quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O R do Meio


Reutilizar é uma ideia que aplicada à gestão de recursos tem um significado algo mais vasto que “usar outra vez”. Ela incorpora uma certa noção da possibilidade de um determinado bem ser usado várias vezes (durabilidade). Nesta medida, uma alcofa de empreita é mais reutilizável que um saco plástico do supermercado. E a simplificação de que se podem trazer destes para casa em barda porque depois servem para ensacar o lixo, distraiu-se na compreensão de que o R de reutilizar não aparece por mero acaso depois do outro R de reduzir na concepção da estratégia dos três R’s.

Existe uma propensão natural para remeter para unidades monetárias qualquer raciocínio em torno das relações custo/benefício. É dentro dessa lógica que tem vindo a ser formatada a nossa interacção com o mundo da economia. No entanto, como qualquer outra leitura monográfica, também a abordagem economicista do mundo é redutora.

É redutora porque remete a dinâmica da troca e a formação do preço para relações unívocas entre oferta e procura, escamoteia a questão central da repartição de “bens escassos” e com isso deturpa a essência mesma da ideia de administração de recursos limitados que a devia estruturar.

A distinção clássica entre bens de primeira necessidade e os outros diluiu-se. É difícil explicar a quem tem problemas permanentes de excesso de peso que o pão seja um bem de primeira necessidade. Esta é uma iniludível consequência da sociedade da abundância: instalou-se um género de feira popular em que, como dizia Eco, o Carnaval deixou de acontecer uma vez por ano e passou a ser todos os dias, pois só isso explica que o conceito de utilidade se tenha expandido ao ponto de incluir a escova de dentes eléctrica, englobando assim dentro dessa noção de valor o que é descartável! Só estas premissas podem explicar que a velha prática da tara recuperável tenha sido preterida pela perdida, e que a alcofa das compras tenha cedido inexoravelmente terreno à sua versão plástica descartável – o saco-painel de todas as publicidades!

A suposta racionalização logística ou o argumentário higiénico, teses rotinadas na defesa destas lógicas pós-modernas, revelam-se no entanto claramente insuficientes para explicar tudo o que se tem passado neste domínio. No caso das primeira, porque existe uma óbvia e nada inocente confusão entre o que é racionalidade económica e comodismo individual ou mesmo oportunismo empresarial. No caso da segunda, porque se sabe que as técnicas e os métodos de controlo de qualidade actualmente disponíveis, permitem facilmente resolver a reutilização de vasilhame, particularmente do vidro.

A racionalidade económica vigente gere-se em função de custos e benefícios monetários. Mais caro ou mais barato, mais ou menos lucrativo, são estes os critérios. Sustentabilidade, equidade e ética não são variáveis que façam parte de nenhum dos algoritmos conhecidos da modernidade económica. Assim, toda a organização espacial da logística económica se estruturou no sentido de não se reutilizar. E como em tudo, quando certas inércias se instalam, aumenta a dificuldade de lhes inverter o movimento.

Quando há trinta anos o leite que se consumia em Évora era produzido nas explorações leiteiras envolventes, concentrado e tratado na cooperativa de produtores locais, e a distribuição feita em garrafas de vidro modelo “vigor de litro", a recuperação do vasilhame era consequência da própria distribuição e a sua reutilização pacífica. Hoje, o leite produzido em Évora pode muito bem seguir a granel para Sanfins. São 800 km de transporte dos quais metade em vazio (a vinda do camião cisterna). Retorna depois de embalado a uma central de distribuição que pode ficar na Azambuja, antes de ser reenviado para o consumidor final em Bragança. Trata-se de uma logística distinta e o uso de uma embalagem reutilizável implicaria encargos que os agentes envolvidos preferem evitar, mesmo que o seu custo fosse incorporado – como sempre – na preço final do produto ao consumidor.

É pois verdade que estão instaladas certas lógicas de mercado em que o nosso papel como consumidor-reutilizador é difícil. Mas nem em todas. O caso do guarda roupa, do vestir e do calçar, é delas exemplo e dos tramados. Como se sabe, não é o estado de uso que determina nos dias que correm a renovação desses stocks domésticos, mas a moda. Usar o mesmo casaco mais que uma vez por semana é foleiro e usá-lo de uma época para a outra é pindérico. Que fazer para ganhar espaço antes dos saldos de fim de época? Doa-se a organizações especializadas na ajuda a países pobres! E há quem genuinamente dê este exemplo como uma excelente opção de reutilização! Ilustrativo autismo ou simples paliativo de consciência? Tanto faz, porque tem os resultados práticos pretendidos: satisfazer a necessidade de garantir uma renovação de indumentária que não belisque o status! Mas a lógica intrínseca à reutilização não pressupõe duplicar a produção do que ainda tem uso.

