sexta-feira, 16 de maio de 2008

"Apenas" dois por cento !


Sexta Feira, 15 Maio, 23 horas. Havia um televisor ligado e a palavra “biocombustiveis” chama-me a atenção. Em redor de uma mesa de um estúdio da RTP 2, três engravatados discutiam a “economia” da questão na perspectiva da concorrência com a produção de alimentos.

Vi tudo para poder contar. Dava matéria para várias teses e inúmeros posts, mas fico por um breve comentário a uma afirmação que foi feita com o intuito confessado de “desmistificar” essa "ideia de competição entre produção de cereais ( dieta de base alimentar ) e os biocombustiveis", que é o que cabe neste compasso de espera em que me encontro. Disse-se : " … apenas dois por cento das terras aráveis têm esse tipo ( biocombustiveis )de ocupação”.

Que sugestões para uma leitura critica desta informação?

Procuremo-las.

O que são “terras aráveis “ ? A totalidade das áreas vocacionadas para produtos agrícolas, incluindo nelas pomares, vinhas, culturas não alimentares permanentes ? Como no meio de vinhas não se semeia trigo, e para que tivéssemos uma ideia mais precisa daquilo que estamos a discutir, talvez não fosse má ideia ter dito qual a percentagem de terras com vocação para a produção de cereais que tem sido hipotecada aos biocombustiveis, em lugar de usar como termo de comparação a totalidade de terras com qualquer tipo de vocação agrícola.

E para que a a leitura fosse ainda mais correcta, não seria despropositado pedir que o arroz não entrasse nestes cálculos, uma vez que por razões de tolerância climática e ao encharcamento, o arroz não se pode considerar concorrente arvense ( genérico deste tipo de cultivos anuais em extensão ) do trigo ou do milho.

Feitos estes acertos continuaríamos a falar de dois por cento ? Talvez não. Mas suponhamos que sim, para não complicar a vida ao jornalista de serviço que até dá uns toques na bola económica mas que revelou fraco jogo de cabeça.

Explico-me com um exemplo do nosso Alentejo e um número redondo para a respectiva Superfície Agrícola Útil (SAU) com alguma capacidade arvense: 1 milhão de hectares. Dois por cento disto seriam apenas 20.000 ha, certo ? Mas 20.000 ha, onde ? Nos solos delgados do Campo Branco ou nos barros negros de Ferreira ? É que, se nos primeiros uma produção média de 1,5 t / ha de trigo se considera uma boa performance, em Ferreira, menos de 5 t /ha não é um bom resultado! Ou seja, na mesma área, Ferreira produz no mínimo o triplo da produção máxima do Campo Branco. Dito de outra forma: 2% da SAU do Alentejo nos barros de Ferreira, não produziriam dois, mas seis por cento do trigo regional.

Se sairmos da micro escala do Alentejo para a escala global, convém que se saiba que a produtividade média do trigo na bacia de Paris ronda as 10 t /ha . E que se localizarmos 2% das tais “terras aráveis” no delta do Mississipi / Missouri ( os melhores solos do Mundo no melhor clima agrícola do Mundo para o milho, p.e. ) eles bastam para abastecer a totalidade das necessidades de milho de África inteira!

As coisas que se conseguem esconder por debaixo de uma “inofensiva” percentagem!!!

18 comentários:

Anónimo disse...

Vi programa que refere. Mas não "vi isto"!
Pequenas-Grandes coisas, estas. Razões de sobra para mais valia seus contributos.

Obrigado.
Cumprimentos.

Trigo Pereira

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O que significa que os cálculos não implicam necessariamente rigor: a magia dos números é fustificar decisões ou argumentos previamente definidos. Maquiavel tem uma palavra a dizer neste assunto: actualmente usam-se as estatísticas para justificar políticas...

Anónimo disse...

As políticas podem e devem ser ajudadas por estatísticas!
O problema é que nem sempre damos pelos erros conceptuais (1) que contém, parte da informação pode ser sonegada (2), e nem sempre quando estas se discutem os conceitos subjacentes são os mesmos(3).

Alguns exemplos para ilustrar:
1 - A média sem tomar em considerações a distribuição e variáveis como a variância; ou usar variações absolutas em vez de relativas.
2 - O exemolo apontado pelo Manuel em relação ao tipo de terras em causa é um excelente exemplo
3 - Valores de aumento do petróleo sem sabermos se estamos a falar em dólares, euros, valores reais ou nomimais.

Pessoalmente, quando vejo demasiados "números" numa notícia fico um pouco mais céptico/desconfiado do que o costume...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Exacto, o Osvaldo Lucas captou o âmago da questão dos números: são apresentados mas todo o processo conceptual da sua obtenção é sonegado.

Denise disse...

Caramba, tanto cálculo só complica... é que quanto a percentagens e a trigo, só percebo do efeito do consumo de pão no meu corpo quando tenho de comprar roupa nova...
:))))

Denise disse...

