domingo, 5 de setembro de 2010

Há Pobres e pobres ...

O basófia do Almerindo era daquele tipo de pessoa que todos os dias tinha uma razão de queixa qualquer. Ou doía-lhe as costas, ou tinha uma vaca doente, que chovia, que fazia sol, enfim, qualquer coisa era uma boa razão para clamar, barafustar. Naquela tarde domingueira deu-lhe para embirrar com os ricos, que eram uns palhaços, uns filhos da tal senhora e de um senhor com dores de testa crónicas, e mais isto, e também aquilo, e que o mundo havia de ser sempre a mesma merda, com os ricos de um lado e os pobres do outro.

Chagado a este ponto, o velho Rocha resolveu cortar-lhe o monólogo com um pergunta atirada lá do seu poiso habitual na ponta do balcão do café do Zé David , onde costumava inteirar-se do estado do mundo.

- Atão tu na gostavas de ser rique ?
- Omessa, Mestre Rocha ! Quem é que na gostava de ser rique ? !
- Atão já tás a ver como tavas a dizer disparates?…
- Por mom de quê , Mestre Rocha?!
– O velho Rocha dignou-se desencostar-se do balcão, endireitou as espáduas, virou-se, e rematou daquela forma indefensável que deixava em pânico quem quer que fosse que estivesse à baliza:
- Tá bom de ver que o mundo na se divide nada entre riques e pobres, criatura ! O mundo divide-se entre os que já são riques e os que na são mas querem ser, come é o té case !

Lembrei-me deste episódio a propósito de um grupo de pessoas genuínas e bem intencionadas que partilha na blogosfera o sonho de acabar com a pobreza . É um sonho bonito, simpático, daqueles que geram adesões espontâneas de todos os genes altruístas por mais recessivos que sejam. Por isso a abordagem critica deste sonho é uma tarefa antipática. Tenho-a adiado por isso mesmo. Mas como a minha intenção não é destruir o sonho, apenas questionar a utopia, aqui vai o meu contributo.

Pode-se definir a pobreza sem definir a riqueza ?Talvez não ! Onde não há termo de comparação a pobreza, isto é, viver com pouco, é a condição normal. No entanto, como a distribuição histórica dos bens raramente tem sido equitativa, o estado “normal” das sociedades é que coexistam uns poucos que têm muito e uns muitos que têm pouco . Mas basta isso para tipificar a pobreza ? Talvez não baste. Pode-se viver bem com pouco e mal com muito. È mais saudável ser magro ou obeso ? A resposta basta para ilustrar o meu ponto, que é a dificuldade de estabelecer uma grelha quantitativa, generalista, que enquadre a pobreza. Percebe-se isso nas várias tentativas de sistematização, como a deste post. A modernidade de consumo e abundância sente-se na necessidade de redefinir as fronteiras da pobreza porque as expectativas mudaram. Ser pobre deixou de ser tipificado pela capacidade de resolver as necessidades básicas, já não basta dizer que é viver com pouco, tem de se dizer também o que se entende por pouco. Quando há uns tempos um governo qualquer resolveu aumentar o abono de família em não seis quantos cêntimos, não faltaram os beneficiários disponíveis para declarar aos telejornais que isso “nem para as fraldas” dava. Quer dizer, ser pobre já não é andar de cu ao léu ou de camisas remendadas, mas não ter orçamento para fraldas descartáveis, pois as outras, as que se lavavam todos os dias, são vistas como…não sei como, sei que já ninguém as usa, nem ricos nem pobres.

Portanto, procura-se actualizar e incluir novas dimensões no conceito de pobreza. Mas a tentativa comete o pecadilho das fraldas: define as necessidades de acordo com um paradigma cujas fronteiras descolaram da utilidade das coisas e remete para o Estado abstracto a responsabilidade que é de todos e de cada um - fazer pela vida.

