terça-feira, 18 de março de 2008

A Lebre e a Tartaruga

- Oh, amigo!...Sabe dizer-me para onde vai esta estrada….??
- Olhe…Esta estrada não vai...Fica!

Trata-se de uma história antiga. É contada no Alferce a propósito de um automobilista domingueiro que numa tarde soalheira de um Fevereiro já com barbas brancas se aventurou à descoberta do destino a que levaria aquele bocado de asfalto de assentamento recente, sim, mas sem saída. Mas isso só ele descobriu depois de desenganado pelo Tóino Luis, já na entrada do Povo. O mesmo Tóino Luis que hoje reconta a polémica origem da natureza curvilínea do troço final do trajecto, fruto dum despique mal resolvido entre os partidários do tino da mula do Nunes e os incondicionais da desenvoltura do burro do César. Este, puxava mais à volta das Cortes; aquela, favorecia a Maia. Não se entenderam e foi preciso recorrer à burra da Lisete para o desempate. Acudia esta pelo nome de “Pampilha” e terá “resolvido” dividir o Alto ao meio, que foi por onde se fez a estrada que “ficava”.

Esclareçam-se os incautos leitores que não há melhor topógrafo a marcar curvas de nível que uma besta carregada e de regresso ao aconchego da ramada ao fim de um dia de lavoura. Dessa ciência se serviram os primeiros florestais que trouxeram os eucaliptos para as curvas de nível das serranias portuguesas. Mas não é este o assunto. O assunto é mesmo o automobilista domingueiro.

Não sei se o bom homem retemperou o espírito aventureiro picando presunto, pão caseiro e tinto do Rogil na taberna da Inaicinha. Duvido é que o tenham deixado prosseguir jornada sem ajuizar as qualidades do medronho do Varela, num tempo em que ninguém sonhava em soprar “balões” da Guarda.

Hoje o descendente daquele automobilista primordial sopra “balões”, mas em compensação já não precisa de voltar para trás, claro. A estrada segue para São Marcos ou para Portimão, consoante se escolha, na bifurcação à chegada ao Povo, mesmo em par do café do Teodoro( onde antes era a tasca da Inaicinha ). Em qualquer dos caso dá ligação à auto-estrada, essa entidade que, como quase tudo nos tempos que correm, nos permite dar a volta ao mundo em menos tempo do que leva a arder um fósforo. Bem entendido que para isso as auto-estradas já não foram marcadas pelas bestas clássicas. Já são do tempo em que as bestas de quatro patas tinham entrado em desuso e como ninguém gosta de regressos...

“ P’rá frente é que é caminho”, diz-se! E Diz-se bem ! Voltar ao antigamente ? Livra lagarto ! Bom sinal ! Sinal de que apesar das lamúrias os anos vão de “vacas gordas”. Ou para sermos mais exactos, de auto-estradas.
Nada de solavancos, curvas, buracos, cabras a atravessar, nada! Cruise - control e GPS ligados, bom som, e a pausa para a mijadela e a bica da praxe na asséptica área de serviço devidamente certificada pela ASAE. Pena a recente embirração com os fumadores ( fundamentalistas dum cabrão!)

Mas dá-se o caso que, por conta da cigarrada obrigatoriamente exterior, se proporcionam dois dedos de inesperada prosa com o velho Almerindo, que passava de pasteleira pela mão na subida da carreleira de terra do lado detrás da vedação da infra-estrutura. O automobilista olha-o como se estivesse a olhar para uma cena plasmada de um filme revivalista produzido num outro mundo surrealista. Cruzam-se os olhares e o outro cumprimenta, imagine-se!

- Boas ...
- Boa tarde !
E ao nosso automobilista, moderníssimo, dá-lhe para a curiosidade etnográfica e prossegue o inesperado diálogo.
- Então o amigo…para onde vai?
- Até ali mais adiante…
Responde o outro apontando o queixo para o lado detrás de uns azinhos que se viam à distância na meia encosta.
- Então…e quanto tempo leva a lá chegar de bicicleta?
- Eh ! Coisa duma hora...
- Uma hora?! Numa hora estou eu a 200 km daqui com este meu carro de 200 Cavalos !
E com o olhar seguro aponta impante o luzidio BMW ecológico!

