segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O R da Recusa


A tradicional divisão do mundo entre ricos e pobres tem sido ao longo da história alvo de investidas periódicas.



No período pós revolução industrial e durante boa parte do século passado, os movimentos sindicais desempenharam papel de relevo nesse confronto. Olhando em retrospectiva para essas lutas, há muito quem delas retire sinais de vitória do sindicalismo e argumente sobre a sua capacidade de mudar o Mundo. Legítima leitura. Mas o que se passou também pode ser visto sob outro prisma, o da infinita capacidade que o capitalismo revela para assimilar a seu favor dinâmicas que lhe sejam contrárias.



Ao constituir as massas como destinatárias preferenciais da sua própria produção e mantendo o controlo do paradigma que elas perseguem, através do marketing e da educação, o capitalismo criou a sociedade de consumo e tornou o cidadão comum refém das suas próprias reivindicações. De forma competente, a publicidade tem gerido as coisas de tal modo que transformou os conceitos de necessidade e de utilidade social, que deixaram de reportar para a realização do básico e passaram a exprimir a aquisição ou o reforço de um determinado status de sucesso através do supérfluo, mesmo que seja made in China e de imitação. Não será por isso de estranhar que a vanguarda do sindicalismo se tenha acomodado, deixando de parte as velhas reivindicações feitas de vontades de mudança e solidariedades internacionais, para se concentrar na defesa ou no reforço corporativo das comodidades burguesas entretanto adquiridas.



Ora as preocupações ambientais que têm vindo a ganhar notoriedade nos últimos anos, não têm na sua origem os mesmos grupos nem as mesmas lógicas sociais que dinamizaram os movimentos sindicais. Elas proliferam entre comunidades de um outro género que tiveram acesso a outro tipo de escolaridade e de informação e que, além disso, têm resolvidas as questões básicas da subsistência e por isso surgem com um caderno reivindicativo vocacionado para a discussão da vertente qualitativa da sociedade da abundância em que cresceram e existimos.



A estratégia reivindicativa também se alterou, e em lugar da greve pura e dura em que se acabava a dar fogo às portas da casa para acender o fogão e fazer a sopa de meia - batata do dia, o activismo ambiental dá preferência à acção simbólica. Pagamos uma quota à Greenpeace, eles atravessam uns botes entre as baleias de bossa e os baleeiros japoneses nos mares do Antárctico, e nós aplaudimos em casa. Ou seja, delegamos. Assim não fosse e já se teria dado pelos efeitos de uma arma de luta social pelo ambiente mais poderosa que qualquer greve operária do passado – a recusa ao consumo.



De resto, a ideia não tem nada de inédito. No mínimo remonta a Ghandi e à recusa dos indianos ao uso dos têxteis do País de Gales. Como é evidente, o contexto e os objectivos eram outros. O colonialismo não se afirmava por uma estratégia de consumo e a desobediência civil de Ghandi tinha contra si a lógica e o exército da administração colonial, mas ainda não tinha este exército psicológico que mina por dentro as motivações - o marketing pró-consumista. É ele quem nos inculca uma interminável lista de consumos “inevitáveis” sem os quais se tem por adquirido que não se subsiste.



Esta ideia de “inevitabilidades” que circula por dentro de uma certa atitude neo-verde, é de resto bem consolidada pelos média “amigos do ambiente”. Em Maio passado, por exemplo, um dos nossos semanários de referência resolveu “compensar” com plantações de pinheirinhos na Tapada de Mafra as emissões de CO2 “inevitáveis” que decorriam da publicação do jornal. E entre elas a do saquinho plástico e a dos intermináveis encartes publicitários a cores, tudo coisas que ninguém recusa.



Logo, por maioria de “razões”, são também “inevitáveis” e não se recusam, as embalagens de tara perdida de todo o género de refrigerantes ou de bebidas alcoólicas em formato individual, as garrafinhas de água das caldas, de Actimel, de leitinho achocolatado, de iogurte de vida longa, as doses individuais de massas pré-cozinhadas que é só meter no micro-ondas (ele próprio supra-sumo do “inevitável”) e já está, todas as embalagens individuais dos “couverts” da restauração, as gangas rotas de origem (jamais as rotas pelo uso, que pindérico…), os bifes embalados a vácuo, o grão e o feijão pré-cozinhados em magníficos frascos de vidro para deitar fora, as gangas “corsárias”(jamais cortar dois palmos às gangas rotas da época passada, que possidónio…), os aditivos anti-estáticos para os limpa pára-brisas, o detergente que cheira a rosas, a limão, a flores silvestres, e o que lava mais macio, e mais branco, e mais rosa, para não falar do dia dos namorados, ou das crianças, ou dos pais, das mães, e de todos os incontáveis exemplos desta interminável ditadura pró-consumista!



