segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A Cidade e as Serras ( revisitação ...)


É tida como expoente e símbolo da complexidade e do génio humano, ponto de cruzamento de uma imensa rede de trocas e comunicações, arena onde se confrontam as leis da economia e da ecologia. No entanto foi da terra que nasceu. Espécie de grande aldeia que se instalou em localização de excepcional fertilidade. Fertilidade devida à dinâmica dos grandes rios que construíram imensos aluviões periodicamente reabastecidos de nutrientes pelos Deuses das Cheias hoje malditas. Foi aí, com a agricultura , técnica aperfeiçoada de “domesticação”da energia solar, que os cereais produziram os excedentes que o Sol, de novo e sempre o Sol, secou e secos se armazenaram como reserva da energia que permitiu à grande aldeia crescer e enquanto crescia ser ponto de encontro de culturas, catalisadora e difusora da inovação técnica e social. Uma lógica e uma história de cinco mil anos datados no crescente fértil da Mesopotâmia, no Vale do Nilo, no delta do Rio Amarelo, sempre nos grandes rios. Uma relação interdependente entre Terra, Água, Sol e engenho humano que o tempo pouco alterou – a cidade.

Depois, a empresa. Forma organizada de gerir a acumulação de riqueza trocando por moeda produtos ou serviços no mercado dos bens. E na cidade há consumo de bens. Cidade e empresa potenciaram-se. E em sucessivos e recíprocos reajustamentos, das condições particulares de trabalho e de mercado que elas próprias criaram, cidade e empresa deram origem a novos condicionalismos, modos de vida e aspirações. Mas foi a revolução industrial que veio fazer a diferença e descolar o conceito cidade de uma relação intima com a terra próxima, quando se instalou e requereu fluxos permanentes de mão de obra . A indústria e o seu comércio acrescentam-se à cidade , moldaram-na e refundaram-na, individualizando-a, já que cada cidade escolheu o seu próprio percurso de adaptação a esta nova realidade para alojar e suprir as necessidades dos seus novos súbditos.

Ano 2000 e 80% ( talvez mais ) da população mundial vivendo e trabalhando em aglomerados com mais de 100.000 habitantes. A facilidade trazida pelos novos meios de comunicação potenciou o efeito autocatalictico característico dos grandes aglomerados e a cidade deu lugar à metrópole.

Ao contrário da cidade, elemento estruturante do território onde se insere porque dele dependente, a metrópole semeia desertos em seu redor porque se estruturou sobre uma lógica económica de fluxos e comunicações alheios a distâncias. Um aglomerado de um milhão de habitantes “sorve” diariamente duas mil toneladas de alimentos, quatro mil toneladas de combustíveis e seiscentas mil toneladas de água, independentemente da origem das fontes. Paris, consome 30% do petróleo usado em França, 20% do carvão, 50% do gás e ainda 15 % da electricidade de outras fontes, enquanto 25% da produção agrícola do país desaparecem todos os dias para lhe matar a fome. E a outra face da moeda deste metabolismo insaciável são os produtos rejeitados. Algo como meio milhão de toneladas de águas residuais, duas mil toneladas de resíduos e mil toneladas de poluentes atmosféricos, por milhão de habitantes.

Mas a imparável vertigem de crescimento, algo quase “orgânico”, é ao mesmo tempo a enorme fragilidade da metrópole, pois não é auto-produtora. Depende, tal como as cidades, de fontes externas de alimentos, ar, água, energia. Porém, na voragem expansionista, as metrópoles usaram e inutilizaram o suporte que as originou enquanto ainda cidades. Nos celeiros de Lisboa , a cintura de solos basálticos profundos, fertilíssimos, que se estendia para Poente e Norte até às Serras de Sintra e dos Candeeiros, construíram-se as periferias, e não há regresso desta dinâmica cujos efeitos apenas a agricultura industrial e a ilusória capacidade ilimitada de transportes intercontinentais tem conseguido adiar.

