quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

New York, New York...

A reflexão sobre o ordenamento do território é algo mais que um mero exercício de literatura fracturante para produzir posicionamentos contra uma matriz urbana ou em prol de uma matriz orgânica.

Tudo o que implique pensar o futuro num horizonte temporal que transcenda as próximas férias no Haiti, obriga a uma justificação e a um projecto. Para justificação serve a noção generalizada de que não se vive no melhor dos mundos. Ao projecto pede-se um paradigma, uma filosofia, algo que nos dê uma meta, que nos proponha “o quê” . Ao politico pede-se que leve o projecto à prática, que estabeleça “como e quando”. Mas para concretizar o projecto a sociedade precisa de “onde e com o quê”!

Em economia abstracta, os postulados e as análises têm sido engendrados de tal forma que as explicações para o funcionamento da máquina económica são apresentadas independentemente das coordenadas espaciais, sem quaisquer preocupações de explorar as realidades dum ponto de vista dimensional. Isto mesmo nos casos em que essa exploração podia ser relativamente imediata. Funções e propensões económicas são interpretadas e apresentadas como grandezas não localizadas. Os mercados e as empresas são analisados sem preocupação da sua localização e da sua dimensão. Mesmo as relações económicas internacionais neste tempo de globalizações são conduzidas a partir de postulados de imobilidade externa dos factores de produção e de mobilidade externa dos produtos e interna dos factores, umas e outras supostas perfeitas. Na própria teoria da concorrência monopolista o espaço é apenas apontado como um dos factores justificadores da diferenciação dos produtos. Uma deriva que levou vários autores a lamentar o que designariam por “enviesamento anglo-saxónico”, que privilegiou as variáveis preço e tempo na abordagem económica, negligenciado completamente a variável espaço , como se tudo na economia pudesse limitar-se a um ponto.

O menosprezo pelo factor localização deve-se a uma razão bastante simples: petróleo ! Foi o aperfeiçoamento técnico da utilização desta fonte de elevada intensidade energética e o seu baixo preço politico que permitiram aos economistas confiar na eficácia e sofisticação de um sistema de transportes cada vez mais complexo para pensar a economia desprezando a variável localização.

Nessa lógica monetarista apoiam-se todas as economias ditas de escala, das globais às locais. É ela que aconselha o fecho de centros de saúde ou de escolas com pouca afluência, porque fica “mais barato”transportar os doentes ou os estudantes. Mas a lógica monetarista e a lógica energética são conflituais. A primeira troca petróleo por comida; a segunda reconhece que o petróleo não se come , e vai alertando para o facto de a produção de alimentos que hoje mata a fome a quem dela nunca sofreu, assentar exactamente na troca directa de petróleo por comida.

Explico: o trigo que o Canadá produz e Portugal compra, é semeado, fertilizado, colhido, secado, transportado e processado a petróleo. Assim mesmo. O que quer dizer que qualquer alteração drástica no preço do petróleo pode fazer com que toda esta dinâmica transatlântica fique comprometida. Razão dupla: toda a cadeia do pão ( produção, transporte e tarnsformação do trigo) muito mais cara e muito menos com que o pagar ( nenhum turismo, p.e.).

É perante um cenário deste tipo, de ruptura súbita de um complexo sistema económico assente na incontornável logística de transporte tal como a conhecemos, perfeitamente plausível, que as politicas de ordenamento do território que entretanto se tenham ou não consolidado farão toda a diferença. Uma lógica orgânica do espaço assente em aglomerados urbanos de média dimensão do tipo cidade( até 100.00 habitantes ) reajusta-se ao território envolvente. Mas uma matriz urbana do tipo metropolitano não tem essa elasticidade. No seu processo de crescimento degradou irreversivelmente o potencial de utilização primário do espaço em que se insere ( não tem onde, nem com o quê ), o que só aumentará a sua dependência de fluxos exteriores inviáveis nesse cenário logístico, ao mesmo tempo que irá amplificar todo o tipo de des-regulações em toda a sua esfera de influência. Esta a grande fragilidade do conceito de metrópole, e ponderosa razão de desafio à sociedade que se reivindica do conhecimento para que o repense e resolva com sabedoria.

Nota: Seguindo um hábito antigo uso "petróleo" como genérico para recursos energéticos de origem fóssil e não renováveis.