Por conseguinte, o primeiro dos três R’s, o de reduzir, sendo essencialmente um incentivo à recusa de pactuar com as dinâmicas irracionais da sociedade do consumo, é o último na hora das decisões.


Esta contradição terá a ver, digo eu, com o facto de a generalidade dos problemas identificados como ambientais serem latentes e não sentidos. Isto é, contrariamente aos salários de fome que determinaram boa parte dos grandes movimentos sindicais, os problemas ambientais referem-se a um panorama que a maioria dos ocidentais, independentemente do seu nível de informação, não sofre! Pelo contrário, beneficiam em comodidades com os consumos que estão associados a esses problemas!E sentem como problema, isso sim, a marginalidade que a sociedade da aparência impõe quando não se corresponde às expectativas do status. Assim, a maioria de nós tende a desvalorizar a importância dos comportamentos individuais concretos, deixando o exercicio da recusa para prática de minorias que acabam por encontrar nessa atitude uma espécie de exotismo identitário.


17 comentários:

E. A. disse...

Caro Manuel,

Gostei do seu texto, eu, já uma filha da Fartura... Particularmente do 8º parágrafo pela cadência que inspira a decadência - a nossa, Ocidentais.
A vida consumista é uma vida do prazer imediato, do instantâneo, (como as sopas e as papas), daí que o problema do ambiente não seja reconhecido enquanto tal, pois n se sofre dele directamente ou visivelmente, ou ainda melhor, quantificavelmente!, e o exercício de abstracção, de conjectura, é uma tomada de consciência superável por uma simples mudança de canal. :)

antonio ganhão disse...

A educação (institucional) leva o homem a alimentar a máquina, tendo a ilusão de ser feliz porque cada vez consome mais (e de melhor qualidade)?

Depois das energias alternativas temos que encontrar a educação alternativa?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Belo texto! Estou de acordo com as linhas gerais da sua argumentação. De facto, a teoria crítica deparou-se com esse problema: a integração da classe trabalhadora no sistema capitalista e a perda da consciência política capaz de a levar a lutar pela mudança qualitativa. O capitalismo soube integrá-los, bem como outras minorias, oferecendo-lhes uma terrível ilusão que faz deles cobaias altamente lucrativas. E a educação declinou a sua qualidade: ensina a não pensar e desvaloriza o conhecimento, de modo a que os seus sujeitos desejem aquilo que as indústrias culturais planeiam para si. Também os poupou do sofrimento e da dor: são aparentemente felizes, mas não pacíficos. A agressividade começa a emergir não só externamente mas sobretudo externamente e, com a queda do muro de Berlim, o sistema é menos sensível ao bem-estar das suas cobaias. Só a miséria as pode acordar... e ela está aí. É preciso é combater o medo e confrontá-los com a aniquilação. Portanto, talvez nem tudo esteja perdido e a natureza revolta-se contra a sua destruição. O futuro não será nada risonho... Talvez a humanidade esteja já à beira do abismo cuja proximidade cega-a... :)

Fernando Dias disse...

Gostei desta "R"eflexão, para mim bem Reflectida. E o comentário de Francisco "R"eforça com bom sentido e arcaboiço teórico.

quintarantino disse...

Parece que não há como lhe escapar, não é caro Manuel Rocha?
O capitalismo, por marketing, por educação, por inércia e ausência de vontade do indivíduo, marca e pontifica o ritmo a que a banda toca.

Interrogo-me, e nisso acompanho-o, em que momento da História nos deixamos quebrar, perdendo a capacidade de trazer novamente para a rua os cidadãos organizados em torno de um ideário comum.

Hoje seria possível um Maio de 68?
Se calhar, não.
Desconfio até que nem um levantamento em Budapeste seríamos capazes de fazer para resistir aos invasores…

Lá está, é muito mais cómodo e conveniente quedarmo-nos quietos à espera que ninguém nos toque no privilégio, por pequeno que seja, e bradar aos céus contra os privilégios dos outros.
E nisso, infelizmente, os portugueses tornaram-se especialistas.
Roemo-nos de inveja do sucesso alheio, batalhamos para que se aquele tem e eu não, então que aquele também não tenha, adoramos quando o nivelamento é feito por baixo.

E em nos apanhando num lugarzito que dê penacho, está quieto… só saio empurrado!

Daí que, de facto, seja como diga… é mais fácil pagar a quota ao Greenpeace que, aqui entre nós, também tem os seus pecadilhos do que deixar o carro em casa e ir num só carro para o trabalho!

