domingo, 27 de janeiro de 2008

Desabafo



Uma amiga minha que é uma activa Bibliotecária, conseguiu há algumas semanas a difícil proeza de contar com a participação do escritor L Antunes em pessoa para a apresentação do seu último trabalho a um clube de leitura que ela organizou. Para os membros do clube, maioritariamente pessoas de formação média e superior, o desafio era também o de conseguirem formular meia dúzia de questões sobre a obra que não fossem as habituais idiotices de certos meios jornalísticos, tipo “deu-lhe muito trabalho escrever este livro ?”. Claro que para o fazerem tinham que ler a obra e foi aqui que a coisa se complicou. Ao fim de três semanas a bater com as cabeças nas fragas e chegados à semana do evento, vá de se reunir o clube em intermináveis serões diários para ver se em conjunto conseguiam romper o cerco de uma linguagem que dizem ser inexpugnável e entrar na lura do Lobo!

Recorro a esta história para defender a tese de que em termos estritamente literários o recurso a linguagens densas é um direito inalienável de quem escreve, cuja valia os leitores se encarregarão de sancionar. Mas tenho para mim que nas ciências em geral é um dever escrever claro. Não apenas porque o que é impenetrável deixa as portas abertas a formas porventura simplistas ou demagógicas de explicar o Mundo ao comum mortal ( tipo “desenho inteligente”). Mas também porque não me parece que cientista ou filósofo tenham legitimidade para reivindicar apenas ao seu mérito o nível de conhecimentos que atingiram e nessa medida julgo de elementar justiça que retribuam esse investimento social neles feito devolvendo à sociedade trabalho utilizável.

Mas quando escrevi “utilizável” não me estava a referir a colectâneas de receitas da D. Maria de Lurdes Modesto, com todo o respeito que me merece o trabalho da Senhora. É que a questão do pensamento conceptual, isto é, a tentativa de ler e entender o mundo a partir de postulados e conceitos que nos dêem uma aproximação estruturada à vida e às diferentes problemáticas associadas ao seu exercício quotidiano, não me parece que careça de uma refundação sistemática da gramática e da sintaxe ! Do mesmo modo , para não nos limitarmos a pastar placidamente todos os dias e assumirmos de facto a diferenciação que enfaticamente reclamamos em relação a qualquer simpático ruminante, teremos que ter da vida noções de orgânica e sentido que não se limitem à permanente reivindicação de mais erva ou de erva mais suculenta na manejadora.
Importa pois que se adquira um ferramental linguístico e conceptual mínimos, porque teremos de convir que a partir de certa altura deixa de fazer sentido definir “proteína” em cada referência que lhe seja feita. Mas, já agora, quem hoje diz “proteína” para se referir a um composto de azoto estrutural nos seres vivos, amanhã que não nos fale de “edifício de aminoácidos seguros por ligações pépticas” para dizer a mesmíssima coisa, a menos que tal seja absolutamente indispensável e então devidamente justificado. De modo semelhante, quem hoje nos demonstra a importância da estruturação e dimensão da amostragem para dessa técnica estatistica inferir com reduzida probabilidade de erro um comportamento ou característica de uma população, que faça o obséquio de não usar no dia seguinte meia dúzia de crânios de hominídeos separados entre si por larguíssimos milhares de anos, para deles inferir a evolução do Sapiens!

Quero com isto dizer que se é verdade que a ciência e a filosofia devem descer à terra, também não faz mal nenhum à “terra” facilitar as coisas subindo um pouco a encosta, ainda que haja casos em que se justifica uma via de comunicação paralela, que é a do divulgador, também dito cidadão bem informado, nem sempre professor, raramente mestre, espécie de intermediário que tem de entender os dois lados para muitas vezes fazer a ponte entre dois tipos diferentes de autismo que frequentemente colocam o trabalho de divulgação sob fogo cruzado. De um lado a ciência ou a filosofia puras, classistas. Do outro a ignorância dura, igualmente classista. Duas formas de saloiice provinciana que se potenciam. Tão saloia é uma como provinciana a outra. A última porque quer o peixe logo em filete e nem lhe passa pela cabeça aprender a pescar. A primeira quando considera que não é possível alguém aprender a pescar sem que antes seja capaz de se referir à estrutura atómica do nylon, conhecer de cima a baixo a cadeia trófica da plataforma continental marinha, e ainda de fazer as respectivas revisões bibliográficas comentadas nos termos regimentais e em inglês! E no meio quem quer ensinar a aprender, entre palpos de aranha!