23 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummm... New York é uma metrópole linda.
Gostei, como sempre, deste seu post: mais um bom post. Não o conheço pessoalmente, nem a sua área, mas parece que caminha na direcção do pensamento conceptual e isso agrada-me. Sim, a economia está aparentemente nesse domínio, mas esquece a "localização", que para si é fundamental. De facto, temos dificuldade depensar o espaço ou mesmo o tempo, talvez porque sejam vistos como coordenadas demasiado abstractas mas evidentes. Mas o espaço não é somente "quadro" ou "moldura" ou mesmo mero "meio": é activo e configurador. É neste aspecto que não percebo como a partir dessa ausência de "localização" infere a distinção entre os dois modelos: o monetarista, que negligencia a localização (diferente de espaço), e o energético, com destaque da localização.
Se achar a minha dúvida "tola", não responda. :)))

Manuel Rocha disse...

Rigorosamente nada tola, Francisco...:), mas absolutamente incontornável porque chama a atenção para um aspecto menos claro do texto.

Vejamos: sem uma fonte de energia de fácil uso e barata, toda a logistica económica que hoje funciona de forma independente da origem geográfica do bem de consumo, não existiria ( inviável importar carne de borrego da Nova Zelandia ou de vaca da Argentina, p.e ) . Num cenário destes ( transportes inacessiveis, por escassez ou elevado preço de combustiveis ) a proximidade das fontes de produção relativamente ao consumidor, é essencial.

No modelo monetarista, importa o custo, apenas isso . É mais barato ( dá mais lucro ) importar a vaca da Argentina ? Pois venha ela !

Manuel Rocha disse...

Francisco,

É precisamente essa valia do espaço ( activo e configurador ), porque o espaço ( localização ) é geográfico e logo pouco "elástico", que importa potenciar quando se fala em sustentabilidade. Colo completamente este conceito aos seus criadores ( Odum , de "perenity )que o remetem para a racionalização do uso da energia...nada das derivas pós-Brundtaland...::))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, percebi e também admiro Odum. A racionalização do consumo de energia exige, de algum modo, uma mudança no nosso estilo de vida, aliás exageradamente consumista. Eu penso que os políticos até alinham nisso, mas o sistema económico não quer essa mudança. A economia bloqueia-nos completamente e, se levarmos em conta as reivindições de todo o globo, ficamos paralisados.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E, se levarmos em conta a demografia e sua composição, concluimos que caminhamos na direcção do abismo: uma via biologicamente inviável e isto por causa desta nova fase do capitalismo. Irracional, mas... ninguém quer saber...

Manuel Rocha disse...

Ou então ocorre a tal implosão de que falavamos no seu lado e depois logo se vê como as coisas se reorganizam...:)

Repare...o titulo New York ( não devia dizer isto, mas....) não é acidental. A grande crise do capitalismo na América dos 30,s, fez-se sentir lá como em nenhum outro lugar. Como só conhecemos o fenómeno a partir do cinema, julga-se argumento de ficção, mas não há ficção que ilustre devidamente fome e miséria. Ora a metrópole auto-bloqueia quando a máquina económica gripa. Imagine nos dias de hoje, com sub-sistemas de interdependência muitissimo mais complexos, como seria...Lembra-se de Buenes Aires na última mini-crise Argentina ?...

Anónimo disse...

Grande pertinência, elevada capacidade de síntese, excelente domínio dos temas . Diz muito bem a incontornável importância geo-estratégica de um teritório organizado, porque então dotado de autonomia perante qualquer sobressalto económico ou civilizacional. Diz ainda melhor o efeito pernicioso da metrópole –conceito nessa matéria. Excelente também a interacção com o comentador J Francisco, a quem me permito interpelar daqui para garantir que “há quem queira saber”, e para o cumprimentar pelo seu próprio espaço, onde sou visita irregular mas ainda insuficientemente “documentada” para aceder aos comentários.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

Anónimo disse...

Manuel Rocha,
Bloqueei! ( risos )

“postulados de imobilidade externa dos factores de produção e de mobilidade externa dos produtos e interna dos factores”

?!

Esclarece-me por favor ?

Matilde Costa

Manuel Rocha disse...

Trigo Pereira,

Obrigado !

Matilde,

Ui…essa saiu mesmo “comprimida”…:), tem toda a razão e esclareço com todo o gosto:

.”imobilidade externa dos factores de produção”: como o trigo, irrelevante se vem do Canadá ou de França – conta o preço ( hoje muitos dos bens são negociados quando já em trânsito em Alto Mar );

.”mobilidade externa dos produtos”: o inverso do anterior, mas na perspectiva de quem produz e vende ( irrelevante o destino geográfico);

-“mobilidade interna dos factores”: como a mão de obra interna, que “segue” o emprego para onde ele for ( em Portugal nem tanto…).