24 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mais tarde comento o seu post. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Reutilização ou durabilidade: o caso da roupa é claro. A moda é negócio e o seu ritmo é pensado de modo a mudar constantemente de roupa, caso contrário, sentimo-nos "humilhados" ou "pidéricos", como diz. Este é consumo conspícuo.
A durabilidade é, como mostrou H. Arendt, uma noção alheia à sociedade de consumidores. Vai contra o espírito de lucro que move a economia. Bens duráveis era uma via de solução, mas a economia tal como a conhecemos parava... Isto pode significar que a reutilização será feita dentro desse mesmo espírito económico. Ainda não temos um modelo económico alternativo, capaz de garantir um certo nível de vida, sem agredir a natureza. O capitalismo impera sozinho, sem adversários. Educação? :))

Manuel Rocha disse...

Educação ? Sim ! Mas se educar se limitar a ser aculturar sem claro reforço do sentido critico, fechamos o circulo dentro da lógica das verdades estabelecidas, certo ?
Portanto, rompé-lo educando, mas onde e como ? Na escola ? Não é a escola mostruário vivo do paradigma vigente, consumidora das comodidades e dos comportamentos pequeno- burgueses bastamente publicitados atempadamente eleitos como valor útil-descartável ?
Educar para um novos valores éticos ? Sim ! Mas se a ética se apreende e reproduz, mais do que se ensina, que exemplos temos para paradigma ? Os "lá de casa e os da escola" ?

:)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Concordo: a escola faz parte do sistema.
Os USA e nós europeus ficámos sem um rival: A URSS, e isto favorece o liberalismo económico. Vamos pagar a factura. O Estado Social tal como o conhecemos não é sustentável e a globalização leva a cabo a sua acumulação mundial de capital.
Temos de pensar os modelos do fascismo e do nazismo: talvez tenham alguma formula económica interessante. Já volto...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O que quero dizer é que voltamos ao mesmo sítio: capitalismo descontrolado e o ocidente com a concorrência das economias emergentes! Marx pode ter uma certa razão... Mas não vejo alternativa económica. :(

Manuel Rocha disse...

A questão da hegemonia do capitalismo ocidental está bem agarrada. Tal como de resto a menção às fórmulas económicas do fascismo. Nestas, tal como nas comunistas, as economias do tipo socialista ou capitalista funcionavam dentro das baias do condicionalismo do plano estatal!Quem sabe se não poderiam ser recuperadas com os devidos acrescentos devidos aos estado social e devidamente democratizadas. Básicamente não é isso que fazem as sociais democracias nórdicas ?
O que parece ser óbvio é que se se pretenderem mudanças nos impactos ambientais das derivas capitalistas, importantes constrangimentos terão que ser adoptados ao nivel da planificação económica e do condicionamento industrial e comercial.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Exacto. É preciso sonhar para a frente, como dizia Bloch... :)

alf disse...

meu... vejamos... como hei-de dizer... falar em calão não vale meu!

É assim: Ó soutôr, para quem tás a escrever, pá? Para intelectuais? Esquece, esses são muito bons a arranjar argumentos para fazerem o que sempre fizeram e pensarem o que sempre pensaram... ou não pensaram. Topas o Gore? Ele faz alguma coisa do que diz?

Tens é de falar cá prá malta em vez de arengares para intelectuais. Falar clarinho. Ké ka gente deve fazer, porra!

Fica bem meu. Aqui o Je vai ler mais umas vezes o post a ver se alcança...

Anónimo disse...

O comentador Alf seguramente não tem lido muitos trabalhos sobre estas matérias. Passasse os olhos pelas comunicações regularmente presentes a congressos de ambiente e veria o que é jargão técnico à séria ( risos ).
Esta matéria é dificil, porque envolve conceitos de economia e de psicologia do consumo que poucos se abalançariam a abordar neste formato.
Sou da opinião que o resultado está muito bem conseguido e suportado numa excelente exemplificação.
Não teria ficado melhor se tivesse enveredado por um estilo de interminavel novela recheada de improváveis diálogos.
( risos )

Cumprimentos.

Trigo Pereira

Alvorada disse...

Excelente texto !

Mariano Feio disse...