Habituado a votar vencido em júris que aplaudem teses sem uma única virgula original apenas porque são capazes de papaguear as sebentas assinaladas de acordo com os cânones em voga num certo academismo bacoco, enquanto remetem para revisão as raríssimas que se estruturam em sentido oposto, desgasto-me em declarações de voto onde tento dizer que terá que haver um momento em que as ideias que temos das coisas terão de se plasmar como a síntese possível do que sobre elas fomos capazes de apreender. Esta arenga é ressaca de mais uma delas. O conhecimento não avança por mera inércia da continua recombinação de ideias mantidas fragmentadas em compartimentos estanques, trancadas por detrás de linguagens blindadas que, por mais extensa e bem recomendada que seja a bibliografia em que se apoiam, muitas vezes têm na inacessibilidade a sua única originalidade. Não avança se se limitar a repetir-se em mero exercício de recombinatória linguística . Como também não avança se uma aluna de mestrado que gosta muito de ler Lobo Antunes porque o escritor “ tem olhos azuis”, ruboriza ao ouvir falar de “epistémico” porque julga que é um calão obsceno para alguma particularidade anatómica!

18 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Desabafo epistémico ou epistemologia do desabafo?
Sem ler previamente a obra, ninguém a pode debater verdadeiramente, a menos que fique ao nível do "jornalista"!
Concordo que a linguagem deve ser clara e tanto quanto possível simples, sem ceder muito ao estilo jornalístico. Muitas vezes a simplificação excessiva conduz a erros de interpretação: uns podem ser assumidos, outros são fatais. Por isso, deixei de ler praticamente livros de divulgação do estilo daqueles que são dispersos pelo DRNatura. A beleza das teorias é manchada e ficamos com muita "treta opinativa". E num debate essas pessoas opinam arbitrariamente, dizem desmentir ou preferir ou pensar, quando na verdade não dominam os assuntos. Porque quem não sabe, quando ouve uma exposição simples, "agarra" uma frase e a partir daí começa a improvisar. Se lhe perguntar o que é uma proteína, não responde ou tenta escapar à resposta, mas após lhe apresentar o conceito ela pode dizer: "não concordo". Fim da picada! :))
Mas é desse modo que se funciona: não estudam mas emitem constantemente opiniões!

Manuel Rocha disse...

Há uma variante interessante para o tradicional "não concordo": "demasiado académico!":)

Quanto ao "estilo jornalistico", ele não divulga, manipula!

Concordamos que a divulgação séria tem de gerir esses delicados equilibrios entre a tentação pelas derivas simplistas e um formalismo inacessível. Mas é aí que temos de investir ( esforço reciproco ). Ou então aceita-se por adquirido que não há democracia possível porque nunca haverá como atingir uma sociedade com capacidade de decisão bem informada.

antonio ganhão disse...

"edifício de aminoácidos seguros por ligações pépticas"

Só é brilhante se for uma perfeita abstração para quem lê. Parece Lobo Antunes, tem sonoridade ritmo e seguramente que encerra em si conhecimento. Tão inacessível como fascinante!

Manuel, prometa-me que nunca se dedicará à política. Considero-o já suficientemente perigoso e seria bom não aumentar esse nível.

Manuel Rocha disse...

António,

Prometo !

:)))

Anónimo disse...

"Quero... dizer que se é verdade que a ciência e a filosofia devem descer à terra, também não faz mal nenhum à “terra” facilitar as coisas subindo um pouco a encosta, ainda que haja casos em que se justifica uma via de comunicação paralela, que é a do divulgador, também dito cidadão bem informado, nem sempre professor, raramente mestre, espécie de intermediário que tem de entender os dois lados para muitas vezes fazer a ponte entre dois tipos diferentes de autismo."


Como divulgador por ofício, não só subscrevo como aplaudo !

Muito bem !

Apreciei a subtileza do "raramente mestre", porque só essa condição pode ensinar a estudar e a pensar para que não se caia no facilitismo opinativo muito bem tipificado no primeiro comentário.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

Anónimo disse...