A moderna luta contra a pobreza tem por objectivo a equidade universal na abundância. Ainda que relativa, é de distribuir a abundância que se trata. A adquirida e a por adquirir. Cá por casa, o próprio PCP não se inibe de incluir o crescimento do PIB no seu discurso. Percebeu que o que há não basta para satisfazer as suas reivindicações de mais de tudo para os do costume e alinha com os outros na necessidade, não só de melhorar a distribuição, mas também de aumentar a riqueza. Mas esta riqueza que se infere tem pés de barro. Ela avalia-se segundo critérios monetários transitórios e obtém-se com soluções intensivas de aprovisionamento energético cuja durabilidade não está assegurada. Ou seja, a abundância que consideramos possível mas mal distribuída, não é real nem está garantida.

Quem gosta de angariar aderentes aos seus discursos incorporando na retórica as possibilidades de redistribuição do património concentrado nas mãos dos ricos, tende a esquecer que essa solução já foi ensaiada e que se saiba raramente correu bem. Entre nós o ultimo ensaio aconteceu no pós-74, por exemplo. Quem esteve atento percebeu que o património dos ricos só vale o que se apregoa quando há outros ricos para o comprar, mas o pessoal já se esqueceu disso. Quer dizer, não se vai longe redistribuindo fortunas. Coisas como iates nem para ir à pesca servem. E para os trocar por patacos, pois ou sobram ricos que paguem o que se convencionou que aquilo vale ou então não vale nada porque não serve para nada. Não se trata de pactuar com a amoralidade na obtenção ou na concentração da riqueza. Mas de reflectir que os luxos que pontuam na avaliação das fortunas são sobretudo coisas assim, inutilidades que criam a ilusão de prosperidade onde ela não existe.

Por outro lado, aquilo a que se convencionou chamar melhoria geral das condições de vida, ou seja, o acréscimo significativo de facilidades que se têm registado nas ultimas décadas na obtenção de bens e serviços, não está ligado ao desenvolvimento de uma capacidade efectiva e duradoura de colheita e distribuição desses bens. Está sim ligado a soluções de aprovisionamento e uso de energia que não são racionais nem definitivas. E a paradigmas macroeconómicos que semeiam dependências disfarçadas sob roupagens surrealistas de interdependências globais.

Quer dizer, abordar a questão da pobreza pelo lado da distribuição, talvez seja curto. Curto porque dá como adquirido o que se julga disponível sem cuidar de perceber se essa disponibilidade é real ou aparente, duradoura ou transitória, necessária, supérflua ou, simplesmente, inútil. Esta estreiteza de vistas pode ter a ver com outro género de pobreza essa sim deveras complicada, que é a cultural. A memória de saber viver no território que suportou a civilização que herdamos, tem vindo a degradar-se . Os arautos da mundividência criticam o provincianismo. Mas os Almerindos da pós modernidade já não são apenas ignorantes que querem ser ricos, são ignorantes letrados, impressionistas da vida. Eles sabem papaguear os problemas da fome em África, mas não são capazes de cultivar uma batata no quintal lá de casa. Ou seja, tal como certos luxos, têm mero valor decorativo, não servem para mais nada . E isso é pior que a pobreza, é uma miséria, porque revela falta de sabedoria para dar bom uso ao que se tem, seja pouco ou seja muito.

8 comentários:

antonio ganhão disse...

Manuel não me digas que compraste um iate?

O que eu digo é que a excessiva riqueza de certos gestores só se consegue à custa de baixos ordenados e cortes nas despesas correntes, como as que dizem respeito à conservação. Essa riqueza é conseguida directamente à custa do geral empobrecimento do país. Não digo que se deva redistribuir o que eles ganham, digo que devem de ganhar muito, muito menos.

Lurdes Ferreira disse...

No link que deixa podemos ser levados a concluir que assume a pobreza como fenómeno da mesma ordem da exclusão social ?

Se sim, tenho algumas dúvidas. Não me parece que possam ser abordados do mesmo modo. Mais uma vez sobressai a necessidade de se estabelecer bem do que se fala. Quanto ao mais, de acordo. Mas onde é que isso nos deixa ?

Augusto disse...

Essa divisão do mundo segundo seu antepassado ( presumo ) é no minimo muito pertinente ! Não será também um travão imponderado aos objectivos do milénio na redução da pobreza ?

fa_or disse...