Reduzir ou recusar não é fácil. Especialmente por quem, como muitos de nós, foi criado na sociedade da ilusão da abundância e das crescentes potencialidades do consumo desenfreado. E, para mal dos nossos pecados, porque nos lobrigaram ainda outros pontos fracos, sendo um deles o da vaidade.

Não fora a vaidade é porque se necessita de um telemóvel que é ao mesmo tempo telefone, agenda, câmara de vídeo, máquina de fotografar, gps e leitor de ficheiros de música, quando lá em casa se tem de forma autónoma uma câmara de vídeo de mini-dv e outra de dvd que veio substituir aquela, uma máquina fotográfica analógica substituída por uma digital, um gps que se usa para ir ao quiosque comprar o jornal do dia, uma aparelhagem stéreo, um sistema de surround e um plasma?

Ah, já sei, para se mostrar aos amigos que, nós, afinal também podemos. Que temos estatuto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, Quin... É isso: "mostrar estatuto", mesmo que se esteja endividado ou se passe fome.
Marcuse escolheu como lema: A Grande Recusa. É preciso pensar uma nova antropologia negativa, capaz de transformar o próprio Homem. :)

Tiago R Cardoso disse...

Recusa em sair do sofá e fazer alguma coisa, recusa em abdicar das comodidades desta sociedade de consumo, recusa em tomar uma atitude.

No entanto fica-se de facto em casa a aplaudir, a que isto está mal, que temos de tomar uma atitude, claro tudo isto no quentinho de uma aquecimento central a gasóleo, tudo isto sentados confortavelmente num topo de gama, comprado para se circular dentro de uma cidade.

Manuel,
O grande reivindicações tem hoje de ser feitas de forma a não dar muito trabalho, alem disso lá fora está frio...

Manuel Rocha disse...

Pois eu tenho a dizer que estou a gostar mais dos comentários que do texto...sobra a estes a "alma" que me faltou naquele....

Há dias assim....:))

E. A. disse...

N seja assim! Escreveu muito bem, foi límpido e certeiro. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A sua Recusa é simplesmente linda e muito rebelde. A Papillon tem toda a razão. Como já lhe tinha dito: um excelente post. Excelente mesmo! :)

Alvorada disse...

Concordo com os comentadores anteriores. Não faço ideia das razões da insatisfação do autor, para além de obviamente concordar que "há dias assim" ( risos...).
Gosto francamente dos seus textos pela pertinência dos temas mas sobretudo pelo evidente esforço que faz para fazer deles textos de divulgação. E consegue-o sem entrar pelos habituais trilhos de lugares comuns.
Gostei particularmente da forma como abordou o estado de alienação em que vivemos na relação que deviamos preservar com os imperativos básicos da nossa existência.

Maria

E. A. disse...

"A sua Recusa é simplesmente linda e muito rebelde."

Eu acho que o Francisco estava a pensar na Musa e não na Recusa. :))) lol

Manuel Rocha disse...

É...o Francisco anda confuso...natural...houve um comentador ontem que ia dando cabo dele e ainda deve estar em recuperação...:)) Só assim se entende o exagero !

E continuo a discordar dos eucómios ...mas lá está, há que repeitar o gosto pelo que é diferente ( mesmo que seja por raparigas decapitadas...:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok, a Papillon é uma linda musa, que, por vezes, também recusa o consumo... LOL :)

E. A. disse...

Por acaso, fique sabendo que, a despeito do meu blog evocar alguma veleidade ou mesmo luxúria, a Borboleta até se recusa ao consumo... lol

Mariano Feio disse...

Desobediência civil ?

Agrada-me a ideia !

Amanhã( que é dia de ir às compras nesta organização ) vou levar sacos de casa e recusar os do Inter Marché - se me chamarem louco dou-lhes uma cópia do seu post! Lá dentro logo verei se convenço a patroa a recusar mais alguma coisita - não é fácil ( a menos que lhe diga que já não há saldo no cartão..ehehe )!!

alf disse...

Há um pressuposto que não está provado -que as coisas aqui denunciadas são de facto erradas. Ou será que são apenas diferentes?

Qual é o problema de usar o microondas, de usar comida pré-cozinhada? Acho isso tudo um bem se nos der em troca tempo para pensar.

É por isso que eu gosto de ver os modelos da realidade bem definidos, em termos básicos e simples; só assim se pode fazer uma discussão consistente. Começar com pressupostos, como a ideia de que o CO2 é um "mal", ou que o consumo de papel é um mal, deixa-me logo fora da carroça, não sei pensar assim.

O quadro do que somos, está sem duvida correcto - somos uns gulosos bastante irresponsáveis; agimos descerebreladamente. A questão para mim é saber até que ponto as regras do sistema estão a funcionar no sentido certo ou a enviar-nos para algum beco escuro.