Anónimo disse...

Manuel Rocha,

E eu a pensar que o tinha "apanhado" a "copiar/ colar".

( risos )

Quer dizer que além de navegar as águas ambientais também navega as económicas ? E onde é que se aprende a ser assim sintéctico ? Nem imagina como me fazia falta!

rsrsrsrsr

Matilde

Tiago R Cardoso disse...

Eu aqui fico a ve-los passar...

Entretanto aguarda-se para breve o acabar do planalto de produção petrolífera e começarem a descer a montanha, aproximando-se o fim da sociedade, pobre sociedade que investiu e se sustem num produto finito...

quintarantino disse...

"Houston, we have a problem ...", assim poderia ter começado o seu texto.

Em primeiro lugar porque conheço poucos exemplos de urbes modernas cujo planeamento tenha obedecido a uma lógica de aproveitamento racional das potencialidades dos solos e correcto enquadramento das manchas de implantação de edificação na própria morfologia do solo.

Desviaram-se cursos de água, entubaram-se até, deixou-se crescer prédios em altura à face dos passeios impermeabilizando todo o miolo interior (nunca percebi por que não se obrigava a que essas espaços mortos fossem usados como logradouros ajardinados comuns a todas as constuções confinantes), edificaram-se equipamentos em locais impossíveis.

Enfim, importava crescer e pouco mais.

Hoje, para se corrigirem alguns desses erros, não se consegue. Como é que se alarga uma rua que está ladeada de construções? Expropria-se, dirão alguns. A que custo?

Ora, assim acontanadas e com necessidades crescentes de mais espaços, porque o miolo urbano coeçou a ser destinado pelo imobiliário especulativo a serviços, as urbes forma paulatinamente arrastando para mais longe fontes de abastecimento de que carecem.

Ou até como fenómenos de lazer, como tive já oportunidade de constatar em cidades francesas onde se criaram "hortas para urbanos relaxarem".

Tudo isto assente em meios de transporte que, na sua maioria, recorrem ao tal outo negro.

Num ciclo infernal e vicioso onde, face à tragédia que foi a libertação de um capitalismo especulativo, o que importa é o lucro. Tem de surgir rápido e em margens crescentemente superiores.
Quanto mais se ganha, melhor.

Penso que só mesmo a implosão fará terminar tudo isto. Não a temia.
Ao caos que se instalaria, aqueles que escapassem haveriam de redescobrir novas formas de prosseguirem a caminhada.

Manuel Rocha disse...

Quin,

Esse teria sido o titulo ideal...::)) na próxima peço-lhe sugestões antes da publicação...

Quanto ao planeamento urbano com espaço para hortas, fez-se imenso nos países do leste no tempo da outra senhora....e parece que deram imenso jeito quando o "muro" caiu...::))

Em terminologia militar, diria que estamos fazendo as coisas de forma a cortar o nosso próprio caminho de retirada, ou seja, destroi-se a ponte depois de passar por ela...e depois não há por onde descer a montanha de que fala o Tiago ...:)

Anónimo disse...

"É perante um cenário deste tipo, de ruptura súbita de um complexo sistema económico assente na incontornável logística de transporte..."
Além do problema do eventual "colapso" devido a problemas de energia (aumento dos custos/falta de combustível) a macrocefalia gera outros problemas que felizmente ainda não passaram de casos pontuais. Por exemplo passamos a vida com "constipações" devido a um acidente na Ponte 25 de Abril, uma greve de uma transportadora, etc, etc.
A máquina (no sentido de uma grande cidade como sistema complexo) vacila com qualquer grão de areia. Será talvez falta de redundância em pontos chave, tais como transportes, abastecimento de energia/água, recolha do lixo, etc.
Provavelmente as cidades foram crescendo, criando problemas, levando à aplicação de soluções pontuais para esses problemas, gerando novos problemas... será que temos as metrópoles seguradas por fios?

Manuel Rocha disse...

Osvaldo,

Quanto a mim a questão pode ser um pouco mais grave, porque o problema já não se restringe às áreas metropolitanas própriamente ditas mas à envolvente ( lato senso )que elas condicionam e que subjugadas à mesma lógica funcional, deixaram em muitos casos de constituir uma "retaguarda" possível.

Eu diria que é o próprio modelo civilizacional de que elas fazem parte que está seguro por fios - de petróleo...:)

Anónimo disse...

A afirmação de que a localização não tem sido tida na devida conta na organização da actividade económica, parece-me dificil de sustentar.

