sábado, 24 de maio de 2008

O Paradoxo Tecnológico


… como travar/abrandar o vórtice tecnológico, sem ser por demérito? Ou
seja, sem obstruir a razão infinita do Homem? Porque a "vida campesina" é uma falácia - a cidade é um fenómeno da natureza, porquanto nós somos da natureza.…Mas essa compreensão é fulcral: a tecnologia ameaçando a natureza, ameaça o nosso modo de ser originário, destitui-nos de memória e de sentido.”

Pertinentes questões da multicolor e esvoaçante Papillon que me remetem para algumas considerações sobre o que julgo um preconceito ( tramado ) no pensamento da modernidade.

Arriscava dizer que ele se apoia no seguinte tripé:
1. O entendimento do processo tecnológico como deriva unidireccional, ou seja, o progresso só poderia ter decorrido na direcção que tomou.
2. A "vida campesina" como paradigma de regressão, isto é, usada como símbolo de romantismo saloio, a ruralidade é pensada como antónima de progresso.
3. A cidade como complexo necessariamente metropolitano e, aí sim, símbolo de progresso.

Ou seja e em síntese, o progresso concebe-se enquadrado numa moldura da razão que o apresenta em grossas pinceladas de determinismo técnico e científico, sobre uma base de negação da ruralidade e tendo na metrópole elemento central da composição.

Para já tentarei desmontar o primeiro quadro deste tríptico – o tecnológico.

Deve haver por aí óptimas definições para tecnologia. Vou usar apenas a noção que dela tenho: complemento da inteligência na interacção com o meio, instrumentalização da conflitualidade que é inerente a essa interacção. Não me refiro à instrumentalização apenas no sentido mecânico, pois deixo espaço para as ferramentas de raciocínio como a matemática, capazes de abrir espaço a leituras do mundo como a lógica. Mas qualquer destes instrumentos tem um objectivo comum declarado: facilitar, i.é, descolar de condicionalismos de labuta sistemática para resolver as questões elementares, tornar mais efectivo o trabalho, ganhar tempo. Desde a roda ao micro-ondas, é isso que a tecnologia nos proporciona: respostas a necessidades.

Mas é aqui que a coisa patina. Nas necessidades. Porque estas não podem ser tidas como alheias à condição cultural. As necessidades básicas, ou seja, as do comer, abrigar e reproduzir, quase instintivas, não são do mesmo tipo das restantes, as culturais, que, embora elaboradas a partir das primeiras, sofisticaram-se a um ponto que se autonomizaram.

Vamos a ver se não me deixo colher nesta faena.

Da mesma forma que a necessidade de nos alimentarmos não é independente do que concebemos por comida, entre a necessidade de nos deslocarmos e a de o fazer de carro, também existe uma diferença que vai além da sofisticação da resposta. É que hoje dificilmente se dissocia mobilidade de automóvel. Pensa-se "carro" como se pensa "pão", produto final de um processo de reposta a uma necessidade antiga. E chega-se ao ponto de interiorizar culturalmente que a sofisticação da necessidade de nos deslocarmos só poderia ter tido no carro a única solução possível. Por isso olhamos para o processo tecnológica que lhe deu origem como algo de inevitável ou de predestinado, com uma trajectória própria e incontornável, como se tivesse sido escrito nas estrelas que um dia o motor de combustão interna iria encontrar-se com a roda e…

Ora é exactamente esta acepção inevitável de progresso (tecnológico) que gostaria de questionar.

Desde logo porque se auto-valoriza, isto é, não se limita a considerar-se como processo para logo acrescentar que é um processo especifico, um processo para o bem, e por isso um progresso. Mas este acto de racionalização do que pertence ao bem ou ao mal, não é independente do agente que o promove e das suas crenças: a comunidade e a sua cultura. Nessa medida há nos processos ditos de progresso uma carga ideológica inevitável. Além disso, a problematização da necessidade não se constrói fora do que é possível, ou seja, ela não pode ser tida por absoluta. A necessidade de nos alimentarmos não quer dizer “pão”. Mas é a existência da entidade “pão”, que abre caminho à necessidade de uma sandes. Da mesma forma é a possibilidade de viajar de ida e volta de Lisboa ao Algarve no mesmo dia, que torna esse evento equacionável. A partir daí a necessidade de o fazer auto-reproduz-se mediante a frequência do uso, a tal ponto que a eventualidade de ir de véspera e usar o transporte público passa a ser marginal quando entram na equação outras necessidades entretanto induzidas, como a facilidade de movimentos e o conforto que o automóvel proporciona. Estas, são ambas valorizadas como bens mas, tal como a primeira, também elas súbditas dos mesmos pressupostos de racionalização que estão na sua origem. Ou seja, quando as necessidades se transformam em valores elas tendem a auto-justificar-se na finalidade a que respeitam e adquirem uma espécie de imunidade ao raciocínio critico.

