quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Sol e Sal

Há quem afirme o Ocidente como fruto civilizacional do Cristianismo. Será . Mas que não se menospreze na ideologia que o Ocidente é também fruto do Mediterrâneo, que de resto deu muitos outros frutos e por isso há quem lhe chame "berço de civilizações".

No contexto da geografia global, o espaço mediterrânico tem características únicas que, na era pré-industrial, constituíram aquilo a que os economistas actuais chamariam de "vantagens comparativas substanciais": um mar interior sem grandes problemas de navegabilidade a permitir comunicações fáceis numa vasta área geográfica e, mais importante, um clima único.

O clima dito mediterrânico é um subtipo dos climas temperados com quatro estações bem marcadas, bastante bem tolerado pelos humanos, mas é um clima raro. Além da bacia mediterrânica, só ocorre na Califórnia, no sul da África do Sul, numa pequena faixa no sul da Austrália, e tem por particularidade que a estação quente é seca !

Qual a importância deste detalhe na história ?

A história do Ocidente é antes de mais uma história de sucesso no controlo das técnicas agrícolas, com particular relevo para o controlo da produção de cereais, particularmente do trigo, que foi durante séculos o grande pilar da dieta alimentar dos povos do mediterrâneo.

Ora a produção de trigo na era pré-industrial tinha um problema, a saber, a secagem do grão a seguir à colheita, para que pudesse ser armazenado em boas condições de conservação. Após a ceifa, as searas eram convertidas em molhos, estes arrumados em roleiros nas eiras onde terminavam o processo de secagem e aguardavam a debulha e a alimpa antes de o grão seguir bem seco para armazém.

Se neste processo, entre a maturação do grão no campo ( Maio ) e o armazenamento ( Julho/ Agosto) chove, arruína-se uma boa colheita, que era o que acontecia com espantosa facilidade nos campos da Europa do Norte onde, apesar dos solos mais férteis e de produtividades muito mais elevadas, eram mais que muitos os anos em que não se aproveitava um grão . Exactamente o que aconteceu nos anos anteriores à Revolução Francesa, fazendo grassar a fome e o descontentamento popular que potenciaram a revolta.

Além do trigo, o clima mediterrânico é ideal para a conservação por secagem de outros produtos tipicamente mediterrânicos de elevado valor alimentar: figo e amêndoa, fava e ervilha. Permite ainda a conservação por secagem do peixe ( abundante ) e da carne. E, the last but not the least, a produção de sal marinho, um produto que se vende por si e ainda ajuda a vender muitos outros por si conservados. Tudo técnicas que o Ocidente incorporou directamente dos povos mediterrânicos , nomeadamente dos Árabes, outra civilização do Mediterrânio.

A importância do Mediterrâneo na história agrícola da Europa só se começou a diluir depois das descobertas, com a chegada do arroz da Indochina e do milho e da batata da América. Curiosamente, depois de ter feito prosperar a Europa do Norte, a batata quase a arruinou, quando em meados do século xix o míldio da batateira provocou a que ficaria conhecida como a grande “fome da batata” e obrigou à emigração em peso de milhões de irlandeses,holandeses, dinamarqueses, entre outros, e potenciou a colonização da América.
Para a História ficou a história da fome da batata, pela escala inusitada. E depois disso a História da Europa re-escreveu-se sob a batuta dos países que melhor proveito retiraram dos colonialismos pós-descobertas e da industrialização. Sobre o fiel amigo Mediterrâneo que com o seu clima generoso sempre correspondeu ao que dele se pediu, qual autêntico burro de carga de mais que uma civilização, pouco se diz, talvez porque nunca falhou !

Demagogia em Revista


A demagogia é uma arte. Sim, uma arte. É uma arte porque a capacidade de apreender os elementos identitários da sensibilidade popular e sobre eles organizar um discurso que reduza as questões a que se refere aos seus menores denominadores comuns, não é para quem quer, mas para quem pode e para isso se preparou – o artista da palavra.

O exercício da demagogia na politica está tradicionalmente associado a objectivos escusos. É o que se diz e admito que seja assim. Mas tenho sérias dúvidas que o mesmo suceda na cidadania, onde se ouvem e se lêem excelentes demagogos francamente convictos da bondade das suas razões e portanto sem quaisquer razões escusas.

Só que estes são piores que os outros, e tentarei explicar porquê.

Enquanto o demagogo profissional ( chamemos-lhe assim, e existe em várias versões e especialidades, e não apenas na politica ) tem por fragilidade a própria falácia das suas intenções, que quando descobertas o desmascaram ,a versão demagógica do cidadão bem intencionado é genuína e por isso verosímil, o que a torna muito mais difícil de anular porque se suporta numa adesão emocional cimentada numa virtude insuspeita e sem mácula.

Como além de emocional é ingénuo ou preguiçoso, e por isso não se dá ao trabalho de estudar ou de compreender o outro lado da aparência das questões sobre as quais opina, o cidadão demagogo é um presa vulnerável e muito apetecida pelo demagogo profissional.

Os voluntarismos de vária ordem que se dedicam de alma e coração a causas várias ( e escuso-me aos exemplos para não ferir susceptibilidades sem necessidade ), são deste tipo de demagogias bons exemplos quando por essa via derivam para um discurso que remete para o Estado a responsabilidade por desordens cuja real origem está no foro privado ou por qualquer outra razão fora do controlo imediato do estado, como é por exemplo o caso do exercício da cidadania ou do exercício competente da função pública . O mesmo tipo de situação pode ocorrer em relação a um sem número de questões do quotidiano, quando cidadãos bem informados e com créditos na praça, opinam de forma apressada sobre estudos ou estatísticas cuja concepção e respectiva metodologia não conhecem.

Como estes discursos são facilmente sintonizáveis, isto é, suscitam uma adesão sem reservas da opinião pública na medida em que propõem a divisão do mundo em “dois” e a oposição entre “nós” ( vitima de qualquer coisa facilmente identificável ) a “eles” ( tirano abstracto ou personificado ) , rapidamente as demagogias profissionais lhes disponibilizam caixas de ressonância, dando-lhes por exemplo honras de prime-time no telejornal que controlam.

As derivas demagógicas correntes tendem para a fragmentação da opinião em questões menores de fait-divers. Mas mantêm sempre incólume a capacidade de num momento qualquer a demagogia clássica capitalizar o descontentamento difuso que assim se gera para o canalizar a favor dos seus desígnios. Em sistemas democráticos os actos eleitorais constituem o culminar natural destas tensões e ao mesmo tempo a oportunidade da sua catarse. Mas em certas situações dificilmente previsíveis, a demagogia tem levado o poder para a rua. Quando tal acontece, entra em funcionamento a outra face da mesma moeda demagógica: as subsequentes reivindicações de ordem que abrem caminho ao exercício autocrático do poder.

Tem sido deste tipo de parto que têm nascido alguns dos fascismos da história, mesmo que alguns deles apareçam vestidos de roupagens “democráticas”.

Os fascismos ( mesmo os de indução democrática, porque os houve e há ) têm por traço identitário o controlo autocrático do poder com o fito de defesa intransigente de valores insistentemente reivindicados, sejam do tipo corporativo ou outros que a sociedade facilmente consensualiza ( segurança,p.e. ), e historicamente decorrem com naturalidade de dinâmicas de permanente reivindicação de "mais estado" na esfera pública da cidadania, de onde acaba por derivar com igual naturalidade para situações indesejáveis de "mais estado" na própria esfera privada do individuo.

Dos antídotos ensaiados, parecem resultar os que conseguem reforçar e credibilizar as instituições do poder democrático através de uma cidadania participante, informada, activa e descomplexada em todos os níveis da sociedade e do exercício do poder. Naturalmente, esta via é mais trabalhosa que o exercicio da demagogia.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Desabafo



Uma amiga minha que é uma activa Bibliotecária, conseguiu há algumas semanas a difícil proeza de contar com a participação do escritor L Antunes em pessoa para a apresentação do seu último trabalho a um clube de leitura que ela organizou. Para os membros do clube, maioritariamente pessoas de formação média e superior, o desafio era também o de conseguirem formular meia dúzia de questões sobre a obra que não fossem as habituais idiotices de certos meios jornalísticos, tipo “deu-lhe muito trabalho escrever este livro ?”. Claro que para o fazerem tinham que ler a obra e foi aqui que a coisa se complicou. Ao fim de três semanas a bater com as cabeças nas fragas e chegados à semana do evento, vá de se reunir o clube em intermináveis serões diários para ver se em conjunto conseguiam romper o cerco de uma linguagem que dizem ser inexpugnável e entrar na lura do Lobo!

