde a matemática ao inglês, reproduzi de ouvido. Sobrecarregada pelos imperativos revolucionários, que não lhe deixavam tempo para mais nada, a Maria da Luz tinha acumulado um apetite voraz, e os meus desassete anitos só conseguiam dar conta do recado graças aos extensos intervalos que as discussões sobre o pensamento do Illich proporcionavam. Desde então criei uma dupla gratidão para toda a vida. Ao austríaco, por me ter facultado a senha de acesso a um jardim espectacular que de outra forma nunca teria visitado, e à dona do jardim, graças a quem li o Illich com um fervor que nunca mais dediquei a nenhum autor.

Como tudo na vida tem consequências, também esta experiencia deixou mazelas. Fiquei com enorme dificuldade em ler ou ouvir determinado tipo de criticas ao capitalista liberal e respectivas variantes sem perder a compostura, desmancho-me a rir. É que, dos ecologistas aos verdes, dos sustentáveis aos decrescentes, há quatro décadas que todos se atarefam em seguir-me as pisadas quando preparei a tal apresentação para filosofia: plagiam descaradamente o Iliich. No entanto duvido que o Tim Jackson, por exemplo, o tenha feito para merecer um sorriso da Maria da Luz, embora na verdade eu nunca mais tenha sabido dela. Depois das férias, quando voltei da campanha da cavala, ainda lhe telefonei. Eu ia mudar de poiso, ela possivelmente também e, sabia-se lá ?, podia ser que houvesse interesse na manutenção de certas pontes.
- Olá Maria da Luz !
- Olá. Diz .
- Olha, queres ir comer um sorvete à Praia da Rocha ?
- És parvo ? Sabes em que condições trabalham os operários das multinacionais que monopolizam a industria burguesa de lacticínios ? –
Abalroado, ainda manobrei de emergência na tentativa de mudar de bordo rapidamente.
- Olha, sabes, estive a ler uns textos interessantes ?
- De quem ?
- Henri Lefebvre…
- Já conheço. Não tem interesse. Adeus !
– E desligou ! Até hoje. Espero que ainda ande em busca de autores revolucionários desconhecidos capazes de lhe soltar aquele sorriso fantástico. Antes isso que ter descambado no ultra liberalismo do Durão ou no ressabiamento persecutório do Pacheco, ou da Morgado. Quanto ao Ivan Illich, encontrei-o por mero acaso uns anos depois, quem diria ! Ele dava uma conferência na velha Penn e eu andava perto de Filadélfia. Foi quando, 1988 ? Talvez, não interessa. O Possinger conhecia-o, soube do programa, convidou-me e lá fomos. No final apresentou-nos e eu aproveitei para agradecer-lhe - « Thank you ! ». O Illich correspondeu com um sorriso, deve ter ficado a pensar que tinha a ver com a palestra, mas estava enganado. O Jackson não sei se o conheceu pessoalmente, mas que diabo, bem que lhe podia ter-lhe deixado um " thank you" póstumo na nota de abertura desta pseudo-novidade que dá pelo titulo de "Prosperity without growth", pois lá por dentro o livro tresanda a razões para isso. E lá iremos.

domingo, 5 de setembro de 2010

Há Pobres e pobres ...

O basófia do Almerindo era daquele tipo de pessoa que todos os dias tinha uma razão de queixa qualquer. Ou doía-lhe as costas, ou tinha uma vaca doente, que chovia, que fazia sol, enfim, qualquer coisa era uma boa razão para clamar, barafustar. Naquela tarde domingueira deu-lhe para embirrar com os ricos, que eram uns palhaços, uns filhos da tal senhora e de um senhor com dores de testa crónicas, e mais isto, e também aquilo, e que o mundo havia de ser sempre a mesma merda, com os ricos de um lado e os pobres do outro.

Chagado a este ponto, o velho Rocha resolveu cortar-lhe o monólogo com um pergunta atirada lá do seu poiso habitual na ponta do balcão do café do Zé David , onde costumava inteirar-se do estado do mundo.

- Atão tu na gostavas de ser rique ?
- Omessa, Mestre Rocha ! Quem é que na gostava de ser rique ? !
- Atão já tás a ver como tavas a dizer disparates?…
- Por mom de quê , Mestre Rocha?!
– O velho Rocha dignou-se desencostar-se do balcão, endireitou as espáduas, virou-se, e rematou daquela forma indefensável que deixava em pânico quem quer que fosse que estivesse à baliza:
- Tá bom de ver que o mundo na se divide nada entre riques e pobres, criatura ! O mundo divide-se entre os que já são riques e os que na são mas querem ser, come é o té case !

Lembrei-me deste episódio a propósito de um grupo de pessoas genuínas e bem intencionadas que partilha na blogosfera o sonho de acabar com a pobreza . É um sonho bonito, simpático, daqueles que geram adesões espontâneas de todos os genes altruístas por mais recessivos que sejam. Por isso a abordagem critica deste sonho é uma tarefa antipática. Tenho-a adiado por isso mesmo. Mas como a minha intenção não é destruir o sonho, apenas questionar a utopia, aqui vai o meu contributo.