Olhando para o universo empresarial e para a forma como ele se movimenta, facilmente se percebe que é na localização que procura as vantagens marginais comparativas que são factor de competitividade incontornável.

Quanto às metrópoles, concordo que algumas delas revelam sinais de ingovernabilidade. Mas também não me parece fácil sustentar que se trate de um problema generalizavel.

Manuel Rocha disse...

C. Marques:

É como diz. As empresas procuram as localizações mais vantajosas. Mas o critério é monetário e não de eficiência energética ou de estratégia de desenvolvimento regional não assimétrico.É esse o meu ponto. E daqui sigo para o seu último parágrafo, para lhe sugerir um exercicio de projecção para um cenário de funcionamento coerente e viável do modelo metropole fora do paradigma energético vigente. Se conseguir, desde já lhe asseguro a minha conversão imediata. Mas não vá pelo argumento das energias alternativas. É que desmontar esse já nem sequer dá gozo ...::))

Anónimo disse...

Terá razão.

Ainda assim parece-me forçado comparar metrópoles como Copenhaga-Malmo e cidade do México.

Estou em crer que ilustram à saciedade a capacidade diferenciadora de modelos de planeamento e gestão, igualmente capazes de fazer toda a diferença em condições criticas, não lhe parece ?

Manuel Rocha disse...

C. Marques,

Também tem razão:)

Mas repare que independentemente da qualidade da logistica o factor que a abastece é o mesmo, certo ?

Mas é evidente que do ponto de vista do ordenamento do território, Copenhaga e México são entidades distintas. A primeira tem "retaguarda" ( há rede orgânica de humanização para lá da metropole ), a segunda já não.

As nossas áreas metropolitanas estão a meio desse processo do qual não conheço retrocessos...



Blue,

Aquela da "imobilidade" saiu-me demasiado comprimida..:)
Repara...refiro-a na perspectiva da economia abstracta de natureza monetarista, em que o que é relevante é quanto custa ( dinheiro )e não de onde vem e a que custo energético ( calorias ), razão pela qual ( preço dos combustiveis acessivel ) tem encarado os factores de produção como se fossem todos provenientes de um mesmo ponto-preço ( melhor encontro entre oferta e procura ).

Relativamente aos modelos urbanisticos de certas metropoles, olha que a diluição de que falas é pior que certos modelos em altura. No caso de LA, por exemplo, a extensão da urbe diluida pelo Vale de Sacramento ( dos melhores aluviões do mundo )é disso exemplo, pois está a crescer sobre a maior reserva energética regional ( solo arável fertilissimo).

Quanto ao resto, não sou catastrofista...:).O meu ponto sempre foi o de que não será pelas asneiras que se façam que isto deixará de girar. O caso é que engalinho com ver a malta muito convicta á parlar de sustentabilidade enquanto se atarefa de redor de paliativos e fait-divers que não contribuem nada para esse peditório..:)) apenas isso !

Manuel Rocha disse...

C. Marques,

Mais uma nota:

Esta coisa das grelhas de classificação também é um problema tramado. No caso da nossa conversa estamos a falar de metropoles mas a comparar um milhão de habitantes com dez milhões! Ora dez milhões não é apenas 10 x 1 !!!

Tendemos a esquecer que os grandes números reportam para realidades muito distintas dos pequenos. Imagine um Katrina na cidade do México, por exemplo...:(

Manuel Rocha disse...

Blue,

Pode ser que já se vá percebendo que a manutenção dessa reserva de retaguarda é mais estratégica que muitas outras derivas...

Tb por aí acho que já circula um ambiente muito mais comedido relativamente à mitologia dos "biocombustiveis"...têm-me chegado reports alemães endossados à Comissão onde o "disparate" já é evidente e onde se sugerem urgentes inversões de politicas ( nomeadamente da meta dos 10% de biofuel)...Enfim !

Tb com os assessores para o ambiente que lá tem ( Seromenho § companhia ) que podia o Durão fazer ?!...:::))))))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Sartre diz que a cidade é uma "série de série", portanto, um aglomerado de pessoas que não estão vinculadas entre si por projectos comuns. Logo, na cidade todos somos rivais uns dos outros e lutamos pelo acesso à insuficiência de bens: a escassez.
Talvez este conceito lhe seja útil, não sei! :)

antonio ganhão disse...

Devemos comer menos energia... ora aí está um conceito difícil de passar.

Eu até compro no mini-mercado ao pé de caso e vou a pé! Já diminui a minha dependência do petróleo! ;)