Recorro a esta história para defender a tese de que em termos estritamente literários o recurso a linguagens densas é um direito inalienável de quem escreve, cuja valia os leitores se encarregarão de sancionar. Mas tenho para mim que nas ciências em geral é um dever escrever claro. Não apenas porque o que é impenetrável deixa as portas abertas a formas porventura simplistas ou demagógicas de explicar o Mundo ao comum mortal ( tipo “desenho inteligente”). Mas também porque não me parece que cientista ou filósofo tenham legitimidade para reivindicar apenas ao seu mérito o nível de conhecimentos que atingiram e nessa medida julgo de elementar justiça que retribuam esse investimento social neles feito devolvendo à sociedade trabalho utilizável.

Mas quando escrevi “utilizável” não me estava a referir a colectâneas de receitas da D. Maria de Lurdes Modesto, com todo o respeito que me merece o trabalho da Senhora. É que a questão do pensamento conceptual, isto é, a tentativa de ler e entender o mundo a partir de postulados e conceitos que nos dêem uma aproximação estruturada à vida e às diferentes problemáticas associadas ao seu exercício quotidiano, não me parece que careça de uma refundação sistemática da gramática e da sintaxe ! Do mesmo modo , para não nos limitarmos a pastar placidamente todos os dias e assumirmos de facto a diferenciação que enfaticamente reclamamos em relação a qualquer simpático ruminante, teremos que ter da vida noções de orgânica e sentido que não se limitem à permanente reivindicação de mais erva ou de erva mais suculenta na manejadora.
Importa pois que se adquira um ferramental linguístico e conceptual mínimos, porque teremos de convir que a partir de certa altura deixa de fazer sentido definir “proteína” em cada referência que lhe seja feita. Mas, já agora, quem hoje diz “proteína” para se referir a um composto de azoto estrutural nos seres vivos, amanhã que não nos fale de “edifício de aminoácidos seguros por ligações pépticas” para dizer a mesmíssima coisa, a menos que tal seja absolutamente indispensável e então devidamente justificado. De modo semelhante, quem hoje nos demonstra a importância da estruturação e dimensão da amostragem para dessa técnica estatistica inferir com reduzida probabilidade de erro um comportamento ou característica de uma população, que faça o obséquio de não usar no dia seguinte meia dúzia de crânios de hominídeos separados entre si por larguíssimos milhares de anos, para deles inferir a evolução do Sapiens!

Quero com isto dizer que se é verdade que a ciência e a filosofia devem descer à terra, também não faz mal nenhum à “terra” facilitar as coisas subindo um pouco a encosta, ainda que haja casos em que se justifica uma via de comunicação paralela, que é a do divulgador, também dito cidadão bem informado, nem sempre professor, raramente mestre, espécie de intermediário que tem de entender os dois lados para muitas vezes fazer a ponte entre dois tipos diferentes de autismo que frequentemente colocam o trabalho de divulgação sob fogo cruzado. De um lado a ciência ou a filosofia puras, classistas. Do outro a ignorância dura, igualmente classista. Duas formas de saloiice provinciana que se potenciam. Tão saloia é uma como provinciana a outra. A última porque quer o peixe logo em filete e nem lhe passa pela cabeça aprender a pescar. A primeira quando considera que não é possível alguém aprender a pescar sem que antes seja capaz de se referir à estrutura atómica do nylon, conhecer de cima a baixo a cadeia trófica da plataforma continental marinha, e ainda de fazer as respectivas revisões bibliográficas comentadas nos termos regimentais e em inglês! E no meio quem quer ensinar a aprender, entre palpos de aranha!

Habituado a votar vencido em júris que aplaudem teses sem uma única virgula original apenas porque são capazes de papaguear as sebentas assinaladas de acordo com os cânones em voga num certo academismo bacoco, enquanto remetem para revisão as raríssimas que se estruturam em sentido oposto, desgasto-me em declarações de voto onde tento dizer que terá que haver um momento em que as ideias que temos das coisas terão de se plasmar como a síntese possível do que sobre elas fomos capazes de apreender. Esta arenga é ressaca de mais uma delas. O conhecimento não avança por mera inércia da continua recombinação de ideias mantidas fragmentadas em compartimentos estanques, trancadas por detrás de linguagens blindadas que, por mais extensa e bem recomendada que seja a bibliografia em que se apoiam, muitas vezes têm na inacessibilidade a sua única originalidade. Não avança se se limitar a repetir-se em mero exercício de recombinatória linguística . Como também não avança se uma aluna de mestrado que gosta muito de ler Lobo Antunes porque o escritor “ tem olhos azuis”, ruboriza ao ouvir falar de “epistémico” porque julga que é um calão obsceno para alguma particularidade anatómica!

sábado, 26 de janeiro de 2008

Rojões ou Feijões ?



Circula na blogosfera uma “irredutível gaulesa” cuja susceptibilidade me conquistou a simpatia. Dona de uma prosa contundente, ela afiança que deve a sua boa forma verbal e física ( ainda só testemunhei a primeira, mas não duvido da segunda... ) a bons hábitos ecológicos e entre eles a uma “poção mágica vegetariana”. E ai de quem dela desdiga! Ainda há dias uma revolucionária assimilada o tentou e foi o que se sabe, mas adiante, porque não é exactamente esta opção de regime alimentar que me motiva a arenga, mas a sua vertente ecológica. Isto é, o argumentário que defende a racionalidade ecológica dos regimes alimentares do tipo vegetariano.

Além dos argumentos éticos e de saúde, há na opção vegetariana um terceiro argumento que se baseia numa tese simples e que salvo melhor enunciado eu resumiria no seguinte: não faz sentido o consumo de derivados pecuários produzidos com produtos que nós próprios metabolizamos. Argumento irrefutável. Assim é, de facto.

Um porco industrial à idade de abate ( seis meses e 80 kg de peso vivo ), consumiu o equivalente às necessidades energéticas de dois humanos adultos num ano inteiro !Pior: consumiu cereais, alimentos que nós também somos capazes de metabolizar. E não se trata de mera troca de uma fonte de energia por outra , tipo cereais por carne, porque enquanto fez essa conversão o porco usou para finalidades diversas e dissipou parte substancial da energia que consumiu. Exemplos semelhantes podem ser utilizados em relação aos investimentos em energia alimentar directa na produção de leite ou de carne de bovinos, ovinos ou caprinos, tal como em relação aos ovos ou carne de aves .

Mas importa não cair em generalizações e concluir que é esta a natureza da coisa pecuária. Não é . No período pós revolução industrial, os processos industriais generalizaram-se e chegaram à agricultura e à pecuária. A produção de manteiga passou a ser uma linha de montagem em tudo semelhante à do modelo T da Ford. Com a diferença de que introduz forragem e cereais de um lado e sai pacote de manteiga do outro, estando algures no meio uma vaca, o que até é uma chatice e por isso já teria sido descartada e enviada para peça de museu se a ciência e técnica tivessem resolvido o mistério da síntese artificial do leite.

Ora neste processo o estatuto da vaca alterou-se dramaticamente. Deixou de fazer parte de um sistema orgânico sofisticado e complexo que era o mundo rural onde o lugar da vaca não era exactamente na manjedoura das histórias infantis. Além de ser capaz de ganhar o seu sustento produzindo trabalho ( tracção animal ) a vaca tinha ( tem ) a capacidade de transformar em proteína e gordura metabolizáveis pelos humanos ( leite, queijo, vitelo ) alimentos celulósicos ( palhas e fenos ) que nós não digerimos, e como se isso não bastasse produzia quantidades significativas ( razão do volume corporal ) de um fertilizante natural já quase desconhecido que respondia pelo nome de estrume ou esterco, coisa que antes dos adubos industrias era a “mãe” de todas as batatas agora cognominadas biológicas. Nesta vivência de complementaridades activas, a vaca, aqui dita como sintese da pecuária na agricultura, não só era cooperante como não era concorrente, além de que possibilitava que se prescindisse do frigorifico e de abrir buracos ao ozono para ter o leite fresco todos os dias ! Era ir ao estábulo, negociar a teta entre coices dela e palavrões nossos e três rabadas depois, já estava.