Pode-se definir a pobreza sem definir a riqueza ?Talvez não ! Onde não há termo de comparação a pobreza, isto é, viver com pouco, é a condição normal. No entanto, como a distribuição histórica dos bens raramente tem sido equitativa, o estado “normal” das sociedades é que coexistam uns poucos que têm muito e uns muitos que têm pouco . Mas basta isso para tipificar a pobreza ? Talvez não baste. Pode-se viver bem com pouco e mal com muito. È mais saudável ser magro ou obeso ? A resposta basta para ilustrar o meu ponto, que é a dificuldade de estabelecer uma grelha quantitativa, generalista, que enquadre a pobreza. Percebe-se isso nas várias tentativas de sistematização, como a deste post. A modernidade de consumo e abundância sente-se na necessidade de redefinir as fronteiras da pobreza porque as expectativas mudaram. Ser pobre deixou de ser tipificado pela capacidade de resolver as necessidades básicas, já não basta dizer que é viver com pouco, tem de se dizer também o que se entende por pouco. Quando há uns tempos um governo qualquer resolveu aumentar o abono de família em não seis quantos cêntimos, não faltaram os beneficiários disponíveis para declarar aos telejornais que isso “nem para as fraldas” dava. Quer dizer, ser pobre já não é andar de cu ao léu ou de camisas remendadas, mas não ter orçamento para fraldas descartáveis, pois as outras, as que se lavavam todos os dias, são vistas como…não sei como, sei que já ninguém as usa, nem ricos nem pobres.

Portanto, procura-se actualizar e incluir novas dimensões no conceito de pobreza. Mas a tentativa comete o pecadilho das fraldas: define as necessidades de acordo com um paradigma cujas fronteiras descolaram da utilidade das coisas e remete para o Estado abstracto a responsabilidade que é de todos e de cada um - fazer pela vida.

A moderna luta contra a pobreza tem por objectivo a equidade universal na abundância. Ainda que relativa, é de distribuir a abundância que se trata. A adquirida e a por adquirir. Cá por casa, o próprio PCP não se inibe de incluir o crescimento do PIB no seu discurso. Percebeu que o que há não basta para satisfazer as suas reivindicações de mais de tudo para os do costume e alinha com os outros na necessidade, não só de melhorar a distribuição, mas também de aumentar a riqueza. Mas esta riqueza que se infere tem pés de barro. Ela avalia-se segundo critérios monetários transitórios e obtém-se com soluções intensivas de aprovisionamento energético cuja durabilidade não está assegurada. Ou seja, a abundância que consideramos possível mas mal distribuída, não é real nem está garantida.

Quem gosta de angariar aderentes aos seus discursos incorporando na retórica as possibilidades de redistribuição do património concentrado nas mãos dos ricos, tende a esquecer que essa solução já foi ensaiada e que se saiba raramente correu bem. Entre nós o ultimo ensaio aconteceu no pós-74, por exemplo. Quem esteve atento percebeu que o património dos ricos só vale o que se apregoa quando há outros ricos para o comprar, mas o pessoal já se esqueceu disso. Quer dizer, não se vai longe redistribuindo fortunas. Coisas como iates nem para ir à pesca servem. E para os trocar por patacos, pois ou sobram ricos que paguem o que se convencionou que aquilo vale ou então não vale nada porque não serve para nada. Não se trata de pactuar com a amoralidade na obtenção ou na concentração da riqueza. Mas de reflectir que os luxos que pontuam na avaliação das fortunas são sobretudo coisas assim, inutilidades que criam a ilusão de prosperidade onde ela não existe.

Por outro lado, aquilo a que se convencionou chamar melhoria geral das condições de vida, ou seja, o acréscimo significativo de facilidades que se têm registado nas ultimas décadas na obtenção de bens e serviços, não está ligado ao desenvolvimento de uma capacidade efectiva e duradoura de colheita e distribuição desses bens. Está sim ligado a soluções de aprovisionamento e uso de energia que não são racionais nem definitivas. E a paradigmas macroeconómicos que semeiam dependências disfarçadas sob roupagens surrealistas de interdependências globais.

Quer dizer, abordar a questão da pobreza pelo lado da distribuição, talvez seja curto. Curto porque dá como adquirido o que se julga disponível sem cuidar de perceber se essa disponibilidade é real ou aparente, duradoura ou transitória, necessária, supérflua ou, simplesmente, inútil. Esta estreiteza de vistas pode ter a ver com outro género de pobreza essa sim deveras complicada, que é a cultural. A memória de saber viver no território que suportou a civilização que herdamos, tem vindo a degradar-se . Os arautos da mundividência criticam o provincianismo. Mas os Almerindos da pós modernidade já não são apenas ignorantes que querem ser ricos, são ignorantes letrados, impressionistas da vida. Eles sabem papaguear os problemas da fome em África, mas não são capazes de cultivar uma batata no quintal lá de casa. Ou seja, tal como certos luxos, têm mero valor decorativo, não servem para mais nada . E isso é pior que a pobreza, é uma miséria, porque revela falta de sabedoria para dar bom uso ao que se tem, seja pouco ou seja muito.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Teoria dos Erros

Tranquilos ! Não se segue nenhum prato pesado sobre filosofia da matemática. O tempo vai quente e as refeições querem-se leves. Portanto, vamos a uma recensão de lugares comuns sob a égide do erro.