No ocidente dito desenvolvido, as metrópoles protagonizaram um reordenamento do espaço do tipo tentacular, em que os grandes aglomerados se espraiam pelo território como enormes cefalópodes que se tocam pelas extremidades dos respectivos tentáculos. Porém, as auto-estradas são mais que vias de comunicação, são canais de drenagem entre dois pontos. Nos espaços entre esses canais que drenaram de gente o mundo rural, decorre uma produção de géneros agrícolas do tipo empresarial que tanto pode dedicar-se a oleaginosas para combustível como a alimentos de primeira necessidade. A dicotomia cidade / campo deu pois lugar a uma variante de tonalidades monocromáticas de vida metropolitana, que impõe o seu ritmo, estabelece a agenda dos acontecimentos que se discutem no café da impropriamente dita província e até da própria vida doméstica, pois até o jantar no interior serrano passou a estar alinhado com o telejornal das vinte para não interferir com a inevitável telenovela das vinte e trinta , onde os estereótipos são urbanos e os não urbanos caricaturas de má qualidade! Até a famigerada previsão meteorológica alinha pela metrópole, cujo conceito de “bom tempo” se impôs segundo critérios de ausência de chuva e temperaturas amenas, mesmo quando as barragens estão à mingua, as searas a definhar e o gado a morrer!

- Viste o tempo para amanhã?
- Vi..
- E então …chove ?
- Não ! Deram bom tempo !...

Só a absoluta diluição dessa tradicional dicotomia na forma de pensar o meio em que se vive, pode justificar este tipo de diálogo hoje recorrente entre dois resistentes agrícolas desesperados por chuva ! É esta impressionante máquina de comunicar, dotada de vida própria, catalisadora da pluralidade e diversidade das escolhas, que, ao mesmo tempo que cativa e acultura, submerge, sufoca e isola o homem que vive na sua órbita num género novo de alienação em que a vida se concebe destituída das suas elementares dependências. Nessa medida e ao contrário da sua antecessora, a cidade, a metrópole não complementa um sistema – esgota-o !

15 comentários:

quintarantino disse...

Ah, Manuel, vejo que revisitou Eça... um arroz de favas, vai?

Sabe, não sendo propriamente uma área onde me sinta como o amigo, isto é, como peixe na água, penso que tem razão quando diz que este modelo de metrópole (gostei da destrinça que fez entre cidade e metrópole) esgota tudo à sua volta.

Ele é a voragem do cimento, a miragem do lucro fácil, o erguer blocos infindáveis de cimento que levam à uniformidade (coisa que Nietzsche abominava) e desta a uma vida quase concentracionária ...

E a cidade, como uma enorme mole, avança lentamente sugando recursos, secando terras, sorvendo águas... curiosamente, à medida que cresce desertifica-se no seu coração, empurrando as gentes para aquelas periferias que, perdidas entre o passado e o futuro,não sabem bem o que são ...

Manuel Rocha disse...

Quin...

Obrigadão por esse complemento do ultimo parágrafo porque no texto já não arranjei sitio para ele...

Viu bem que essa destrinça cidade / metrópole é essencial. Há questões de escala que invertem dinâmicas, e pode tirar o "quase" do concentracionário ...até o que não parece já é...:))

Quanto ao arroz de favas...irá, mas temos de esperar uns dois mesitos que só hoje foram para a terra...:))

Fernando Dias disse...

Caramba Manuel Rocha, você tanto andou que conseguiu puxar pela minha fisga da memória, porra…a minha infância…
Agora estou com uma salivação do caraças e a lembrar-me do cozido à portuguesa dos meus avós, do esparregado da minha avó Maria, das alheiras e das chouriças de sangue da minha avó Joaquina e do sábio do meu avô com a merda do Serigador que acertava sempre, só para me dar cabo do juízo!?

Manuel Rocha disse...

Ahahah!

Tenha paciência, F Dias, mas não lhe lamento as boas memórias...:))

Fernando Dias disse...

