domingo, 19 de setembro de 2010

Uma Pocilga no Rossio




“… o post não é sobre quem está mal mude-se, é sobre as pessoas que querendo desenvolver uma actividade económica num sítio onde legalmente não podem (por exemplo, instalar uma pocilga no Rossio), usam esse facto para tentar obter vantagens em vez de fazer uma de duas opções: ou adaptar a sua actividade económica ao enquadramento legal existente; ou mudar para onde seja possível o desenvolvimento do que querem fazer da vida.”

Henrique Pereira dos Santos






O uso do argumento da “legalidade” para justificar um qualquer status quo, é uma das mais estafadas falácias de autoridade. A “legalidade” não é necessariamente boa, não é imutável, nem preexiste desde os princípios dos tempos. A legalidade é simplesmente a tentativa de circunstância de adaptar as regras ao tempo em nome de duma ideia de bem comum.

Outra falácia, desta vez de falso dilema, é usar o argumento do bem comum como se se tratasse de um único caminho, oposto ao do mal comum. Tal como o mal também o bem tem vários caminhos possíveis . Mas nenhum deles corresponde a um conceito com uma objectividade intemporal inquestionável que abarque simultaneamente o bem de todos e de cada um. O bem comum é apenas a narrativa que num determinado contexto social e politico reúne o consenso com poder bastante para impor a sua visão das coisas.

Ainda assim o processo politico para alcançar o bem comum raramente é linear. Mesmo quando o objectivo de bem comum venha a ser plenamente alcançado, isso não quer dizer que todos tenham sido beneficiados de igual modo e que nunca existam vitimas de percurso.

Um dos pilares da nossa ordenação social é a propriedade privada. Não comento se é um pilar bom ou mau, constato que existe. Facto. O valor da propriedade, como a terra, é determinado por factores objectivos e subjectivos, ou seja, pelo valor de uso e eventualmente por mais qualquer coisa eventualmente fortuita, como a vista de mar . Mudanças nas regras de uso do território, implicam mudanças nos processos pré-existentes de valoração da propriedade e por conseguinte afectam inevitavelmente a vida dos terratenentes. Uma barragem que transforme terras de sequeiro em regadio vai valorizá-las duplamente - potencia a produtividade, a rentabilidade, e consequentemente aumenta o valor de mercado. Do mesmo modo, uma regra de ordenamento impeditiva da construção excepto onde ela já exista, valoriza o pré-edificado. E valoriza-o duplamente se a regra se impõe em relação a um território onde a apetência para a edificação já existia. Facto. Se o meu sonho é construir uma casa de férias com vista de mar, é absolutamente diferente adquirir para o efeito um lote de terreno com vista de mar mas integrado numa urbanização, ou um prédio misto isolado numa AP do litoral . Obvio que neste caso tenho a manutenção da vista razoavelmente garantida, enquanto no primeiro estou dependente das particularidades dos projectos circundantes. E, claro, tudo isto se reflecte nos preços.

Para constatar que as coisas funcionam assim, não é preciso um estudo académico. Basta uma consulta ao cardápio da REMAX. Não foi por acaso que o preço médio do ha de sequeiro em Ferreira do Alentejo saltou seis degraus logo que se começaram a construir os adutores ao Alqueva.Como também não é por acaso que a REMAX não promove prédios rústicos no Portinho da Arrábida ou na Costa Vicentina. Dou de barato que a transposição de correlações para casualidades nem sempre é tão fácil. Mas não sejamos ingénuos. Qualquer intervenção sobre o território em contexto de propriedade privada da terra, é tudo o que se queira menos neutra. Altera os equilíbrios anteriores, produz mudança, e nas margens do processo acorrem beneficiados e prejudicados concretos. Seja o traçado de uma estrada ou a localização de um aeroporto, um perímetro de rega ou uma AP, qualquer dessas intervenções sobre o território constituem mudanças com impactos sobre a situação anterior. Será inevitável. O que não é inevitável é que se remeta esse tipo de fenómenos para a categoria dos azares do destino, como seria cair-me um raio em cima.

Posto isto passemos à magna questão da pocilga no Rossio, tentando comparar o que é comparável.