Acho este discurso um enorme jogo de palavras. Mas compreendo o teu ponto de vista.
E assim como há Pobres e pobres... há Ricos e ricos... e grandes misérias... e porcarias entre uns e outros.
No entanto, acho que a utopia do sonho não se pode colocar de lado. Acho que devo acreditar que É sempre Possível mudar o mundo, pelo menos o mundo de alguém. E faço por isso. Não tanto em palavras, ou com um blogue, mas em acções concretas. Diariamente.
Obrigada ela referência.

Ana Borges disse...

Concordo com o comentário de "MaFaR":este discurso é um enorme jogo de palavras. O que interessa são as acções. Mas as nossas acções são independentes das palavras com que pensamos o mundo ? Talvez não sejam. Para mim é esse o mérito deste discurso: sugere a importancia de ponderar as palavras para pensar a acção. Sem isso é fácil resvalar para o activismo ou para a simples demagogia.

A referencia que "Antonio" faz à riqueza dos gestores é um exemplo. os ordenados e a mordomias de certos gestores são obviamente imorais e não fazem o minimo sentido em qualquer cenário económico. Mas o raciocinio de que dai deriva o empobrecimento do pais carece de demonstração e por isso é demagogico. Até podia ser que se os gestores da EDP ganhassem muito menos, os restantes funcionários pudessem ganhar um pouco mais. Mas também é verdade que se eles ganhassem muito menos as PME's que fabricam iates e instalam piscinas e outros luxos improdutivos não existiam. Estas contabilidades não são lineares. E os jogos de palavras também servem para perceber isso.

Cumprimentos a todos.

Anónimo disse...

Julgo que os comentários se desviam do que me parece ser ponto central do desenvolvimento do texto, isto é, que as medidas que usamos para avaliar o "produto" não serão as mais adequadas quando se pensa a riqueza ou a pobreza na perspectiva da gestão dos recursos que usamos.

Rui

Anónimo disse...

"... os Almerindos da pós modernidade ... são ignorantes letrados... Eles sabem papaguear os problemas da fome em África, mas não são capazes de cultivar uma batata no quintal lá de casa."

Tb sou eu uma Almerinda:( Falo nas minhas aulas do que ouço sobre o chamado terceiro mundo mas nunca saí do primeiro. Papagueio sobre o que não conheço e se tivesse de produzir o que preciso para viver só de teoria saberia por onde começar.

Florbela

Manuel Rocha disse...

:)

O que a MAFAR está educadamente a dizer é que este bocado de prosa é um exercício de tagarelice, de cima a baixo, e tem excelentes razões para isso.Tal como dizia Platão em relação à democracia, também à MAFAR lhe interessa mais a forma como as coisas são vividas do que o modo como são representadas . Mas nem Platão nem a MAFAR conseguem escapar à grande armadilha de todas as utopias, que é a ideia de que os humanos são simples e a felicidade se obtém por vias lineares. Temos por tradição cultural o hábito de nos arrogarmos a omnisciência das coisas .Não só daquelas que nos respeitam directamente mas também das que respeitam aos outros. Por isso achamos sempre que podemos e devemos fazer qualquer coisa para as resolver, como se todas as coisas derivassem de uma aritmética elementar, o preto e o branco, o certo e o errado. Então, entre dois caminhos, trata-se de optar por um. Mas e se houver uma terceira via ?
Tenho para mim que para quem se adapta aos factos sem os conhecer, a vontade de agir em determinado sentido é uma paródia, não uma atitude. Penso pois que o inverso da tagarelice não é a concretização, mas o caminho responsável. Ora a única forma que conheço de o desbravar é perceber o melhor possível o que são as coisas antes de agir. Como é pelo discurso que nos percepcionamos , não há como fugir das palavras. E no que á pobreza concerne, faltam discursos que incorporem outras possibilidades, provado que tem sido pela história que as entretanto empreendidas nada resolveram.
De algum modo o que pretendi explorar no post foi a ideia de que não se aborda a pobreza dos vizinhos que moram nas traseiras do nosso quintal da mesma forma que se aborda a pobreza na Somália. Se no primeiro caso a não ingerência pode ser uma omissão, no segundo pode ser uma solução. Já alguém pensou nisso ? Tal qual a tagarelice, também o activismo pode ser uma espécie de poeira que se atira para cima das coisas.

Obrigado a todos.