Estas interacções que hoje soam a rusticidade bacoca, são contudo produto de longa maturação cultural. São sólidos processos de consolidação de sustentabilidades que algumas ingenuidades filosóficas têm por mau hábito remeter para o cesto de uma praxis de segunda ordem, e por isso descartáveis nas reflexões sobre as experiências civilizacionais como em relação às opções alimentares. No entanto a ruralidade não é uma vivência datada, mas uma convivência de proximidade necessária com o suporte de vida. E nesse sentido necessita ser permanentemente repensada, revisitada e refundada. Marchar contra as vacas mecanizadas e as porcas e galinhas enjauladas? Sem dúvida ! São infelizes e é estúpido, não é saudável e estamos a investir no negócio o dobro da energia que dele retiramos. Mas se se quiser promover uma melhoria significativa da alimentação no sentido do seu progresso para uma lógica mais natural e um modo de vida mais sustentável , a pecuária é essencial na reestruturação , refundação e manutenção do imprescindível espaço rural , e nessa qualidade tem que ser valorizada na fileira alimentar.


Feijões ? Com certeza! Mas, ocasionalmente, porque não uns rojões, se até contribuem para os necessários equilíbrios que nos permitirão continuar a produzir os feijões ?

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

New York, New York...

A reflexão sobre o ordenamento do território é algo mais que um mero exercício de literatura fracturante para produzir posicionamentos contra uma matriz urbana ou em prol de uma matriz orgânica.

Tudo o que implique pensar o futuro num horizonte temporal que transcenda as próximas férias no Haiti, obriga a uma justificação e a um projecto. Para justificação serve a noção generalizada de que não se vive no melhor dos mundos. Ao projecto pede-se um paradigma, uma filosofia, algo que nos dê uma meta, que nos proponha “o quê” . Ao politico pede-se que leve o projecto à prática, que estabeleça “como e quando”. Mas para concretizar o projecto a sociedade precisa de “onde e com o quê”!

Em economia abstracta, os postulados e as análises têm sido engendrados de tal forma que as explicações para o funcionamento da máquina económica são apresentadas independentemente das coordenadas espaciais, sem quaisquer preocupações de explorar as realidades dum ponto de vista dimensional. Isto mesmo nos casos em que essa exploração podia ser relativamente imediata. Funções e propensões económicas são interpretadas e apresentadas como grandezas não localizadas. Os mercados e as empresas são analisados sem preocupação da sua localização e da sua dimensão. Mesmo as relações económicas internacionais neste tempo de globalizações são conduzidas a partir de postulados de imobilidade externa dos factores de produção e de mobilidade externa dos produtos e interna dos factores, umas e outras supostas perfeitas. Na própria teoria da concorrência monopolista o espaço é apenas apontado como um dos factores justificadores da diferenciação dos produtos. Uma deriva que levou vários autores a lamentar o que designariam por “enviesamento anglo-saxónico”, que privilegiou as variáveis preço e tempo na abordagem económica, negligenciado completamente a variável espaço , como se tudo na economia pudesse limitar-se a um ponto.

O menosprezo pelo factor localização deve-se a uma razão bastante simples: petróleo ! Foi o aperfeiçoamento técnico da utilização desta fonte de elevada intensidade energética e o seu baixo preço politico que permitiram aos economistas confiar na eficácia e sofisticação de um sistema de transportes cada vez mais complexo para pensar a economia desprezando a variável localização.

Nessa lógica monetarista apoiam-se todas as economias ditas de escala, das globais às locais. É ela que aconselha o fecho de centros de saúde ou de escolas com pouca afluência, porque fica “mais barato”transportar os doentes ou os estudantes. Mas a lógica monetarista e a lógica energética são conflituais. A primeira troca petróleo por comida; a segunda reconhece que o petróleo não se come , e vai alertando para o facto de a produção de alimentos que hoje mata a fome a quem dela nunca sofreu, assentar exactamente na troca directa de petróleo por comida.

Explico: o trigo que o Canadá produz e Portugal compra, é semeado, fertilizado, colhido, secado, transportado e processado a petróleo. Assim mesmo. O que quer dizer que qualquer alteração drástica no preço do petróleo pode fazer com que toda esta dinâmica transatlântica fique comprometida. Razão dupla: toda a cadeia do pão ( produção, transporte e tarnsformação do trigo) muito mais cara e muito menos com que o pagar ( nenhum turismo, p.e.).

É perante um cenário deste tipo, de ruptura súbita de um complexo sistema económico assente na incontornável logística de transporte tal como a conhecemos, perfeitamente plausível, que as politicas de ordenamento do território que entretanto se tenham ou não consolidado farão toda a diferença. Uma lógica orgânica do espaço assente em aglomerados urbanos de média dimensão do tipo cidade( até 100.00 habitantes ) reajusta-se ao território envolvente. Mas uma matriz urbana do tipo metropolitano não tem essa elasticidade. No seu processo de crescimento degradou irreversivelmente o potencial de utilização primário do espaço em que se insere ( não tem onde, nem com o quê ), o que só aumentará a sua dependência de fluxos exteriores inviáveis nesse cenário logístico, ao mesmo tempo que irá amplificar todo o tipo de des-regulações em toda a sua esfera de influência. Esta a grande fragilidade do conceito de metrópole, e ponderosa razão de desafio à sociedade que se reivindica do conhecimento para que o repense e resolva com sabedoria.

Nota: Seguindo um hábito antigo uso "petróleo" como genérico para recursos energéticos de origem fóssil e não renováveis.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A Cidade e as Serras ( revisitação ...)


É tida como expoente e símbolo da complexidade e do génio humano, ponto de cruzamento de uma imensa rede de trocas e comunicações, arena onde se confrontam as leis da economia e da ecologia. No entanto foi da terra que nasceu. Espécie de grande aldeia que se instalou em localização de excepcional fertilidade. Fertilidade devida à dinâmica dos grandes rios que construíram imensos aluviões periodicamente reabastecidos de nutrientes pelos Deuses das Cheias hoje malditas. Foi aí, com a agricultura , técnica aperfeiçoada de “domesticação”da energia solar, que os cereais produziram os excedentes que o Sol, de novo e sempre o Sol, secou e secos se armazenaram como reserva da energia que permitiu à grande aldeia crescer e enquanto crescia ser ponto de encontro de culturas, catalisadora e difusora da inovação técnica e social. Uma lógica e uma história de cinco mil anos datados no crescente fértil da Mesopotâmia, no Vale do Nilo, no delta do Rio Amarelo, sempre nos grandes rios. Uma relação interdependente entre Terra, Água, Sol e engenho humano que o tempo pouco alterou – a cidade.

Depois, a empresa. Forma organizada de gerir a acumulação de riqueza trocando por moeda produtos ou serviços no mercado dos bens. E na cidade há consumo de bens. Cidade e empresa potenciaram-se. E em sucessivos e recíprocos reajustamentos, das condições particulares de trabalho e de mercado que elas próprias criaram, cidade e empresa deram origem a novos condicionalismos, modos de vida e aspirações. Mas foi a revolução industrial que veio fazer a diferença e descolar o conceito cidade de uma relação intima com a terra próxima, quando se instalou e requereu fluxos permanentes de mão de obra . A indústria e o seu comércio acrescentam-se à cidade , moldaram-na e refundaram-na, individualizando-a, já que cada cidade escolheu o seu próprio percurso de adaptação a esta nova realidade para alojar e suprir as necessidades dos seus novos súbditos.

Ano 2000 e 80% ( talvez mais ) da população mundial vivendo e trabalhando em aglomerados com mais de 100.000 habitantes. A facilidade trazida pelos novos meios de comunicação potenciou o efeito autocatalictico característico dos grandes aglomerados e a cidade deu lugar à metrópole.

Ao contrário da cidade, elemento estruturante do território onde se insere porque dele dependente, a metrópole semeia desertos em seu redor porque se estruturou sobre uma lógica económica de fluxos e comunicações alheios a distâncias. Um aglomerado de um milhão de habitantes “sorve” diariamente duas mil toneladas de alimentos, quatro mil toneladas de combustíveis e seiscentas mil toneladas de água, independentemente da origem das fontes. Paris, consome 30% do petróleo usado em França, 20% do carvão, 50% do gás e ainda 15 % da electricidade de outras fontes, enquanto 25% da produção agrícola do país desaparecem todos os dias para lhe matar a fome. E a outra face da moeda deste metabolismo insaciável são os produtos rejeitados. Algo como meio milhão de toneladas de águas residuais, duas mil toneladas de resíduos e mil toneladas de poluentes atmosféricos, por milhão de habitantes.

