terça-feira, 21 de setembro de 2010

Decroissance ( II )


Os limites do crescimento e a refundação das bases do capitalismo já ocuparam tanta gente e sobre o tema já se escreveu tanta coisa, que sempre que encaro o assunto não consigo evitar a sensação de perda de tempo. Há dinâmicas que parecem ter vida própria, e já dei por mim a questionar-me se nesses casos não faríamos melhor se nos chegássemos para o lado para as deixar fazer o seu caminho.

Quem já meteu ombros à recuperação de antigas casas de família, percebe melhor do que estou a falar. Os edifícios antigos têm características concretas de construção que não se podem contornar. Qualquer renovação com vista a um uso diferente do original tem de obedecer de algum modo a essa matriz. Posso mudar portas, janelas, soalhos, telhas, rebocos. Mas não posso tirar paredes de travamento e fazer daquilo um open-space.

Passa-se algo do género quando se preconiza que a sociedade capitalista deveria abandonar o imperativo do crescimento económico. Não é que não seja possível pensar uma sociedade que não inscreva no seu projecto económico o crescimento continuo do PIB, possível, é. Mas não como remodelação do edifício capitalista, cuja estrutura não foi desenhada para suportar esse tipo de arranjo.

Seria pois de esperar que quem pretende abandonar os condicionalismos do capitalismo, fundasse ao lado obra nova, isto é, que fosse dando corpo a um novo paradigma. Mas não. Então, de tempos a tempos , acontece o que é normal nos edifícios antigos. Aparece alguém para retocar os estuques e pintar de fresco paredes velhas. Eventualmente aproveita e muda também a decoração, mas é tudo.

Foi o que aconteceu quando há cerca de vinte anitos uma dona de casa norueguesa, daquelas matriarcas capazes de qualquer coisa para manter a harmonia no lar , tirou da caçarola uma ideia peregrina de contornos imprecisos que teve na sua vacuidade ideológica o principal atractivo e por isso se tornou rapidamente consensual. Chamou-lhe "desenvolvimento sustentável". Um género de sopa da pedra, sabe-se que leva pedra, que não é a pedra quem lhe dá substancia, mas é tudo o que se sabe e para muita gente é quanto basta. Percebe-se. A sustentabilidade é o sonho ideal de todos os narcisos, pois ajuda-os na crença de que a juventude e a beleza eternas são possíveis. Como de narcisos todos temos qualquer coisa e como o capitalismo de parvo não tem nada, desde então que passou a servir-nos sustentabilidade a todas as refeições e lucrado com isso. A coisa chegou a pontos de até as famigeradas rotundas serem consideradas “sustentáveis”. Naturalmente os menos narcisos fartaram-se de tanta sustentabilidade e têm procurado variar a ementa discursiva.

Uma das variantes mais recentes baptizou-se de decroissance. É uma corrente anti produtivista e anti consumista que de novo só tem o nome. Preconiza consumir menos, produzir menos, reproduzir menos. Quer dizer, sugere que se retirem as paredes interiores do edifício em que vivemos, mas não explica como segurar o telhado. Ora a sociedade capitalista implode se lhe tiram o ai Jesus do consuminho, conforme tem sido evidente nos últimos tempos. E como o pessoal já percebeu isso, reage muito mal ás lógicas de decroissance. Dos ricos, que não querem deixar de o ser, aos pobres, que não entendem por que terão de continuar pobres, passando pelos remediados, que, finalmente, estavam quase, quase, a ser ricos, o decroissance constitui uma das raras matérias que conta com a oposição unânime de quase toda a gente. Portanto, não admira que até ver não haja quem faça a mínima ideia de como ir por diante com semelhante propósito.

Tim Jackson tentou desatar essa nozada. Retomou a ideia de sustentabilidade para tentar demonstrar que ela se pode realizar sem crescimento económico, mas a ideia sai mal misturada, tipo azeite e água. Nada de original até aqui. Já outros o tinham tentado. A originalidade do TJ é que tenta marcar os golos em falta metendo a bola pelo lado de trás da baliza, tentando demonstrar que é possível conjugar crescimentos zero ou negativos com prosperidade . Mas aí, a meu ver, espalhou-se !

A verdade é que o discurso de TJ é redondo, e o livro lê-se bastante bem. Em termos de conteúdos, é uma espécie de salada mista de Relatório Meadows com Convivencialidade. Falta-lhe é qualquer coisa que ligue aquilo, qualquer coisa como uma teoria convincente apoiada numa alternativa clara ao conceito clássico de “prosperidade”, e este um dos seus pontos mais fracos.