A possibilidade de construir pocilgas no Rossio está fora de questão há muito. Por isso a ideia só poderia ocorrer a um ET ou ao equivalente terráqueo capaz de qualquer coisa para aparecer no telejornal das 20. Para as pessoas normais, o simples enunciado dessa possibilidade numa discussão séria resume-se ao que é: um fait-divers pouco imaginativo inserido numa tipica falácia de derrapagem.

De facto a hipótese colocada nada tem a ver com o caso do rústico a quem de um dia para o outro informam que vai deixar de poder criar porcos e de fazer mais uma série de coisas onde sempre o tinha feito. Bem, os tempos mudam e as regras mudam. Muitas vezes essas mudanças são decidas por todos menos por aqueles a quem vão afectar diariamente, mas tudo bem, deixemos isso para outra discussão. Para esta, o ponto é que o gajo é casmurro e teima em querer continuar a viver ali mesmo depois de lhe terem inviabilizado o modo de vida a que estava habituado. Sugerir a este tipo concreto que se adapte ou então que se mude, terá que ter uma ponderação diferente de idêntica sugestão feita ao verde-urbano em fuga ao stress citadino que resolveu mudar-se para o sitio já na vigência das novas regras mas que não gosta de algumas delas. Além disso, ainda em relação aos que já lá estavam, mesmo dando de barato a bondade da sugestão, importa perceber que nem todos os criadores de porcos a quem as novas regras vieram mudar a vida têm as mesmas condições para realizar a adaptação ou a mudança sugeridas. Deu-se a circunstância de que uns tantos tinham construído uma pocilgas de taipa em vez de simplesmente deixarem as porcas parirem a campo. Ora como quem proibiu a criação de porcos não proibiu a reconversão das ditas pocilgas em versões várias de romantismo rústico para veraneio urbano, houve ex-suinicultores a quem saiu literalmente a lotaria, enquanto os outros ficaram agarrados ao cajado. Ou seja, enquanto os primeiros se quiserem podem abrir uma pizzaria no Rossio e mudar de vida por cima, aos restantes que também se queiram mudar resta-lhes oferecerem-se para empregados de limpeza da dita, mudando de vida por baixo.

As áreas protegidas não integrarão regulamentação que em si mesma se possa considerar mais ou menos promotora de desigualdades que outra regulamentação qualquer sobre o uso do território. Dou isso de barato. Mas as AP’s não foram classificadas ao acaso. Elas estabeleceram-se em contextos geográficos concretos cuja mais valia paisagística já existia e foi reconhecida. Além disso aconteceram num contexto de prosperidade económica concreto, propenso à valorização e à aquisição das “ultimas jóias”. Ou seja, a “promoção da desigualdade” não terá sido uma intensão ou um processo especifico das AP’s, mas não deixa por isso de ter sido particularmente acentuado nas suas áreas de influência, dadas as circunstancias concretas em que elas evoluíram.

É a esta situação concreta que me referia na resposta em que disse que as pessoas não se adaptam ou mudam como querem, mas como podem. Nada mais que isso. Sugerir o contrário é apenas um dislate infeliz a que nenhum de nós está imune.

4 comentários:

Ana Borges disse...

Gostei particularmente de toda a primeira parte, pois realmente a legalidade é um argumento profundamente conservador. Quem se satisfaz com o estado das coisas invoca a legalidade, quem pretende a mudança procura alterá-la. É essa a base da disputa politica. O que parece estranho é haver quem aparentemente ainda não reparou nisso.Será que têm vivido em regimes totalitários ? :)

Anónimo disse...

Faz-me confusão como é que numa altura destas ainda possa haver pessoas que ainda não perceberam que as àreas protegidas são das poucas coisas bem feitas neste país.

antonio ganhão disse...

Esta incursão no tema das polcilgas deixou-me curioso. As questões de autoridade e de bem comum, neste país, estão a esse nível. Será isso que despertou a "fúria" do autor?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, tenho anda alienado no facebook a discutir com "bovinos" e só agora vi que regressou - e ainda bem, porque precisamos de posts inteligentes para cultivar a mente!

Apreciei o que disse sobre a "legalidade" e estou basicamente de acordo!