Mas a imparável vertigem de crescimento, algo quase “orgânico”, é ao mesmo tempo a enorme fragilidade da metrópole, pois não é auto-produtora. Depende, tal como as cidades, de fontes externas de alimentos, ar, água, energia. Porém, na voragem expansionista, as metrópoles usaram e inutilizaram o suporte que as originou enquanto ainda cidades. Nos celeiros de Lisboa , a cintura de solos basálticos profundos, fertilíssimos, que se estendia para Poente e Norte até às Serras de Sintra e dos Candeeiros, construíram-se as periferias, e não há regresso desta dinâmica cujos efeitos apenas a agricultura industrial e a ilusória capacidade ilimitada de transportes intercontinentais tem conseguido adiar.

No ocidente dito desenvolvido, as metrópoles protagonizaram um reordenamento do espaço do tipo tentacular, em que os grandes aglomerados se espraiam pelo território como enormes cefalópodes que se tocam pelas extremidades dos respectivos tentáculos. Porém, as auto-estradas são mais que vias de comunicação, são canais de drenagem entre dois pontos. Nos espaços entre esses canais que drenaram de gente o mundo rural, decorre uma produção de géneros agrícolas do tipo empresarial que tanto pode dedicar-se a oleaginosas para combustível como a alimentos de primeira necessidade. A dicotomia cidade / campo deu pois lugar a uma variante de tonalidades monocromáticas de vida metropolitana, que impõe o seu ritmo, estabelece a agenda dos acontecimentos que se discutem no café da impropriamente dita província e até da própria vida doméstica, pois até o jantar no interior serrano passou a estar alinhado com o telejornal das vinte para não interferir com a inevitável telenovela das vinte e trinta , onde os estereótipos são urbanos e os não urbanos caricaturas de má qualidade! Até a famigerada previsão meteorológica alinha pela metrópole, cujo conceito de “bom tempo” se impôs segundo critérios de ausência de chuva e temperaturas amenas, mesmo quando as barragens estão à mingua, as searas a definhar e o gado a morrer!

- Viste o tempo para amanhã?
- Vi..
- E então …chove ?
- Não ! Deram bom tempo !...

Só a absoluta diluição dessa tradicional dicotomia na forma de pensar o meio em que se vive, pode justificar este tipo de diálogo hoje recorrente entre dois resistentes agrícolas desesperados por chuva ! É esta impressionante máquina de comunicar, dotada de vida própria, catalisadora da pluralidade e diversidade das escolhas, que, ao mesmo tempo que cativa e acultura, submerge, sufoca e isola o homem que vive na sua órbita num género novo de alienação em que a vida se concebe destituída das suas elementares dependências. Nessa medida e ao contrário da sua antecessora, a cidade, a metrópole não complementa um sistema – esgota-o !

domingo, 20 de janeiro de 2008

O Regresso às Hortas



Não existe em toda a montanha terra tão desgraçada e tão negra como Saudel! Aquilo não são casas, nem lá mora gente, são tocas, com bichos dentro!

Estou convencido de que a ideia que muitos ilustres urbanos fazem das aldeias e vilas do interior e da vida que lá se vive, não andará muito longe daquela descrição de Saudel que nos deixou o saudoso Torga. Claro que também poderiam recordar alguns contrapontos de brancuras caiadas do Alentejo Profundo por onde se demoraram as penas de Namora ou Fonseca. Mas é evidente que a primeira leitura tem um valor heurístico reforçado quando se trata de contrariar certas teses de repovoamento de um interioridade desertificada. Usa-se para caricaturar a ideia o magnifico epíteto irónico de “regresso às hortas”, e pensa-se em esgotos a drenar para as ruas, vacas a dormir por debaixo dos quartos, e coisas que tais, como se a ruralidade que se concebe fosse ainda o universo pasmado no tempo de que nos dá conta a literatura de meados do século passado.

Não é bem assim.

Desde logo porque não se regressa ao passado. E depois porque mesmo que esse regresso fosse possível, o homem que hoje regressasse não seria mais o mesmo que de lá saiu há 50 anos, mas um homem deste tempo. Ora o homem deste tempo leva consigo outras referências e como tal outra cultura, cuja deslocação no espaço só pode ter como resultado a remodelação do meio onde se iria exprimir, antes de o próprio meio a remodelar a ela e desse reencontro surgir uma ruralidade nova. Em boa parte isso já existe. Disso mesmo se poderia ter apercebido quem gosta de nos comparar com certos países do norte da Europa. Mas em Portugal nem tanto, porque como qualquer novo rico que se preze estamos ainda sob o efeito de um género de provincianismo invertido.

Admito no entanto, que seja mais do que isso. Ao hiato da história da nossa ruralidade, corresponde um hiato de linguagem, cuja especificidade rural carece de actualização e já não pode ser caracterizada segundo as premissas da sociologia rural de Hoyois, tão frequentes no discurso datado de António Barreto. Como percepcionamos o mundo pela forma como o dizemos e não temos linguagem para a ruralidade possível no nosso tempo, não a concebemos senão nas acepções mais ou menos lúdicas que derivam de um fim de semana em “turismo rural, onde se experienciam vivências entre o snob e o bacoco, interagindo sem nexo com o desconhecido, numa sólida convicção de que a vida é possível sem uma ligação à terra.

Deve ter sido esta falta de linguagem especifica que nos actualize perante uma nova ruralidade possível, que deixou sem argumentos um Padre amigo de um Blogger que muito prezo e que há dias me comentou que durante uma discussão em redor desta temática, o amigo começara por advogar o regresso às hortas como caminho do futuro mas acabara por o deixar cair perante a tese de que se trataria de um retrocesso histórico.

Se essa conversa tivesse ocorrido esta tarde e esse Senhor Padre me tivesse ligado para o telemóvel, além de lhe ter dito o que antes expus, teria interrompido a sementeira dos alhos ( que já ocorre com atraso, pois em Janeiro o alho quer-se ponteiro e eles que nem ainda bico- de- pardal…) e pedia-lhe para voltar a ligar dentro de 15 minutos. O suficiente para dar uma corrida a casa, aceder à net, sacar o link para dois ou três sites sobre as vantagens das economias da pequena escala, procurar nas prateleiras pelo menos a Convivencialidade do Illich e o Small is Beautifull do Schumaker, retirar-lhes as referências , passar no scanner uns artigos que por aí tenho sobre ordenamento rural na Europa do Norte, e enviar-lhe tudo por e.mail . Fosse caso disso, e na suposição de que a conversa decorria no Porto, até poderia entregar-lhos em mão pela hora do jantar e dar o meu contributo pessoal na argumentação ! Tudo isto apesar de viver paredes meias com uma aldeia do interior serrano algarvio, a 8 km de uma vila e a 20 de uma cidade, e onde há 30 anos habitavam 112 pessoas e hoje só restam três e meia ( o António Luis só conta por meia gente…)!

O caso é que quem circular por este deserto interior que ainda dá pelo nome de Portugal e que se distraia por momentos das linhas do novo modelo da BMW que vai à frente, talvez repare que não há casa abandonada que não tenha plantados à porta poste de madeira da PT e poste de betão da REN, bem como a estrada para lá chegar. Ou seja …há tudo, menos gente !

Mas não é dos montes ou das aldeias que quero falar . É das vilas e das cidades do interior onde também há tudo, menos gente. E diz-se que não há gente porque não há actividade económica. É verdade. Mas a explicação talvez seja outra. Nos dias que correm e com a tecnologia e os sistemas de comunicação disponíveis, o factor de localização de uma série de actividades passou a ser completamente irrelevante. Por isso mesmo há aqui dois anos, uma empresa internacional de pesquisa farmacêutica destituída dessa obsessão pela beira-mar que afecta a lusitanidade, resolveu instalar-se numa cidadezinha do interior Alentejano. Mas, contrariamente ao que pretendia, não conseguiu recrutar investigadores nacionais, desses mesmo que passam a vida a queixar-se de falta de empregos compatíveis em Portugal. Apesar de ter encarregue uma empresa de recursos humanos portuguesa do recrutamento, esta teve de recorrer ao mercado internacional, de onde logo surgiram os candidatos para as vagas que os nacionais recusavam quando sabiam onde seria o local de trabalho.

Portanto, não são apenas de ordenamento económico as razões da desertificação do interior português. Elas passam também pelas nossas opções de vida e de consumo. De consumo?! Sim, de consumo ! Porque no momento da compra de uma cebola, como de um par de sapatos ou de qualquer artigo de vestuário, não nos é relevante se foram produzidos em Portalegre ou em Pequim ! Mas logo a seguir acusa-se o governo que estiver de serviço por nada fazer pela economia do interior, quando no telejornal passa a noticia de mais uma têxtil fechada. Assim é de facto mais fácil , além de que dá imenso jeito para fundamentar a "impossibilidade histórica do regresso às hortas “! E por agora chega, que ainda tenho o resto dos alhos para semear ....

