quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Sol e Sal

Há quem afirme o Ocidente como fruto civilizacional do Cristianismo. Será . Mas que não se menospreze na ideologia que o Ocidente é também fruto do Mediterrâneo, que de resto deu muitos outros frutos e por isso há quem lhe chame "berço de civilizações".

No contexto da geografia global, o espaço mediterrânico tem características únicas que, na era pré-industrial, constituíram aquilo a que os economistas actuais chamariam de "vantagens comparativas substanciais": um mar interior sem grandes problemas de navegabilidade a permitir comunicações fáceis numa vasta área geográfica e, mais importante, um clima único.

O clima dito mediterrânico é um subtipo dos climas temperados com quatro estações bem marcadas, bastante bem tolerado pelos humanos, mas é um clima raro. Além da bacia mediterrânica, só ocorre na Califórnia, no sul da África do Sul, numa pequena faixa no sul da Austrália, e tem por particularidade que a estação quente é seca !

Qual a importância deste detalhe na história ?

A história do Ocidente é antes de mais uma história de sucesso no controlo das técnicas agrícolas, com particular relevo para o controlo da produção de cereais, particularmente do trigo, que foi durante séculos o grande pilar da dieta alimentar dos povos do mediterrâneo.

Ora a produção de trigo na era pré-industrial tinha um problema, a saber, a secagem do grão a seguir à colheita, para que pudesse ser armazenado em boas condições de conservação. Após a ceifa, as searas eram convertidas em molhos, estes arrumados em roleiros nas eiras onde terminavam o processo de secagem e aguardavam a debulha e a alimpa antes de o grão seguir bem seco para armazém.

Se neste processo, entre a maturação do grão no campo ( Maio ) e o armazenamento ( Julho/ Agosto) chove, arruína-se uma boa colheita, que era o que acontecia com espantosa facilidade nos campos da Europa do Norte onde, apesar dos solos mais férteis e de produtividades muito mais elevadas, eram mais que muitos os anos em que não se aproveitava um grão . Exactamente o que aconteceu nos anos anteriores à Revolução Francesa, fazendo grassar a fome e o descontentamento popular que potenciaram a revolta.

Além do trigo, o clima mediterrânico é ideal para a conservação por secagem de outros produtos tipicamente mediterrânicos de elevado valor alimentar: figo e amêndoa, fava e ervilha. Permite ainda a conservação por secagem do peixe ( abundante ) e da carne. E, the last but not the least, a produção de sal marinho, um produto que se vende por si e ainda ajuda a vender muitos outros por si conservados. Tudo técnicas que o Ocidente incorporou directamente dos povos mediterrânicos , nomeadamente dos Árabes, outra civilização do Mediterrânio.

A importância do Mediterrâneo na história agrícola da Europa só se começou a diluir depois das descobertas, com a chegada do arroz da Indochina e do milho e da batata da América. Curiosamente, depois de ter feito prosperar a Europa do Norte, a batata quase a arruinou, quando em meados do século xix o míldio da batateira provocou a que ficaria conhecida como a grande “fome da batata” e obrigou à emigração em peso de milhões de irlandeses,holandeses, dinamarqueses, entre outros, e potenciou a colonização da América.
Para a História ficou a história da fome da batata, pela escala inusitada. E depois disso a História da Europa re-escreveu-se sob a batuta dos países que melhor proveito retiraram dos colonialismos pós-descobertas e da industrialização. Sobre o fiel amigo Mediterrâneo que com o seu clima generoso sempre correspondeu ao que dele se pediu, qual autêntico burro de carga de mais que uma civilização, pouco se diz, talvez porque nunca falhou !

20 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Falei do Braudel, porque ele criou o conceito de "longa duração" e fez um elogio à "geohistória" praticada por Jaime Cortesão em Portugal! E vem a propósito do tema deste seu post! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Braudel descreve o Mediterrâneo milimetricamente, quase como um "sujeito" ou agente da história! Giro mas muito longooo...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Orlando Ribeiro! Vitorino Godinho! Jaime cortesão! Braudel é o historiador do Mediterrâneo e das suas "culturas"!

E. A. disse...

O Ocidente é fruto dos Gregos e do Cristianismo, é assim.

Acho muito interessante o seu texto, porque concordo que a geografia tenha sido determinante. Não só na civilização ocidental, mas o Delta do Nilo, o Crescente Fértil, etc...