Leigo infinitamente curioso, encontro nestas palavras ideias mais elaboradas que as que uso frequentar sobre o tema. Sou transportado para um sentido de poupança que se perdeu e artes de manufactura que preferiam o que durasse ao que se deitasse fora. O consumo de fraldas pe papel do meu neto é qualquer coisa de impressionante, e é logo nos tempos em que todas as casas têm máquinas de lavar e secar roupa que já nem sequer se encontram as tradicionais fraldas de algodão.

Amigo Alf, permita que lhe diga que não sendo eu um académico, longe disso, também gosto que me puxem pelos neurónios,a ver se não enferrujam, e aqui o amigo Manuel trata disso sem exagerar na dose.Também eu tive que ler duas vezes mas olhe que não dei o tempo por mal empregue, eh eh eh !

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tem razão quanto à distinção entre necessidades e utilidade. É possível recuperar teoricamente a teoria das necessidades, libertando-a do funcionalismo e demarcando-a do utilitarismo usado pelo liberalismo económico. :)

quintarantino disse...

Olha, nunca pensei que os três "erres" se pudessem imiscuir e conflituar com o xadre da geopolítica.

Digo isto porque, embora apreciando os comentários do J. Francisco Saraiva de Sousa (quase aristrocático o nome), ainda não atingi onde se pretende chegar com esta discussão a propósito da queda da URSS.

Já antes da queda da URSS campeava o desvario de usar e deitar fora, de não reciclar.
Aliás, rezam as modas, que a URSS não era propriamente um modelo de virtudes ambientais.
E se por aqueles lados de reutilizava era única e exclusivamente à conta da pobreza que imperava. Como consta que noutros tempos imperou entre nós e que deseja-se não regressem.

Hoje não se colocam meias solas nos sapatos; não se colocam mangas de alpaca no escritório para não estragar os cotovelos da camisola; não se sente a necessidade de subir baínhas ou apertar calças para que passam de um filho para o outro... e assim sucessivamente. E, se calhar, ainda bem.

Mas hoje já se começa a sentir a necessidade de reaproveitar as águas residuais; de pensar em estratégias que permitam reaproveitar componentes da panóplia de aparelhos eletrónicos, eléctricos e domésticos.

Alteração de hábitos?
Por enquanto não. Apenas porque o capital se apercebeu que, também aqui, há um nicho de mercado à espera de ser sugado.

Manuel, este sou mesmo eu!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Encaro os posts do Manuel Rocha como propostas de trabalho, ou mesmo como a formulação de novas alternativas. De certo modo, estamos alienados do mundo e perdemos o contacto com a sua durabilidade. Até a arte de hoje é pouco durável. Recuperar essa durabilidade perdida devido à gula do lucro é uma excelente ideia. Sei que as pessoas não a acham atractiva, mas a sua saúde, bem como a do planeta, iria melhorar, sem ajuda de fármacos. :)

Manuel Rocha disse...

Tres R’s e geopolotica? Sim, definitivamente.

A politica internacional continua a ser essencialmente mercantil, de um mercantilismo motorizado pelo consumo e este é a “floreira” onde se plantaram as três “rosas”…se lhe quisermos dar a volta teremos sempre que passar por aí…

A URSS veio à baila na conversa porque à semelhança do que acontecia com outros sistemas apostavam em metodologias de planificação económica ( O Plano )que foram abandonadas e que provavelmente poderiam ter algum mérito para se conseguir uma regulação que de todo não existe desde que se valorizou o empreendedorismo de não importa o quê desde que haja mercado…e haver mercado é questão de haver dinheiro e marketing…

Casar este paleio económico ( e a economia é um granel medonho...) com a questão do reutilizar sem cair nos lugares comuns habituais da cidadania do paliativo de consciência e perceber qual o nosso espaço de manobra real, implica passar por aquilo que é estruturante na nossa atitude como consumidores. Num formato de post é um pouco como meter o Rossio na rua da... Foi essa introdução ( pretenciosa ? ) que tentei condensar e lamento se defraudei expectativas... :))mas nada que não se resolva ...:))

antonio ganhão disse...

R para reutilizar modos simples de vida que em tempos nos fizeram felizes e em maior harmonia com o nosso ambiente.

Anónimo disse...

Não me pareceu que o texto esteja pretencioso ou de leitura particularmente dificil.

Lecionando nestas áreas das economias não vislumbro outra forma de dizer tanto em tão pouco espaço.

Está clara a preocupação central de que a prática da reutilização mal orientada tenda para acelarar a máquina económica quando não corresponda ou não dê origem a poupanças ( reduções ) efectivas a montante (na produção).

Mas comentei antes de mais para um pequeno reparo: não falta um "não" na penúltima linha do primeiro parágrafo ?