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Qual é o Problema ?!


Em vários sectores da intervenção politica e social o vocábulo "problema" é constantemente chamado ao serviço !
Que os problemas não são todos iguais é uma verdade da La Palice. Menos claro é que o bom resultado da acção política dependa de uma correcta identificação dos problemas sobre os quais se pretende agir. Porquê ? Porque eles não se resolvem agindo sobre as suas consequências, mas sobre as causas que os originam.

No entanto, na hora dessa identificação , as confusões do costume tomam conta do raciocínio e é a balbúrdia habitual, com causas, problemas e suas consequências dentro do mesmo saco de gatos. Sem se identificar o alvo, é normal que se falhe o tiro!

Vejamos se conseguimos deslindar este enredo.

A acepção de "problema" há muito extravasou a noção de algo difícil de explicar ou resolver. Assumiu também a ideia de obstáculo ou contrariedade no percurso para um objectivo. Mas não um obstáculo qualquer , tipo acidente na A1 com engarrafamento , que é uma chatice e nos atrasa mas não passa disso. "Problema" sugere então algo como um “obstáculo complexo”, isto é, em que vários factores interagem produzindo efeitos que por sua vez dão origem a novos obstáculos, num ciclo de reacção negativa .

Em relação ao ambiente, a acepção de "problema" precisa antes de mais de uma escala de referência. É que questões como erosão, alterações do clima, aparecimento ou desaparecimento de espécies, ilhas, mares ou até continentes, são componentes da ordem natural das coisas à escala do tempo geológico e têm os impactos que se conhecem – novos mundos no mesmo mundo !

Fiquemos então pela conceptualização do tempo à escala do homem para a ele restringir a noção de "problema ambiental".

O ambiente em que o homem vive é ele mesmo noção do conjunto das interacções entre os factores bióticos ( seres vivos ) , abióticos ( não vivos ) e culturais, contexto de dinâmicas conflituais permanentes que se ajustam e reajustam a cada instante. Nesta acepção, "problema ambiental" será o factor ou factores susceptíveis de induzir dinâmicas cujos impactos sobre os nichos ecológicos da espécie humana coloque em causa a sua perenidade !

Alguns deles têm causas naturais. Exemplos: vulcanismo e tectónica ( problema ) provocam alterações duradouras nos locais onde ocorrem ( impacto); epidemias associadas a mutações de agentes patogénicos ( problema ) podem levar á extinção de certas espécies e alterar a relação de forças no meio onde existimos ( impacto).

Mas há casos em que os problemas ambientais são de indução humana e vamos concentrar-nos nestes com a ajuda de um exemplo.

A poluição do ar numa grande metrópole é um problema ambiental ? Diria que não.

O problema ambiental neste exemplo é o nosso conceito de cidade, a forma como o materializamos ( escala ) e o vivemos ( subsistemas complexos de energia, habitação, transportes, água, esgotos, em relações de intermináveis interdependências ) através das quais se potenciam as reacções negativas associadas às grandes concentrações populacionais.

A causa deste problema ( conceito de cidade – metrópole ) é o paradigma de vida urbana que interiorizamos , valorizamos, e nos leva a preferir viver em grandes cidades.

A poluição do ar aparece pois como mera consequência( impacto ) de mau desempenho de alguns dos muitos subsistemas necessários ao funcionamento do nosso conceito de cidade e, claro, será depois ela própria causa de outros eventuais problemas - de saúde pública, p.e..

Poderia pois dizer-se que do ponto de vista da ecologia humana e do ambiente, o único problema ambiental de facto, é a má atitude do homem moderno na sua interacção com o meio. Essa atitude é causada pelo paradigma de felicidade e bem estar que nos move culturalmente. Ela assenta numa percepção distinta do Mundo, em que como espécie nos dissociamos ( alienamos ) pela via da especialização do trabalho, da divisão de tarefas e do concentracionismo urbano, duma relação directa com as dinâmicas essenciais da subsistência. E dela ( atitude ) decorrem acções ( formas de vida – habitação, transportes, alimentação,… ) cujas metodologias e escala têm como consequência impactos importantes, alguns eventualmente irreversíveis no horizonte do nosso tempo ( inutilização de solos agrícolas, poluição marítima por metais pesados, p.e.).

A agir, é pois sobre o paradigma( causa ) para assim se modificar a atitude( problema ), porque as consequências( poluição, p.e. ) mais não podem que ser minoradas – as grandes concentrações de espécies nunca têm impactos inócuos e qualquer medida para tentar minorá-los será sempre um paliativo.

Como agir ( no caso deste exemplo )?

Regressando a concepções culturais ( educação) que ponham a tónica no comunitário em detrimento do individual ( paradigma ), de forma a predispor os indivíduos a modificar a sua própria utopia ( atitude ) e implementando modelos de ordenamento que privilegiem a pequena e média escala, onde os impactos das concentrações humanas ( poluição , p.e.) se diluem naturalmente.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O R da Recusa


A tradicional divisão do mundo entre ricos e pobres tem sido ao longo da história alvo de investidas periódicas.



No período pós revolução industrial e durante boa parte do século passado, os movimentos sindicais desempenharam papel de relevo nesse confronto. Olhando em retrospectiva para essas lutas, há muito quem delas retire sinais de vitória do sindicalismo e argumente sobre a sua capacidade de mudar o Mundo. Legítima leitura. Mas o que se passou também pode ser visto sob outro prisma, o da infinita capacidade que o capitalismo revela para assimilar a seu favor dinâmicas que lhe sejam contrárias.



Ao constituir as massas como destinatárias preferenciais da sua própria produção e mantendo o controlo do paradigma que elas perseguem, através do marketing e da educação, o capitalismo criou a sociedade de consumo e tornou o cidadão comum refém das suas próprias reivindicações. De forma competente, a publicidade tem gerido as coisas de tal modo que transformou os conceitos de necessidade e de utilidade social, que deixaram de reportar para a realização do básico e passaram a exprimir a aquisição ou o reforço de um determinado status de sucesso através do supérfluo, mesmo que seja made in China e de imitação. Não será por isso de estranhar que a vanguarda do sindicalismo se tenha acomodado, deixando de parte as velhas reivindicações feitas de vontades de mudança e solidariedades internacionais, para se concentrar na defesa ou no reforço corporativo das comodidades burguesas entretanto adquiridas.



Ora as preocupações ambientais que têm vindo a ganhar notoriedade nos últimos anos, não têm na sua origem os mesmos grupos nem as mesmas lógicas sociais que dinamizaram os movimentos sindicais. Elas proliferam entre comunidades de um outro género que tiveram acesso a outro tipo de escolaridade e de informação e que, além disso, têm resolvidas as questões básicas da subsistência e por isso surgem com um caderno reivindicativo vocacionado para a discussão da vertente qualitativa da sociedade da abundância em que cresceram e existimos.



A estratégia reivindicativa também se alterou, e em lugar da greve pura e dura em que se acabava a dar fogo às portas da casa para acender o fogão e fazer a sopa de meia - batata do dia, o activismo ambiental dá preferência à acção simbólica. Pagamos uma quota à Greenpeace, eles atravessam uns botes entre as baleias de bossa e os baleeiros japoneses nos mares do Antárctico, e nós aplaudimos em casa. Ou seja, delegamos. Assim não fosse e já se teria dado pelos efeitos de uma arma de luta social pelo ambiente mais poderosa que qualquer greve operária do passado – a recusa ao consumo.



De resto, a ideia não tem nada de inédito. No mínimo remonta a Ghandi e à recusa dos indianos ao uso dos têxteis do País de Gales. Como é evidente, o contexto e os objectivos eram outros. O colonialismo não se afirmava por uma estratégia de consumo e a desobediência civil de Ghandi tinha contra si a lógica e o exército da administração colonial, mas ainda não tinha este exército psicológico que mina por dentro as motivações - o marketing pró-consumista. É ele quem nos inculca uma interminável lista de consumos “inevitáveis” sem os quais se tem por adquirido que não se subsiste.



Esta ideia de “inevitabilidades” que circula por dentro de uma certa atitude neo-verde, é de resto bem consolidada pelos média “amigos do ambiente”. Em Maio passado, por exemplo, um dos nossos semanários de referência resolveu “compensar” com plantações de pinheirinhos na Tapada de Mafra as emissões de CO2 “inevitáveis” que decorriam da publicação do jornal. E entre elas a do saquinho plástico e a dos intermináveis encartes publicitários a cores, tudo coisas que ninguém recusa.