Gostei muito deste texto porque trata da questão do acesso ao conhecimento em termos bastante práticos dizendo as coisas como elas são: de um lado os que querem a cama feita, mesa posta e roupa lavada, e do outro as autênticas torres de marfim de certos ramos do saber defendidas pelas tais muralhas de linguagens impenetraveis que muitas vezes também servem apenas para esconder a ignorância.
Por isso e porque quem,por exemplo, ensine num secundário e tenha um horário completo, não tem tempo para se manter up-date ( mesmo que desista de todo do que ainda sobra de vida pessoal e familiar) a boa divulgação do conhecimento fará sempre falta.
Concordo com o primeiro comentário quando refere os perigos de erros de interpretação e excessos de simplificação. Mas esses erros já existem por exemplo e desde logo nas traduções dos próprios originais. É um risco que se corre e que temos de assumir.
Concordo também que vivemos numa sociedade muito opinativa. Mas não acho que isso seja necessariamente mau se as pessoas estiverem disponiveis para usar as opiniões que têm das coisas para, dialogando, melhorar o seu conhecimento sobre elas. O pior é quando têm as opiniões como certezas. Ora esse fenómeno não me parece exclusivo da dita opinião publica, pois conheço casos de conceituados cientistas que têm debitado opiniões sobre os mais diversos assuntos e que durante algum tempo até fazem escola porque ninguém ousa contestar a palavra de uma sumidade por muito infundada que ela esteja. Parece-me pois claro que há aqui equilibrios que terão de se fazer, ou a procura da meia-encosta usando a metáfora do autor.

Rita disse...

Com o risco de levar uma saraivada de críticas, isso que acabou de escrever eu aplico-o directinho ao "Equador", que para mim não passou de um exercício de exame intitulado "Escreva isto ao estilo Queirosiano".
Lobo antunes é deprimente demais para mim. Acho que até para ele mesmo, pela última crónica que lhe li...

quintarantino disse...

Sem mais delongas, escrever e falar de forma que todos entendam não custa nada.

Desconfio sempre, e muito, dos comunicadores que têm de se refugiar no jargão alegadamente tecnicista.

Nesse domínio, os ditos especialistas em Educação são um "must".

Alvorada disse...

Sim, concordo!
Na minha área profissional, a medicina, todos os dias me debato com esse problema quanto tenho de explicar ao doente quadros mais complexos. Faço o meu melhor mas o olhar de incompreensão que muitas vezes recebo de volta faz-me desejar um "intérprete". É pois facto é que somos formados numa linguagem da qual não é facil regressar. E também não me parece que a maioria das vezes houvesse disso necessidade. Subscrevo pois que o desenvolvimento harmonioso de uma sociedade requeira esforços reciprocos no sentido do uso de um vocabulário que pode ser acessível sem com isso se tornar simplista. Mas é como se diz: com isso é possivel que haja quem sinta ameaçado o seu status.

Maria

Patrícia Grade disse...

Manuel, permita-me comentar aqui no seu posto, apesar de a concordância entre nós não ser habitual.

Escrever sobre um tema técnico com simplicidade não é tarefa fácil, ao contrário do que diz o Quint. Para se escrever com simplicidade sobre seja o que for, sem se cair no simplismo, é necessário deter um conhecimento aprofundado sobre o mesmo e ter dele uma visão distanciada ao mesmo tempo. É o mesmo que, perdoando-me o simplismo, ensinar alguém a ler e escrever. Já repararam como é frustrante para um adulto ver a dificuldade de uma criança em aprender as letras, ou a juntar sílabas?
Um académico que esteja habituado a falar com académicos não sente necessidade de baixar a fasquia, o seu meio compreende-o e isso basta-lhe. O problema surge quando alguém tem de se dirigir a público mais simples e daí ao simplismo vai um passinho de formiga.
Um escritor que não tenha por ambição passar qualquer tipo de mensagem, que escreva apenas pelo prazer de o fazer, ou pelo menos, que não tenha a pretensão de ensinar algo a alguém, tem toda a liberdade para exercitar o léxico como lhe aprouver, pode brincar com as palavras, dar-lhes duplos sentidos e até confundir o leitor que tenha vontade de o ler. A responsabilidade social do escritor, que existe de facto, não se assemelha à de um cientista ou de um engenheiro, politico, professor, ou qualquer outro profissional técnico que tenha de falar, escrever, explicar tudo "por miudos".
Dominar um tema nem sempre é sinónimo de discurso simplificado, mas infelizmente, muitas vezes o não dominio do tema é sinónimo de discurso simplista.
Porém, parece-me, pela leitura de blogs por essa via blóguica fora, que a sociedade começa a sofrer uma inversão. Tenho sentido uma maior abertura por parte dos que leio em posts e comentários. Uma maior necessidade de saber, de se informar.
Talvez esta maré que navegamos venha a ter mais peixe contra corrente, do que aqueles que imaginava... A esperança é, afinal, a ultima a morrer...