Manuel Rocha,
Desculpe, foi só um desabafo. Essas histórias para mim são uma delícia porque me lembram a infância, mas para mim, por razões estruturais, e até de saúde, o regresso às Serras é uma impossibilidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Prometo regressar novamente amanhã!
Agora limito-me a recordar o conceito de modo de produção asiático que Marx elaborou para estudar essas civilizações hidráulicas que refere e que também foi aplicado a algumas civilizações pré-colombianas.
Deve reconhecer que o nascimento das cidades trouxe muitos benefícios à civilização, sobretudo na Grécia Antiga, onde cidade, democracia e filosofia surgem simultaneamente numa unidade inefável, o berço da nossa civilização da liberdade. Mas estas primeiras cidades ainda estavam muito ligadas ao campo. Talvez tenha sido a revolução industrial que iniciou a dicotomia, proletarizando os desgraçados dos camponeses, de resto antecidida pela revolução agrícola, pelo menos em Inglaterra. Hoje temos as megametrópoles esbanjadoras de energia e stressantes, quase neuróticas. Talvez os novos acessos comecem a impor uma visão mais harmoniosa e complementar entre os dois meios, finalmente reconciliados... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Concordo com a sua análise, como deixei claro no comentário anterior. Mas nem tudo é mau na vida urbana: a diferença e a liberdade são experiências urbanas, como mostrou, entre outros, Georg Simmel. essa é uma das razões porque não troco a cidade pelo campo: a liberdade, a di-ferença... Contudo, é necessário levar em conta o que diz sobre a metrópole. Estudei isso em Sociologia Rural e Urbana, através de Mumford. Mas a liberdade é uma vertigem boa... :)))

Anónimo disse...

Não faço ideia o que motiva ao autor a escrita neste espaço dito blogosfera, quando me parece óbvio que, à semelhança da generalidade dos média, também ele está mais talhado para as minudências e para o acessório que para as questões estruturais que sistemáticamente são abordadas neste blog.
Este post é disso mais um exemplo, mas eis que logo aparecem os comentários derivando subtilmente para a defesa de uma condição urbana que de facto aqui não é contestada senão a partir de uma escala e conceito que manifestamente conduziu os problemas do planeamento e da gestão dos espaços metropolitanos para lá do ridiculo.
A entidade urbana que dá pelo nome de metropole não concedo os atributos de democraticidade e de liberdade que muitos lhe reinvidicam. E quanto à sustentabilidade desse modelo de organização do espaço deveriamos estar conversados, mas aparecem sempre polémicas mais "actuais".

Um texto poderoso.

Trigo Pereira

Anónimo disse...

Caro Francisco.

Eu prescindiria de Georg Simmel para concluir que a "diferença e a liberdade são criações urbanas". Há matérias em que as vivências concretas são inequivocamente mais semânticas que as reflexões que sobre elas se possam fazer. Entendo a liberdade sim como condição da diferença que alguns conseguem conquistar. E tenho sérias dúvidas que alguma vez tenha deixado de ser assim. O espaço de liberdade do proletário urbano não será certamente maior que o do camponés. A condição social de origem, essa sim, continua a ser a diferença que estabelece a margem de liberdade possível.Na cidade como no campo.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

antonio ganhão disse...

"Uma relação interdependente entre Terra, Água, Sol e engenho humano que o tempo pouco alterou – a cidade."

Brilhante! Mas a sustentabilidade não pode ser um regresso à inocência. Também esse tipo de cidade teria as suas perversidades, uma vez qe recordemos, o homem foi expulso do paraíso muito antes... ;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Trigo Pereira

Nunca neguei as classes sociais, a luta de classes e as diferenças sociais que daí derivam. Mas os operários também não trocam facilmente a cidade pelo campo, até porque estão social e "culturalmente" integrados. :)

Manuel Rocha disse...

Este indigena de há trinta anos a esta parte vem perdendo certezas todos os dias. Chegou ao ponto em que ficou só com uma ( que não fica cá para semente ...:))e tudo o resto são dúvidas, portanto não será exactamente o prótótipo de um fundamentalista " que nunca tem dúvidas e raramente se engana".

Ora o assunto deste texto ( ou a intenção ) não é de natureza apologética de uma forma de estar ou de um modo de vida. O que pretendia ( e talvez tenha desconseguido ) era sublinar que a forma tradicional como nos referimos ao território humanizado segundo uma nomeclatura meio urbano / meio rural, se esgotou perante o recente ( recente porque em 1950 apenas 140 cidades atingiam o milhão de habitantes) surgimento das metrópoles. Esta entidade urbana é de um tipo completamente novo e insuficientemente estudado, no entanto o bastante para se perceber que no seu seio os mecanismos de desregulação são mais activos que os de regulação, e não será por acaso que socialmente não se verifica inversão de opinião sobre a qualidade de vida em ambiente metropolitano.