Logo, por maioria de “razões”, são também “inevitáveis” e não se recusam, as embalagens de tara perdida de todo o género de refrigerantes ou de bebidas alcoólicas em formato individual, as garrafinhas de água das caldas, de Actimel, de leitinho achocolatado, de iogurte de vida longa, as doses individuais de massas pré-cozinhadas que é só meter no micro-ondas (ele próprio supra-sumo do “inevitável”) e já está, todas as embalagens individuais dos “couverts” da restauração, as gangas rotas de origem (jamais as rotas pelo uso, que pindérico…), os bifes embalados a vácuo, o grão e o feijão pré-cozinhados em magníficos frascos de vidro para deitar fora, as gangas “corsárias”(jamais cortar dois palmos às gangas rotas da época passada, que possidónio…), os aditivos anti-estáticos para os limpa pára-brisas, o detergente que cheira a rosas, a limão, a flores silvestres, e o que lava mais macio, e mais branco, e mais rosa, para não falar do dia dos namorados, ou das crianças, ou dos pais, das mães, e de todos os incontáveis exemplos desta interminável ditadura pró-consumista!



Por conseguinte, o primeiro dos três R’s, o de reduzir, sendo essencialmente um incentivo à recusa de pactuar com as dinâmicas irracionais da sociedade do consumo, é o último na hora das decisões.


Esta contradição terá a ver, digo eu, com o facto de a generalidade dos problemas identificados como ambientais serem latentes e não sentidos. Isto é, contrariamente aos salários de fome que determinaram boa parte dos grandes movimentos sindicais, os problemas ambientais referem-se a um panorama que a maioria dos ocidentais, independentemente do seu nível de informação, não sofre! Pelo contrário, beneficiam em comodidades com os consumos que estão associados a esses problemas!E sentem como problema, isso sim, a marginalidade que a sociedade da aparência impõe quando não se corresponde às expectativas do status. Assim, a maioria de nós tende a desvalorizar a importância dos comportamentos individuais concretos, deixando o exercicio da recusa para prática de minorias que acabam por encontrar nessa atitude uma espécie de exotismo identitário.


quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O R do Meio


Reutilizar é uma ideia que aplicada à gestão de recursos tem um significado algo mais vasto que “usar outra vez”. Ela incorpora uma certa noção da possibilidade de um determinado bem ser usado várias vezes (durabilidade). Nesta medida, uma alcofa de empreita é mais reutilizável que um saco plástico do supermercado. E a simplificação de que se podem trazer destes para casa em barda porque depois servem para ensacar o lixo, distraiu-se na compreensão de que o R de reutilizar não aparece por mero acaso depois do outro R de reduzir na concepção da estratégia dos três R’s.

Existe uma propensão natural para remeter para unidades monetárias qualquer raciocínio em torno das relações custo/benefício. É dentro dessa lógica que tem vindo a ser formatada a nossa interacção com o mundo da economia. No entanto, como qualquer outra leitura monográfica, também a abordagem economicista do mundo é redutora.

É redutora porque remete a dinâmica da troca e a formação do preço para relações unívocas entre oferta e procura, escamoteia a questão central da repartição de “bens escassos” e com isso deturpa a essência mesma da ideia de administração de recursos limitados que a devia estruturar.

A distinção clássica entre bens de primeira necessidade e os outros diluiu-se. É difícil explicar a quem tem problemas permanentes de excesso de peso que o pão seja um bem de primeira necessidade. Esta é uma iniludível consequência da sociedade da abundância: instalou-se um género de feira popular em que, como dizia Eco, o Carnaval deixou de acontecer uma vez por ano e passou a ser todos os dias, pois só isso explica que o conceito de utilidade se tenha expandido ao ponto de incluir a escova de dentes eléctrica, englobando assim dentro dessa noção de valor o que é descartável! Só estas premissas podem explicar que a velha prática da tara recuperável tenha sido preterida pela perdida, e que a alcofa das compras tenha cedido inexoravelmente terreno à sua versão plástica descartável – o saco-painel de todas as publicidades!

A suposta racionalização logística ou o argumentário higiénico, teses rotinadas na defesa destas lógicas pós-modernas, revelam-se no entanto claramente insuficientes para explicar tudo o que se tem passado neste domínio. No caso das primeira, porque existe uma óbvia e nada inocente confusão entre o que é racionalidade económica e comodismo individual ou mesmo oportunismo empresarial. No caso da segunda, porque se sabe que as técnicas e os métodos de controlo de qualidade actualmente disponíveis, permitem facilmente resolver a reutilização de vasilhame, particularmente do vidro.

A racionalidade económica vigente gere-se em função de custos e benefícios monetários. Mais caro ou mais barato, mais ou menos lucrativo, são estes os critérios. Sustentabilidade, equidade e ética não são variáveis que façam parte de nenhum dos algoritmos conhecidos da modernidade económica. Assim, toda a organização espacial da logística económica se estruturou no sentido de não se reutilizar. E como em tudo, quando certas inércias se instalam, aumenta a dificuldade de lhes inverter o movimento.

Quando há trinta anos o leite que se consumia em Évora era produzido nas explorações leiteiras envolventes, concentrado e tratado na cooperativa de produtores locais, e a distribuição feita em garrafas de vidro modelo “vigor de litro", a recuperação do vasilhame era consequência da própria distribuição e a sua reutilização pacífica. Hoje, o leite produzido em Évora pode muito bem seguir a granel para Sanfins. São 800 km de transporte dos quais metade em vazio (a vinda do camião cisterna). Retorna depois de embalado a uma central de distribuição que pode ficar na Azambuja, antes de ser reenviado para o consumidor final em Bragança. Trata-se de uma logística distinta e o uso de uma embalagem reutilizável implicaria encargos que os agentes envolvidos preferem evitar, mesmo que o seu custo fosse incorporado – como sempre – na preço final do produto ao consumidor.

É pois verdade que estão instaladas certas lógicas de mercado em que o nosso papel como consumidor-reutilizador é difícil. Mas nem em todas. O caso do guarda roupa, do vestir e do calçar, é delas exemplo e dos tramados. Como se sabe, não é o estado de uso que determina nos dias que correm a renovação desses stocks domésticos, mas a moda. Usar o mesmo casaco mais que uma vez por semana é foleiro e usá-lo de uma época para a outra é pindérico. Que fazer para ganhar espaço antes dos saldos de fim de época? Doa-se a organizações especializadas na ajuda a países pobres! E há quem genuinamente dê este exemplo como uma excelente opção de reutilização! Ilustrativo autismo ou simples paliativo de consciência? Tanto faz, porque tem os resultados práticos pretendidos: satisfazer a necessidade de garantir uma renovação de indumentária que não belisque o status! Mas a lógica intrínseca à reutilização não pressupõe duplicar a produção do que ainda tem uso.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

RRR


A ideia surgiu assim. Mas tem sido praticada ao contrário.

Explico-me.

A ideia original para tentar travar a inenarrável produção de resíduos do nosso contentamento apostava na sequência “reduzir – reutilizar - reciclar”. Mas logo houve quem tivesse entendido que a ordem dos R’s era arbitrária e começasse por aplicá-la pelo lado que lhe dava mais jeito. Curiosamente o fenómeno tornou-se epidémico e a generalidade apenas recicla, se tanto.

Segundo as estatísticas especializadas, recicla-se cada vez mais. Outras estatísticas, também especializadas, não dão conta de que se consuma menos - pelo contrário. E claro que para consumir menos não há publicidade – pelo contrário. O que há são universitários que garantem sem pingo de ironia que quem recicle bastante e reutilize qualquer coisa (tipo acender a lareira com o Expresso de sábado) está dispensado de reduzir porque já fez a sua parte - juro que é verdade!

Anedotário à parte, a famigerada questão dos três R’s tem sido na prática reduzida ao último. E por uma putativa razão: reciclar dá dinheiro!

No entanto, o facto de a reciclagem se afirmar como negócio, não devia iludir quem pensa que está a resolver o problema que se propunha. Mas ilude!

Explico-me novamente.

A produção de resíduos não se pode simplificar num problema de tratamento de lixos. É, deveria ser, um problema cuja solução implica melhorar a gestão da lógica que os origina e que consiste na incorporação massiva de desnecessidades no quotidiano dos nossos consumos e na estrutura intrínseca desses consumos. Pior. Desnecessidades que são produzidas com recursos não renováveis, nomeadamente energia de fontes fósseis.