Patrícia Grade disse...

Ah! E já agora, não querendo publicitar o meu blog mas aproveitando a maré, convido-o a dar um pulinho ao ratodebiblioteca. É que postei hoje um video que é capaz de interessar, fala-se de novas ideias, de mudar mentalidades... É em inglês... há problema?
Ouça com atenção. Alguém que de forma simples nos dá a provar um pouco da genialidade.

Manuel Rocha disse...

Trigo Pereira,

Pois...os mestres...produto raro! :)

Lurdes,

O problema da "meia-encosta" é que qum habita mais alto acha que fica com menos vista, e quem está cá em baixo prefere fazer desporto no ginásio...qual "montanhismo"...:))

Rita,

E eu que pensava que andava a ler o Décimo Selo ( ou seria o Nono...) ??!!...:))

Alvorada,

Não sei se será só status, porque quando se criam hábitos de raciocinio e linguagens especificas para os fazer, temos dificuldade até em pensar fora dessa linguagem...:(

Por isso concordo com o que diz a minha vizinha Indomável, e discordo do Quin no seu primeiro parágrafo.

Há de facto matérias em que dá uma trabalheira do caraças sair do jargão técnico. E trabalheira a dobrar quando não se quer cair no simplismo. Se essa capacidade de comunicação fosse uma preocupação de origem logo ao nivel da formação, poderia ser diferente...mas alterar o molde depois de seco é complicado...:(

Mas como diz o F Dias lá no lado dele, "Tem de Ser !"


Video em inglés, Indomável ?! Hummmmmmmm...se for só de praia, marcha...senão, chamo a Blonde..:)))

Rita disse...

Não,não, ainda não comecei o "Sétimo Selo". Tive o "Equador" nas mãos o tempo suficiente para o ler e graças às boas políticas da FNAC consegui ir lá e trocá-lo por uma enciclopédia de Agricultura Biológica. O que acabou por não ser muito diferente do destino que lhe ia dar se tivesse que ficar com ele: compostá-lo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tenho um desafio para o Manuel

Eis o desafio: natureza e mito estão intimamente associados e, enquanto esta ligação não é quebrada, a sociedade integra-se na "harmonia natural".
Mas, nós ocidentais, substituímos o mito pela História e, por isso, encaramos a natureza em termos instrumentais. :)))

Manuel Rocha disse...

Rita,

Minha "gaulesa" favorita....então isso é lá coisa que se faça ao Miguelito ?!

:)))


Francisco,

Já me tramou...desafio aceite !
( tem data de entrega ?)



:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Acabei de ler a sua comunicação e gostei muito da metáfora que orienta a sua análise da paisagem. Os tempos! Os mitos! Afinal, tem aqui a resposta ao desafio que lhe tinha colocado! :)))

Alvorada disse...

Vinha à procura do "desafio" do Francisco ( risos )....

Para quando ?

( Confesso que estou curiosa...)

Maria

el.sa disse...

O "esoterismo" linguístico é uma ironia da linguagem. Teoricamente utilizar-se-ia a linguagem para "comunicare" (pôr em comum), mas esta é tantas vezes usada para dividir, afastar...
Há quem não queira ser compreendido, apenas agraciado pelas "palavras caras" que enriquecem o status. Há também quem tente esconder a sua ignorância recorrendo a terminologias desconhecidas do público alvo.
Mas isto acontece porque este tipo de comportamento é muitas vezes enaltecido e alimentado por quem não compreende e por quem tem uma aitude semelhante...
Gostei do texto por lançar a rede neste mar de incompreensão e por defender um terreno neutro de entendimento.
Beijinhos compreensíveis***