Para fazer vingar a sua tese, TJ recorre à etimologia da palavra, e recorda que prosperidade quer dizer de acordo com a expectativa. Assim é. Mas as expectativas de prosperidade globalizadas e em uso estão plasmadas nos modelos de bem-estar dos ocidentais de sucesso. Ignorar isso torna qualquer reflexão politica mero exercício académico, e TJ cai nessa esparrela. A ideia que se tem da prosperidade não é a que TJ gostava que fosse, é a que é, e só num cenário de prosperidade generalizada tal qual é entendida, é que as sociedades poderiam eventualmente estar disponíveis para aceitar discutir cenários de crescimento zero. As próprias sociedades de referência são elas próprias um terreno fértil em fragilidades estruturais que TJ faz de conta que ignora, como a dependência energética. Talvez tivesse sido por isso que TJ evita qualquer proposta de transição no sentido do crescimento zero para as instituições e para os sistemas que funcionam dentro da lógica do capitalismo vigente. Na verdade, mesmo desprezando prováveis alterações nos custos da energia, ninguém sabe como fazer a transição das modernas economias de bem-estar fundadas no crescimento económico e na energia barata para essa impossibilidade prática de conciliar uma economia próspera com um crescimento zero, ou negativo.

Essa critica necessária às teorias económicas vigentes, fica pelo acessório no trabalho de TJ. Ele não se detém sobre o detalhe de que as teorias que suportam as politicas de crescimento económico foram desenvolvidas sob pressupostos artificias. Esses pressupostos estavam perfeitamente claros na mente de muitos dos seus autores, mas são têm-se revelado perfeitamente nebulosos para a generalidade dos economistas. São poucos os que reconhecem que as teorias de crescimento económico funcionam apenas porque os modelos matemáticos em que se apoiam são verdadeiros. Nas academias a ortodoxia impera e são ainda menos os que se aventuram a desbravar a noção de que os bens cuja produção, transacção e consumo se estuda, não são abstracções matemáticas. Os modelos de Walras e respectivos sucedâneos, aplicam-se a bens monetarizáveis, comercializáveis e reproduzíveis, quer dizer, a abstracções, pois os combustíveis fósseis, solos, metais, nutrientes, necessários para os reproduzir, não são eles mesmos reproduzíveis, não são renováveis. Walras percebia isso. Quem lhe usa os modelos acha que não precisa de perceber isso, e portanto atreveu-se na aventura da globalização sem ter antes percebido que a economia no fundo produziu teorias e modelos para um mundo físico ideal que não existe. Os economistas deixaram-se aprisionar nessa ficção de que as economias são desmaterializáveis. Depois, renderam-se ao presente, e mostram-se incapazes de se libertar das grilhetas da instrumentalização que inventaram para o descrever. TJ não foge à regra. Neste livro agora publicado terá feito o que pôde, mas sabe a pouco.



6 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Difícil é elaborar uma alternativa cabal ao capitalismo sem reanimar modelos passados.

Manuel Rocha disse...

...por isso mesmo eu comecei por dizer que possivelmente há dinâmicas que têm mais é que fazer o seu próprio percurso e a nós pouco mais sobre que chegarmo-nos para o lado...Não era o Illich que dizia não ser apreciador das "utopias normativas" ?
;)

Mariana Capela disse...

Ou seja, a questão é: como ter as coisas boas do capitalismo ( properidade ) sem sofrer as más( rosário de inconvenientes das politicas de crescimento)...Complicado !

:(

Seja muito bem regressado á blogosfera !!!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Marcuse numa das suas últimas obras - Revolta e Contra-Revolução - analisou essa equação infernal - progresso técnico -> crescente riqueza social (PIB) -> escravidão ampliada: precisamos ter coragem e abolir a equação! Pessoas saciadas não são mais humanas: a fraqueza do capitalismo reside no tipo de homem que produz. E vemos isso todos os dias quando lidamos com esta humanidade subnutrida cultural e socialmente. A frustração - aliada à ameaça de pobreza real na Europa - vai fazer a panela explodir!

Anónimo disse...

"A sustentabilidade é o sonho ideal de todos os narcisos, pois ajuda-os na crença de que a juventude e a beleza eternas são possíveis."

Sem dúvida a melhor definição para sustentabilidade que já li !

:)

Florbela

Olga Pombo disse...

Que bom saber que ainda vai havendo quem leia Illich!

Cumprimentos pelo espaço.

Olga