Como em quase tudo o que se passa actualmente no panorama da economia ocidental, os processos industriais querem-se em escala. Grandes unidades onde se concentram grandes meios técnicos reduzem ao indispensável a utilização de mão de obra e interagem em complementaridades a que chamam sinergias. Mas as sinergias entre respeitáveis empresas como a ValorSul e a Sociedade Ponto Verde têm da sustentabilidade uma concepção que se limita aos magníficos efeitos decorativos que o palavrão produz depois de impresso nos respectivos relatórios de gestão. Estas sinergias são financeiras, não são energéticas, e por isso não atacam o cerne do problema!!

Não ?! Então venham daí os custos energéticos associados a cada embalagem reciclada. E sem batota !

É que entre o processo de recolha separada, transportes de baixa densidade de carga, concentrações, triagens, redistribuições para tratamentos especializados e a reciclagem propriamente dita, há custos energéticos que se prefere omitir. Assim, as comparações que se publicam fazem-se entre papel novo e papel reciclado na fábrica, por exemplo. E cria-se o mito de que o papel reciclado (como qualquer outra coisa reciclada) representa uma economia significativa de energia. Não representa. Ele não se recicla sem o input de mais energia. E a economia comparada não é líquida. Mas consegue camuflar o problema de raiz que é a quantidade absurda de papel que se consome!

Apesar de o processo de reciclagem ser inteiramente justificável quando se reporta a recursos não renováveis, como é o caso dos metais, nem por isso ele deixa de se tornar perverso.

É que, criadas as infraestruturas para a reciclagem, mantê-las torna-se um problema de gestão que depende de fluxos continuados de recicláveis. Se não se produzir lixo suficiente, a unidade de reciclagem deixa de ser viável. E são já públicos os casos das que em Portugal já se têm visto obrigadas a importar lixos de países terceiros para evitarem fechar as portas. Elas podem de facto permanecer abertas e encerrar balanço com resultados positivos e impactos ambientais favoráveis. O problema é que o processo que as reciclagens desenvolvem se alimenta do que pretendia resolver, exige elevados inputs energéticos e as fontes permanecem as do costume - não renováveis !

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Entreguem-lhes a Taça !


Ao fenómeno a que alguns gostam de chamar Al-Caeda , eu prefiro chamar conflito civilizacional.Uma visita à História que não seja de mera cortesia, leva facilmente a essa preferência. Existem formas diferentes e antigas de estar no mundo cuja conflitualidade ancestral o colonialismo e depois o neo-colonialismo ocidentais agudizaram. E há vastas zonas de contacto em que feridas nunca saradas de tempos a tempos se exprimem nas reacções historicamente típicas dos que não têm os meios para a guerra formal, e a que se convencionou chamar terrorismo.

Sobre o terrorismo é bom recordar que se trata de uma designação genérica fabulosa. A história está repleta de heróis que ontem eram terroristas. Aparentemente a conversão depende apenas de quem vence a contenda.

E nesta contenda Ocidente –Islão que está em curso, teremos de ser honestos e reconhecer que o adversário leva considerável vantagem.

Senão, vejamos.

Durante os últimos anos eles conseguiram o que em décadas não tinha sido obtido por todos os terrorismos internos juntos, desde a ETA ao IRA, passando pelas Brigadas Vermelhas, e,claro, sem esquecer os terrorismos ditos de libertação das ex-colónias, a saber, a generalização de uma paranóia securitária, ou como se deveria dizer em bom e corrente português, o medo irracional e generalizado típico de todas as cobardias.

Câmaras de vigilância por tudo quanto é canto, escutas telefónicas, países onde só se entra descalço, transportes públicos cuja frequência deve estar prestes a requerer prévia palpação rectal, décadas de multiculturalismo despejadas pelo esgoto das séries americanas de referência, a fobia por barbudos morenos, a disponibilidade para denunciar o barbeiro da esquina que se exprime numa língua que não se entende, e, the last but not the least, o Paris-Dakar, esse ícone da infinita possibilidade do ocidental usar o mundo como e quando bem lhe apetecer, cancelado!

Basicamente recolhemos à torre de menagem em atitude defensiva, fomos postos em sentido e sitiados pelo nosso próprio pavor da morte mediática, completamente desfasados de uma realidade concreta onde se continua a morrer mais de acidentes rodoviários que de tudo o resto.

Perante este panorama, sou levado a concluir que os últimos genes guerreiros do ocidente devem ter-se extinto nos campos de batalha das duas últimas grandes guerras. Reproduziram-se os outros - os medrosos - que para travarem as suas guerras recrutam mercenários. Veja-se a composição da generalidade das forças de interposição da ONU. Veja-se a quantidade de mexicanos ou porto-riquenhos nos exércitos americanos, aliciados pelo bónus de, em caso de sobrevivência, adquirirem o direito de residentes-lava-vidros dos arranha-céus do american-dream.

Portanto, em nome do fair-play, proponha-se uma trégua, convoquem-se os capitães de equipa e o Bush que entregue a taça ao Laden! Esta, já ele ganhou! Vamos à próxima!

sábado, 5 de janeiro de 2008

O Conforto dos Patrícios

Sei por experiência que um dos temas mais agrestes para se abordar é o da energia. Talvez isso se deva ao facto de não materializarmos a sua constante presença nos nossos automatismos quotidianos, ou de o fazermos mas preferirmos não pensar nisso porque ninguém gosta de se pôr em causa.
No entanto, são as trocas de energia e as suas mudanças de estado que mantêm o mundo em movimento. Desde sempre a humanidade tem vivido subordinada à ditadura da energia e têm sido as soluções que as sociedades têm encontrado para a controlarem os verdadeiros motores da história.

É normal que a nossa noção de história se confunda com a dos passados documentados. Por isso a documentação romana sobre métodos e práticas agrícolas é frequentemente referida como a primeira estratégia organizada de controlo da produção da energia pela via da racionalização metódica da agricultura. Hoje sabe-se que eles se limitaram a passar a latim conhecimentos herdados de egípcios e mesopotâmios, entre outros, mas não é esse o meu ponto.

A questão é que muitas vezes caimos na simplificação de atribuir o sucesso de uma civilização a uma ideia e descartamos a forma como ela foi posta em campo. No caso concreto dos romanos é bom recordar que os registos históricos documentam à saciedade a forma como era usado o trabalho escravo. Basicamente, foi este aporte de energia exterior ao sistema que lhes permitiu a prosperidade que os patrícios festejavam em infinitas orgias, ou nunca teriam passado de uma sociedade rural remediada.

É evidente que o modelo não foi exclusivo dos romanos, tendo sido usado por muitos outros antes e depois deles, mas fiquemos por aqui porque basta para o que pretendo.

A grande novidade da revolução industrial em termos civilizacionais, é que sem mudar as regras do jogo mudou as peças no tabuleiro de xadrez, isto é, aquilo que até ali tinha sido resolvido a trabalho braçal ou com o binómio homem-animal, passou a ser resolvido pela máquina a vapor e logo de seguida pelo motor de combustão interna e suas variantes.

Estas inovações tecnológicas trouxeram às sociedades que as passaram a usar um contributo decisivo para o salto civilizacional que registaram, a saber, o controlo sobre quantidades enormes de energia e a capacidade de as usar em potências, velocidades e escalas antes inimagináveis.

Mas as diferenças metodológicas entre o Ocidente de hoje e a Roma de há dois mil anos ficam-se por aqui, pois no essencial ambas suportam o seu ascendente no controlo e incorporação no seu sistema social de uma fonte externa de energia. Distingue-as no entanto a substância dessa fonte. É que enquanto a energia extra usada pelos romanos era renovável, pois os escravos reproduziam-se ou conquistavam-se, os combustíveis fósseis não são renováveis ou, em rigor, não o são em razão proporcional à que os usamos.

Portanto, quando Pimentel e outros resolvem pôr em balanço a energia que usamos vs a energia de que necessitamos, contabilizando nesses cálculos as fontes externas não renováveis incorporadas no processo, não estão a misturar alhos com bugalhos. Estão antes a alertar-nos para os limites objectivos do modelo civilizacional em que existimos.

Talvez valha a pena clarificar que um homem mesmo deitado é uma máquina que está permanentemente a usar energia. Usa-a para respirar e para manter os vários subsistemas metabólicos em funcionamento. Como não é auto-produtor, precisa de a retirar constantemente de um reservatório qualquer. No último século, em vez de se maçar a gerir Spartacos e outros que tais com irascíveis crises de personalidade, o sapiens moderno construiu gasolineiras e vai lá abastecer. O problema é que o reservatório não volta a encher!