Em comentários ao post anterior falou-se da dificuldade em assumirmos os erros. E eu fiquei a matutar sobre o que é isso dos erros. Pode dar-se o caso de usarmos o conceito de erro de formas perfeitamente abusivas. São muitas as expressões que incorporamos nos nossos raciocínios e nos nossos discursos sem nos darmos ao incómodo de nos determos sobre o seu significado. Sobram as ideias que adquirimos automaticamente. Esse pragmatismo é necessário mas pode redundar em leituras simplistas das coisas, e o conceito de erro é daqueles que se presta a isso.

Raramente separamos a noção de erro de um absoluto omnisciente, como se houvesse uma clarividência transcendente para aceder a tudo o que não se conhece ou ainda não aconteceu. No entanto o erro define-se em relação a uma convenção ou a uma norma, que são coisas mais que terrenas, elas mesmas sujeitas a erro. Daí que seria prudente não separar a ideia de certo ou errado da nossa inteligência das coisas e das limitações que estão sempre associadas a esses processos. A nossa compreensão do mundo e de nós mesmos, é apenas a que é possível. E o erro, mais que uma consequência de uma compreensão imperfeita ou de uma prática incorrecta, é um ingrediente da vida.

Eventualmente, viver-se-ia melhor aprendendo a incorporar os erros nos nossos processos que procurando evitá-los. É que os erros que se cometem na vida não são do mesmo tipo de erro grosseiro que se pode cometer num procedimento químico sobejamente conhecido. Se as mulheres fossem água e os homens ácido sulfúrico, só cometia erros de diluição quem quisesse. O protocolo de diluição do ácido sulfúrico está bem estabelecido. Recomenda que se deve adicionar sempre o ácido à agua e lentamente. Inúmeras experiencias realizadas já demonstraram à saciedade que o contrário explode aquela merda toda nas trombas do criativo. Mas como as pessoas não têm as propriedades químicas e a previsibilidade do comportamento dos ácidos e das bases, é frequente que das respectivas misturas resultem reacções imprevistas. Talvez seja essa a chave para a compreensão da diversidade da vida. Mas temos o mau hábito de valorizar as experiencias bem sucedidas sem reflectir que por cada sucesso alcançado se cometeram carradas de erros. E esquecendo que para empreender pelo desconhecido é preciso algum atrevimento. O atrevimento é o motor da mudança. E o erro é inerente aos processos de quem se atreve.

Portanto, quem é que errou ? A Felismina, que ainda não percebeu qual o papel do sonho na vida? Errou a vida que tem o hábito de se apresentar como um sonho ? Ou errei eu, que já na altura tinha a mania de que o que não calamos é o que melhor nos define ? Errou a minha parceira de deambulações pelas estradas toscanas por só me ter dito que era casada muitos dias depois daquele primeiro abraço que nos demos numa ruela de Orino? Ou errei eu, que acho que não tenho nada a ver com isso ? Se tivesse sabido que ela era casada, que devia eu ter feito ? Fugia, para prevenir posteriores acusações de responsabilidade num processo de divórcio ? Ou pedia uma batina emprestada ao vigário de serviço e assumia-me como paladino do mandamento segundo o qual não posso cobiçar nem perlimpimpar a mulher do próximo, mesmo que ela obviamente me cobice e me queira perlimpimpar a mim e eu não tenha das mulheres o conceito de propriedade do próximo nem conheça o gajo de lado nenhum ?

Assumir os erros ? Sim, mas desde que não se atribua aos erros uma importância que não têm. Sobreavaliados, os erros fazem dos medos cobardias paralisantes, alimentando a crença insana de que a vida é um projecto que é possível executar com a perfeição dos santos. A procura da perfeição é legitima. Mas só me parece saudável se tivermos claro que é duma utopia que se trata. Quem não percebe isso faz da vida uma contrição permanente. Por mim, basta-me colher o que semeio e não fugir da merda que faço. Limpo a que posso, meto o resto na compostagem e é com isso que fertilizo a horta onde irão germinar com todas as imperfeições inevitáveis os dias que ainda estão para me acontecer. Mesmo sabendo que errei, só me arrependo do que não vivi. Quer dizer, prefiro os atrevidos, mesmo que revelem dificuldades em se assumir. Lamento é os idealistas que se deixam aprisionar pelo que “podia ter sido se….”. Esses, como a Felismina, fazem-me pena, pois disfarçam a falta de rasgo numa espécie de masoquismo penitente que é imagem de marca de todas as malfadadas “vitimas do destino”.