Carlos Marques

Manuel Rocha disse...

Carlos:

Faltava, de facto ! Vejo que não é um leitor apressado :) Obrigado !

Rita disse...

E se acrescentarmos um R antes desses 3, de RECUSA, em participar no sistema como ele nos parece exigir? Recusa do produto industrializado que poluiu para chegar a nós, Recusa da água potável para o autoclismo porque a água da máquina da roupa chega bem, Recusa da dependência da electricidade instalando os nossos painéis solares? ;) Se não os podes vencer junta-te a eles - cria a tu micro-economia ehehehe.

PS: no próximo mês em que eu tiver que pagar mais de aluguer de contador do que de electricidade gasta vai haver barulho na EDP da Invicta, barulho à boa maneira lisboeta...

quintarantino disse...

Caro amigo, surpreende-me pois além de lúcido é conciso.
Percebo a questão do Plano, e que a regulação poderia ser um meio para conciliar necessidades e respeito pelos recurosos naturais.
Não era por aí.
Eu só pretendia chamar à liça que, mesmo com Plano, a URSS foi sempre um desastre ambiental.
Mas reconheço a argúcia do seu argumentário.

Quanto ao que agora se passa eu só digo isto: quando se assevera que se pode ter um sistema em que na política se é comunista e na produção capitalista, devem pensar que somos parvos...

Enfim.
Olhe, se puder e quiser, passe pelo nosso recanto hoje.
A nossa "loira" hoje excedeu-se!

Manuel Rocha disse...

Rita,

Como é que adivinhou o projecto da minha proxima postagem?! :))

Quin,

É isso mesmo, mas a verdade é que tb o comum dos mortais pretende fruir o melhor dos dois mundos, na velha expectativa dso " sol na eira e água no nabal"...
Quanto á URSS e ao ambiente, claro que só pode ser usada como exemplo dos maus exemplos...

alf disse...

Eu explico-me melhor

Para analisar esta e outras questões, só se chega a algum lado contruindo cenários. Definindo exactamente os procedimentos inerentes ao cenário, coisa que não precisa de nenhuma linguagem técnica.

Discutir em cima de conceitos não leva a lado nenhum, a maior parte das vezes não passa de uma exteriorização dos nossos desconfortos pessoais, da nossa desadaptação a uma sociedade que é diferente daquela em que crescemos.

Por isso é que eu sugeri ao manuel que dissesse exactamente como acha que deveria ser, que construisse o cenário;

Claro que a lógica é economicista; mas a ética tem de ser convertida em custos, o dinheiro não é um valor em si mesmo, é apenas o quantificador, mas como a quantificação é feita é definido por nós.

Dizer simplesmente que não pode ser, que está mal, não adianta; é preciso mostrar uma alternativa melhor.

por detrás de tudo isto existe um problema: o número de pessoas. Sustentar o numero de pessoas que existe implica um conjunto de opções e consequências.

Quase que poderiamos dizer que o grande poluente terrestre é o número de seres humanos.

Uma sugestão para a sociedade mudar radicalmente: em vez de tanta preocupação em proteger os cidadãos da bola de berlim vendida na praia, impor exigencias de qualidade na produção alimentar, nomeadamente nas rações animais.

Claro que a alimentação vai ficar muito mais cara se as rações deixarem de ser lixo reciclado; mas a Bola de Berlim também fica mais cara assim... mas reparem que isto até está a ser construido como alternativa, hoje tenho alguma escolha sobre o que compro.

Blondewithaphd disse...

Ui, quantas vezes é que eu me senti a criatura exótica para quem todos olham só porque vou ao supermercado com aqueles saquinhos de pano que duram uma vida e têm estampadas coisas tão agressivas como: "Fazer um ambiente melhor"? (claro que deve ser porque a malta anda ali com dizeres numa língua esquisita e em Portugal esses saquinhos ainda são uma aberração).

Já agora, o que é uma alcofa de empreita? À alcofa cheguei, à empreita é que não;)

el.sa disse...

Não sei se erre ou não, quando digo que este erre vem no meio de um conflito ideológico que está a desfocar a questão central - a reutilização.

Com respeito por todas as ideias aqui debatidas, embora algumas delas me passem completamente ao lado, acredito que se fala muito mais do que se faz.

Sejamos práticos, como alguns defenderam.

Eu faço pouco. Vou procurar a minha consciência e tentar meter-lhe a mão... e depois sei que mais do que comentar e acenar com a cabeça, tenho de AGIR!!!

Beijinhos com R ***