A questão do suporte logistico destas entidades que não são produtoras é da maior relevãncia, pois para a suprir absorvem a totalidade dos recursos exaurindo a riqueza publica e acarretam impactos ambientais que muitos cãndidos ingénuos acreditam que se resolvem com pacotes legislativos de um governo de sumidades abstratas. Não resolvem. E do que existe instalado no terreno, o que se constacta é que apenas as sociedades urbanas que por razões culturais recusaram as lógicas macrocéfalas e mantiveram o conceito de cidade como factor estruturante do seu ordenamento urbano, revelam niveis positivos de satisfação com a sua qualidade de vida.

A tese que defendo é a de que o Mundo Rural já morreu há muito, portanto não há aqui defesa de regresso a coisa nenhuma nem sequer de reconstrução de um ideário lirico de um suposto paraiso perdido que nunca passou de mito literário.

O que há é a tentativa de chamar a atenção para a necessidade urgente de se repensar o sentido e o modelo da existência presente, em lugar de dispender tempo e energias colando mais remendos numa câmara de ar quando o pneu que a devia proteger nem sequer existiu ( refiro-me óbviamente ao mito da era do petroleo em que se acreditou que seria possivel viver eternamente com os niveis astronómicos de uso e consumo de nergia das ultimas decadas).

Alvorada disse...

Sim, compreendo o ponto de vista e considero que está bastante bem demonstrado.
Trata-se de dizer de outro modo o dito popular de que " Portugal é Lisboa e o resto é paisagem". No principio do verão passado resolvi tirar uns dias de férias que passei entre localidades da Beira Interior. Aparentemente parece-nos que estamos noutro mundo, mas o tema de todas as conversas era o desaparecimento da Maddie !Além disso em Monsanto só há velhos. Compreendo pois o que quer dizer quando tenta apresentar o território ( mesmo nas localidades ditas isoladas ) como "sucursal" da metrópole que o marca e esgota.
É evidente além disso que há nestas questões niveis de consciência individual que não atingimos, pois não estamos habituados a reflectir nessa direcção.

Maria

alf disse...

Qual é o problema? a melhor forma de organizar a distribuição das pessoas. Qual é a forma mais barata, eficiente, menos poluidora, menos consumidora de recursos? A concentração.

Dizer que uma metrópole consome isto e aquilo não é correcto: não é a metrópole que consome, são as pessoas.

Se olharmos para as metropoles, podemos ficar assustados: tanta gente! Mas se olharmos para o resto do pais, ficamos aliviados: tanto espaço, tanta natureza!

O que será mais impressionante: uma metrópole actual de 10 milhões de habitantes ou uma cidade romana de 100 mil?

O problema não estará na dimensão mas na organização e nas questões sociais associadas. A metrópole Lisboa tens uns 2 milhões de habitantes, uma ridicularia ao pé de outras; no entanto tem mais problemas que outras muito maiores.

Viver fora das grandes concentrações urbanas é um luxo hoje em dia, pois permite uma qualidade de vida muito melhor que nas cidades - basta estar num local onde existam umas quantas pessoas que nos interessem, dipormos de todos os recursos tecnológicos actuais, e virmos à cidade de vez em quando. Mas só nessas condições...

O problema, o problema, está em sermos muitos...

jo ra tone disse...

Manuel Rocha
Obrigado pela visita, e fico contente por ter gostado daquilo que leu.
São textos simples, mas com algum conteúdo histórico das nossas gentes, do seu passado.
Penso que seria assim que os nossos governantes se deveriam exprimir,(numa linguagem compreensível) para que TODOS os pudéssemos entender, e evitar usar aqueles palavrões que quando os mais velhos os ouvem falar perguntam geralmente aos mais novos "O que é que ele está a dizer?"
-Nem eu sei, meu pai!
Quando tiver mais tempo, e o meu PC chegar do bata branca, virei aqui mais vezes para ver o seu trabalho.
Cumprimentos