Sol e Sal é o que preciso para nos purificarmos. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Pena! Vai adorar ler o Braudel, já que gosta do Mediterrâneo! Tem uma obra mais pequena..., com esse título! Vale a pena lê-lo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A Papillon já leu Braudel, pelos menos os escritos sobre história!

Manuel Rocha disse...

Exacto, Papillon...sempre o mesmo clima...e nos casos do Nilo e da "Terra entre Rios", acrescenta-se o efeito fertilizador das cheias periódicas, que agora foram declaradas "catástrofes naturais" e bloqueadas por barragens ...;(

antonio ganhão disse...

Voltarei com mais calma, mas só é permitido um post por dia, de preferência de três em três dias... ok?

Fernando Dias disse...

Concordo com Francisco: quem tenha paixão pelo Mediterrâneo, como eu, Braudel é extraordinário. O Manuel iria gostar de ler os dois tomos de “O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II”, mas para mim é história económica ao estilo Proustiniano, onde até põe gráficos de responsabilidades de conjunturas. E eu de economia sou um zero. Mas memórias do Mediterrâneo, Pré-História e Antiguidade é uma delícia, tipo Papillon…

Rita disse...

Infelizmente, é facto conhecido que devido ao movimento das placas continentais, a longo prazo o Mediterrãneo vai secar... mas podemos sempre esperar que isso seja contrariado pela subida das águas devido ao aquecimento global:)
E O TOMATE, Manuel! A importação mais significativa que fizémos do continente americano! A base histórica do guisado e do esturgido, Manuel! Como é que se pode ter esquecido do tomate!:)eheh

Manuel Rocha disse...

Rita, eu não me esqueci...seleccionei apenas os que são estrutura de base da dieta, o que até nem era o caso do dito pois como não dava para coservar em quantidade tinha consumo limitado á sua época, certo ?
Além disso os nossos amigos da Europa do Norte não têm clima que lhes permita ter tomates, mais um ponto a favor dos mediterrânicos...

Que seriamos de nós sem tomates ....

::)))

quintarantino disse...

... ninguém, Manuel, ninguém ... sem tomates, não seríamos ninguém ... e alguns, mesmo com eles ...

Manuel Rocha disse...

Quint e Rita:

Ponto de ordem à discussão: o tema é sol e sal e não tomates com sal... então ?!

::)))

( Por acaso costumo cultivar aí uns daquelas variedades pré-plásticas que só com sal, bem...)

Mariano Feio disse...

Oh amigo Manuel Rocha, mas olhe que, e isto sem querer desrespeitar a sua chamada à ordem, sem sol não há tomates e sem sal ficam insonsos, ehehe...
Gostei muito deste post, cheio de novidades para mim. Recordando algumas coisas que já aqui li posso concluir que sem o petróleo a ajudar a agricultura do norte a do sul voltaria ao seu antigo esplendor ?
Se o Francisco me indicasse um livro para começar a ler o historiador Jaime Cortesão, eu ficava agradecido.

antonio ganhão disse...

O mar como regulador de humores… os do clima, seguramente mais fáceis do que os dos homens.

Manuel Rocha disse...

Blue...

E ainda te esqueceste da luz, que é um optimo anti-depressivo natural...:))

Imagina como seria a tua vida aí onde estás há 500 anos nesta altura do ano...como é que querias que durassem tanto como os do sul ?!

Tiago R Cardoso disse...

"O clima dito mediterrânico é um subtipo dos climas temperados com quatro estações bem marcadas...", para já considero que é uma frase que deveria estar escrita no passado.

Depois apreciei seu texto e o seu ponto de vista, pena que hoje em dia o sal e o sol, tenham significados e importância diferente do que seria desejável.

Manuel Rocha disse...

Exacto, Tiago !

Mas o tempo muda muita coisa, nunca se sabe como será o dia de amanhã.
:)
Quanto ao clima, as quatro estações continuam bem distintas. No entanto, aí no seu norte, há um factor extra que não é bem tipico da bacia mediterrânica, que ciclicamente altera certas regras: a forte influência Atlântica!

Tiago R Cardoso disse...

Depois desta resposta fiquei com medo de dizer que eram as alterações climáticas...

Manuel Rocha disse...

Ahaha!

Fez muito bem Tiago !
Este blog tem um cão de guarda que morde quando ouve falar nesse assunto...::))))