De regresso à auto - pista e uma meia dúzia de quilómetros mais abaixo, inesperadamente, a coisa corre mal. Numa longa recta em ligeira descida experimenta-se accionar o botão do motor electro-ecológico-auxiliar (o tal que aproveita a energia das travagens) a ver até onde ia o ponteiro. Que potência! E o ponteiro lá ia descendo a escala. Mas na direita larga feita a fundo, o bólide perde apoio traseiro , levanta voo, passa por cima dos rails de protecção e vai amarar os peitinhos na ribeira que corria vinte metros lá abaixo. Valha-nos que caiu bem, quer dizer, na horizontal e sobre água líquida. Menos mal, portanto. Os air-bags ecológicos abriram na perfeição e com a velocidade a que tudo aconteceu nem tempo houve para o suposto susto. Vantagens da tecnologia. O pior foi a saída da viatura, feita com aguinha pela braguilha e consequente submersão tecno-ecológica geral: cruise-control, GPS, ABS, tudo! Estava ele, portanto, tecnologicamente desamparado, de Armanis e Cerrutis de molho e a maldizer não ter optado pela versão “scuba diver’s” do telemóvel ( traduzo: resistente à água até 200 atmosferas de Planck ) com internet por satélite ( mas a seco, claro ) quando aparece o outro pedalando a pasteleira pela margem da ribeira. Parou ao lado, lá na margem. Puxou para cima a pala da boina e enquanto sacava a mortalha de Definitivos para enrolar o cigarrito, foi inquirindo calmamente:

- Atão amigo ?! Tá dando de beber ó gado ?!

12 comentários:

Rita disse...

LOL tá o máximo;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummm... pensei que ia narrar outra versão do argumento de Zenão. E eis que li uma versão humorística e irónica. Pena o final trágico do BMW ecológico!

Anónimo disse...

Manuel,
Faço desde já a minha "declaração de interesses" admitindo que sou suspeita de delito de opinião, pois a sua escrita agrada-me, toda ela. Independentemente das diferenças que tenhamos quanto às temáticas, gosto da forma como as expõe.
Mas este seu género de registo em que recorre ao "etnográfico" para ser irónico com a modernidade, é claramente o meu favorito.
Depois, repara-se nas "etiquetas" do tema e percebe-se claramente onde nos quer levar, leitores, com a ironia. Confesso que me senti "ridicula" no papel do sofisticado automobilista a quem um dia a auto estrada que julgava infinita acaba e tem que reaprender as noções de limites.
Simplesmente hilariante !

Matilde

Manuel Rocha disse...

Vejam que se divertiram !

Óptimo !

Rir faz bem !

:))

Anónimo disse...

Manuel, eu ando meio arredado das lides e chego aqui e topo-lhe um novo estilo.
Mais solto, vivo, quase como um "allegro non troppo". Sinceramente digo-lhe que com este tipo de escrita o Penas corre o risco de ficar depenado de vez.
Gostei.
Eu, que sou um calaceiro, ainda assim prefiro o conforto e a comodidade do carrito, mas onde não conheço dou descanso aos cavalos ... não vá acontecer-me como ao outro que pensava que tinha o futuro todo à frente mas esqueceu-se que nem sempre o mesmo se faz em linha recta!

Anónimo disse...

:D

Ai que saudades desta tua escrita!!
:)

Ao ler o teu ultimo "post" parecia que estava a "ouvi-lo" contado por ti!!
:)

Continua!
Gosto de ver que estás mesmo entusiasmado com esta nova era... a dos "blog's"!
HEHEHEHEH

Muitos beijinhos e abraços

antonio ganhão disse...

Infelizmente as bestas carregadas de hoje, já não se mantêm sobre a curva de nível... ou descaiem, ou descambam.

Mas sem dúvida que era um método ecológico.

Tiago R Cardoso disse...

gostei da roupagem moderna da historia, muito bem.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Boa Páscoa, Manuel. :)

Blondewithaphd disse...

One word:

ADOREI!!!!!!!!!!!!

Three words:
Mais, por favor!

alf disse...

li isto logo no primeiro dia, ainda não havia comentários, e fiquei-me a rir, a reler, a apreciar a escrita, interessante aquela das alimárias marcarem as curvas de nível.. e vou comentar o quê? perguntei-me. Sabe como é, eu estou habituado a dizer coisas "a fingir de inteligente"...

Olha, não comentei nada na altura mas não podia deixar de voltar aqui dizer que foi um momento muito interessante. Até porque me fez recordar aquele alentejo que eu há já algum tempo que não visito e que adoro.

Anónimo disse...

sacrificing formplease finding donkey feeding regent speaking janak pros vlpl issuesthe
lolikneri havaqatsu