O europeu médio teve em 2007 um consumo per capita equivalente a cerca de quatro toneladas de petróleo (pouco mais de metade do americano). Mas há uma conta que mesmo o europeu médio que gosta de acordar para o lado esquerdo detesta fazer, que é multiplicar este consumo pela população mundial! É que o resultado é uma potência de dez tão absurda que não há cabecinha pensadora que consiga vislumbrar onde poderiam estar os recursos para a viabilizar!

E é neste ponto que, a bem da necessária convergência entre o discurso e a acção politica, temos de nos resolver. Podemos simplesmente discutir no conforto da blogosfera se a melhor escolha dos americanos é o Obama ou a Hillary, efabular em redor de eufémicas soluções fiscais para reduzir a dependência do petróleo, ou mesmo sobre as formas de energia que deram origem ao Universo. Ou então fazemos alguma coisa bem ao nosso alcance como consumidores, e começamos por descartar da lista de compras a interminável panóplia de todo o tipo de supérfluos em que, de facto, se estribam as assimetrias que criticamos de forma tão violenta às mesas dos Majestics do nosso comodismo, típico de prósperos patrícios.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Cash-crop

Quando a dose diária de corn-flakes chega à nossa mesa do pequeno almoço para nos fornecer 10 % da energia que o nosso metabolismo irá gastar durante o dia, ainda estamos a acabar de acordar ou a pensar no que vamos fazer à tarde. Por isso é normal que não se comece a ler os rótulos, ou a apreciar a embalagem. Se o fizéssemos seria fácil constatar que estamos a consumir milho produzido na América do Norte, transformado em Itália, embalado em França com caixas produzidas na China, ou que o leite foi ordenhado em Odemira antes de seguir viagem para Vagos, para ser embalado em pacotes fabricados na Polónia, antes de regressar a Odemira para ser consumido.

Contas feitas, estas voltas e reviravoltas de los alimentos viajeros levam a um resultado bem simples: a quantidade de energia que se gasta no transporte, embalagem, distribuição e logística, apenas do que é imputável aos corn flakes do pequeno almoço, é superior à necessidade de energia diária de um adulto normal.

Um Senhor que dá pelo nome de David Pimentel, português e há anos radicado nos EUA, onde ainda labuta em Cornell, resolveu há tempos aplicar um método de análise inovador às performances do Ocidente no aprovisionamento das suas necessidades alimentares.

Os resultados que obteve resumem-se assim: se em lugar de euros ou dólares a alimentação nos custasse calorias, há muito que tínhamos aberto falência. Porquê ? Porque desde as técnicas que utilizamos para os produzir, ao que fazemos para os utilizar, passando, claro, pelo que se faz para os comercializar, gastamos uma quantidade muito maior de energia do que aquela que esses alimentos efectivamente nos fornecem.

A lógica do sistema económico que tem prevalecido tem sido a de que o valor de todas as coisas se mede em cifrões. Consequentemente a rentabilidade do que se produz para nos alimentarmos mede-se em balanço contabilístico. A esta dinâmica da agricultura houve quem chamasse de cash-crop, e é um desastre como critério de gestão de recursos.

É um desastre porque as fontes da energia investidas na cadeia alimentar não são renováveis e basicamente, o Ocidente tem-se comportado na gestão dos recursos energéticos a que tem tido acesso, como um rico herdeiro que resolve desbaratar a fortuna que herdou numa existência de play-boy.

Quando se chega a este ponto aparece sempre quem culpe uma multinacional ou um governo qualquer . Mas a verdade é que se esta dinâmica existe e se mantêm, isso se deve às nossas opções individuais enquanto consumidores.

Explico-me.

Quando em vez de se fazer o iogurte em casa se compra no supermercado o conjunto de quatro embalagens de plástico envolvidas no respectivo painel promocional de papel panfletário das virtudes da marca, a atitude subsequente ao consumo de separar para reciclar é correcta mas tardia, porque no acto da compra já se alimentou uma lógica que é ela própria a definição de insustentabilidade.
A noção de sustentabilidade ( que os primeiros ecologistas, como Odum, chamaram de “perenidade” ) tem antes de tudo a ver com a forma como um sistema gere a energia que necessita para se manter em funcionamento. E não há reciclagem nem bio-combustagem que nos valham se todos os dias consumimos muito mais energia do que aquela que somos capazes de obter e armazenar de forma renovável.

Voltando ao exemplo do iogurte, repare-se que a origem da ideia de pegar em leite fresco e o transformar em iogurte, manteiga, queijo fresco, queijo curado, não tem nada a ver com introduzir o critério de “variedade” na dieta alimentar. São lacticínios e ponto final. Essa ideia é , isso sim, uma estratégia de prolongar a vida útil de um produto – o leite – que por natureza a tem curta. Repare-se: depois de ordenhado da vaca, quando metemos o leite no frigorifico para o conservar, já estamos a fazer batota. Sem frigorifico pode nem sequer durar 24 horas. Mas como iogurte ou requeijão pode durar três dias. E como queijo curado pode durar um ano. Tudo isto sem que no processo se introduza mais energia que aquela que despendemos em confeccionar o queijo e que de qualquer modo recuperaremos quando o consumirmos.
A mesma lógica se aplica aos "produtos de época" importados da Nova Zelândia ou produzidos nas estufas de Almeria, cujo custo energético é algo de obsceno !

Muitos dos problemas económicos, sociais e de governação com os quais barafustamos todos os dias, têm na sua origem coisas tão simples como o gesto de meter no carrinho de compras do hipermercado as embalagens quadruplas de iogurtes de longa vida garantida por inevitáveis cargas de antibióticos, ou figos frescos importados por via aérea desde o Brasil em contentores refrigerados. Nuns casos faz-se isso por desconhecimento. Mas noutros faz-se pela mesmíssima razão que nos leva a fazer muitas outras coisas: comodismo !

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Los alimentos viajeros


Aqui há uns tempos li algures um excelente artigo sobre géneros alimentares aditivados, tipo leite com cálcio extra, pastilha elástica com vitaminas, e outros que tais. Infelizmente esqueci-me do nome da nutricionista que o assinava. Mas retive que não os recomendava, aconselhando em seu lugar o recurso a uma alimentação variada e a produtos de época.

Na altura questionei-me se ainda se saberia o que era isso. E aqui há dias num grupo de universitários deixei cair essa questão. Perante um leque de frutos e legumes que ia das peras aos tomates e das maçãs ao feijão verde, a opinião foi consensual: eram todos produtos de época!

Confirmaram-se pois as minhas piores suspeitas. Ser de época passou a ser sinónimo de ser “fresco”, e “fresco ” é qualquer produto alimentar não congelado ou previamente submetido a qualquer outra técnica de conservação óbvia. Nesta peculiar acepção, as peras ou as maçãs produzidas no verão e conservadas com frio e fungicidas para serem consumidas o ano inteiro, são tão “frescas” como os tomates ou o feijão verde produzidos em estufa em Janeiro. E estes, não só são frescos como são “ de época” em qualquer altura, tal como são de época são os figos frescos vindos no avião da véspera desde o Brasil.

Vale a pena clarificar isto ?

Acho que sim.

A generalidade dos produtos de origem vegetal tem um ciclo de vida e uma período de maturação que dependem do clima e em particular da temperatura. Nos climas tropicais, em que as temperaturas têm reduzidas variações ao longo do ano, algumas plantas, sobretudo as anuais, podem não ter um período de maturação definido ou até ter vários. Mas nos climas temperados com estações bem marcadas, como é o caso do nosso, a generalidade dos frutos, por exemplo, apenas amadurece entre finais da Primavera e finais do Verão. Por isso a época das uvas entre nós é em Julho/ Agosto. Mas na África do Sul, com um clima semelhante, vai ser agora pois o Verão deles começa em Dezembro.

Vai daqui que as uvas da África do Sul que já vão aparecendo nos nossos mercados são de facto de época. Mas da “época” deles.

Algo diferente se passa com o tomate fresco que se consome agora. A época do tomate também é o Verão, por isso os que se produzem neste momento no país só podem ser de estufa e não são de época.

É graças à técnica agrícola de forçagem em estufa, que consumimos tomate fresco fora de época . E podemos também agradecer à eficiência dos sistemas de transportes de refrigerados podermos aceder em Janeiro às uvas colhidas uma semana antes nas vinhas sul africanas. Mas o que é que nos permite forçar culturas a produzir fora de época, ter frutos conservados em refrigeração desde a sua época, ou ainda importar frutos frescos de épocas antípodas ?

Coisa simples: o petróleo!

E qual é o problema ?!