... e quando me ponho em cima da balança...
:(

Anónimo disse...

Triste sina a nossa, vizinha Denise:)

***

O Manuel e o seu "olho de lince" para estas "coisinhas" que fazem toda a diferença.
Gostei do seu complemento, Osvaldo Lucas. Se não fosse abuso pedia-lhe mais uma breve nota sobre as questões da distribuição e da variância a que se refere. Julgo ter entendido, mas confesso que tenho a estatistica muito esquecida:)

Florbela

Anónimo disse...

Bem visto, Manuel Rocha!

Esclareça-me por favor a sua referência ao delta do Mississipi / Missouri. O mesmo a que se chama "corn-delt" ?

Obrigado.

Jorge

uf! disse...

disse-me um colega que o cereal necessário para «atestar» um carro americano dava para alimentar... ai, já não me lemdro mas creio que era uma pessoa durante um ano; também não falaram de percentagens dessas, imagino.
100% ao seu texto.

Anónimo disse...

Florbela
Aproveitei tb para relembrar mais uma ou dus coisas
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9dia

Não esquecer de ver os tipos de distribuição!

Em relação a números que nos são debitados, muitas vezes se ouve/lê que os 10% mais ricos ganham X vezes que os 10% mais pobres. Mas quanto a gráficos que ilustrem a distribuição do rendimento dos outros 80%, nickles...

Fernando Dias disse...

Obrigado Manuel Rocha por estes esclarecimentos bem fundamentados e intelectualmente honestos. Concordo que é mesmo um lince. Só tenho pena que estejam em vias de extinção.

Manuel Rocha disse...

Obrigado a todos pelos contributos.

Este caso pareceu-me um bom exemplo de "varinha mágica blindada" que depois usamos, emprestamos e trocamos, mas não sabendo como funciona. Ou seja, a utilidade da ferramenta estatistica na construção da nossa conscicência do mundo, é limitada se não soubermos como ela é construida.E não é a única.

Rita disse...

raios...!
eu só pedia 2% de 2% dos 2% das terras aráveis para poder deixar de ter a minha horta em vasos na varanda, mas parece que o solo de que falam com tanta displicência afinal deve ser precioso porque o trigo que lá cresce está a peso de ouro...negro
e quando referem "terras aráveis", será que se referem a solo fértil ou àquele que precisa que se desvie um rio para o regar e de levar uma tonelada de nitratos para produzir? já não se encontra muito do primeiro....

Tiago R Cardoso disse...

Apenas um comprimento de leitor assíduo e interessado.

alf disse...

Mas há falta de cereais no mundo? Eu creio que não. Só a que resulta das jogadas de especulação financeira.

O papão dos biocombustíveis serviu para justificar uma subida de preços; mas como deve ser um bom escoamento para o excesso da capacidade de produção agrícola, haverá agora interesse em inocentá-lo da crise dos preços.

Além de que se afigura muito melhor negócio produzir conbustiveis do que alimentos...

E aquela história da câmara de Oeiras que pôs os carros do lixo ou coisa parecida a funcionar com óleos usados e agora leva uma multa e peras, apesar de tudo ter feito para que essa situação fosse "legal"?

é preciso entender os interesses todos por detrás destas histórias dos combustíveis e dos alimentos... uma coisa é certa: não são os nossos interesses!

Manuel Rocha disse...

Alf,

Não sei responder à pergunta que deixa no inicio do seu comentário.
Mas palpita-me que com os métodos de produção em vigor a produção corrente não teria dificuldades em suprir as necessidades básicas de abastecimento de cereais. Menos ainda se não se entrasse em linha com a alimentação animal e a industria de bebidas ( cerveja p.e.). O problema começa na segunda parte do comentário da Rita. É que com a agricultura industrial fora da equação ( ou com custos incomportáveis ) os solos férteis com capacidade de produções de bons niveis, reduzem-se drásticamente. E nesse cenário ...


Tiago,

Um abraço !

Blondewithaphd disse...

My dear blog friend,

Não vi o dito programa porque estava de serviço numa conferência sobre assuntos muito díspares deste mas na qual, pasme-se, palestrei sobre o Alentejo (enfim, outros filmes!). Mas o que eu tenho a dizer é que gostava de saber se as estatísticas incluem os alguns hectares que uma certa Blonde possui e que, contando como terras aráveis, nem biocombustíveis, nem culturas arvenses, nem seca e meca e mais o raio servem algum propósito útil à Humanidade que não a produção de O2. Pensando bem, acho que, na conjuntura actual de profundo desprezo pelo solo, não será só uma certa Blonde que se encontra na mesma infame situação.

Manuel Rocha disse...

Blonde,

Claro que não posso responder taxativamente, mas não me admirava se esses ociosos hectares também tivessem entrado.
É pena que essas coisas nunca sejam devidamente clarificadas quando nos atiram com números para cima...;)