Nessa medida o carro como conceito é um bom exemplo. Não apenas de um concentrado tecnológico que incorpora necessidades induzidas alheias a critérios éticos. Mas também de estereótipo da inversão dos valores que deveriam estar por detrás dos processos tecnológicos, pois a partir do momento em que a vida se pensa, projecta e vive em função do carro, instala-se um paradoxo tecnológico: afinal, quem é instrumento de quem ? Ou a tecnologia não é apenas meio mas finalidade em si mesma e por isso o sentido da vida pode resumir-se no carro ?

Ora a nossa interacção com o ambiente está inquinada deste tipo de raciocínios circulares. A tecnocracia instalada na governação e a educação tecnocrática encarregam-se de nos incutir como necessário um pacote tecnológico cuja eventual contestação raia a heresia. Essa leitura determinista da história que nos leva a olhar para os processos tecnológicos conhecidos como se eles fossem desde sempre a única via possível, constitui um sério obstáculo ao desenvolvimento. É que instala um preconceito dicotómico que bloqueia a discussão entre ser-se a favor ou contra o progresso - este progresso - como se não existisse outro progresso possível, e é nessa medida que nos destitui “de memória e de sentido”.

18 comentários:

Anónimo disse...

Tem toda a razão, Manuel. É muito dificil imaginar um mundo a funcionar de forma diferente daquela que conhecemos. Conseguimos sonhar com ele mais justo, mais "arrumado", mais "limpo", mas dificilmente o imaginamos sem as soluções técnicas que conhecemos e que acabam por nos ter ao seu serviço. Parte apreciável do meu esforço e do meu tempo consomem-se para "pagar" um modo de vida que acaba por ser uma imposição. E concordo consigo quando afirma que isso constitui um bloqueio a que se possam reflectir outras soluções. É um pouco o que já se está a passar com o "aquecimento global". Quem manifesta reservas sobre a tese é porque "é contra o ambiente". Enfim !

Florbela

E. A. disse...

Manuel,

De facto a ideia de progressista da civilização ocidental começa na revolução científica do século XII, passando pelo Iluminismo e atingindo o seu apoio máximo na teoria darwinista. Esta ideia, não obstante, foi contrariada por alguns pensadores, mas o que interessa para a análise é que ela vigora neste momento e, como enuncia o Manuel, está longe de ser a-problemática.
Tal como eu disse no meu comentário seguinte, dirigido ao Manuel, podemos naturalmente questionar se o progresso (ideológico, tecnológico) é realmente um bem, uma vez que não questionamos à partida que desejamos mais e melhor: «Toda a arte (sendo que aqui arte é technê, ou seja um saber fazer algo - de onde virá técnica) e toda a investigação e, igualmente, toda a acção e livre escolha parecem tender a algum bem; [...]» Esta é a premissa maior da Ética Nicomaqueia de Aristóteles. Julgo, de facto, que o homem, em todas as suas expressões, tende para o bem, o que pode acontecer é ele estar enganado! E os filósofos têm a tarefa de rever criticamente os pressupostos, de denunciar os simulacros!
Mas pegando no próprio acto de filosofar: o carro é uma necessidade criada e não-fundamental, mas a própria filosofia não é fundamental para a vida, não é de todo uma necessidade básica - o mesmo Aristóteles dizia que chegávamos à Filosofia, depois de alguma riqueza que nos permitisse o ócio necessário ao luxo que é a Filosofia. O que quero dizer com isto é que necessidades básicas e sofisticações que se impõem à nossa vida, como necessidades básicas, sempre houve e sempre haverá.
Os novos profetas, artistas e cientistas, ao longo do século XX, alertaram-nos para a derrocada: a submissão do homem à tecnologia, como um artista que se apaixona pela sua obra (Pigmaleão), ou como se o nosso sonho inundasse a nossa realidade e já não nos permitisse divisar o verdadeiro do falso, o bom do mau. Este é o perigo!
E por isso essa distinção entre meio e fim é vital. Daí a Filosofia ser a actividade, o pensar e o amar, e o amar o pensar, mais nobre segundo Aristóteles, porque é um fim em si mesma. Daí ser deprezada nesta sociedade utilitarista, mercantilista, em que se dá valor àquilo que somente produz lucro, ou vil metal. (Daí também, acreditar que, nunca como hoje, uma ética fosse tão necessária!)
Nesta medida, só posso concordar consigo: estar contra ou a favor do progresso é um falso dilema, devemos questionar é os seus pressupostos e direcção, porque n é um rio de fluxo abrupto e imparável, pode e deve ser constrangido.

Fernando Dias disse...

Meu Manuel, meu irmão
admiro a força que trazes no peito
a tua persistência, a tua paixão
Progresso e tecnologia são preconceito.

Cá o ciclista pedala ped’almado
perfilado de medo, com as pernas ao dependuro
Carro mata, carro é caro como um danado
O vivido sem correr fica mais seguro

Pergunta a Borboleta que é porreira
Poesia é vida parceiro?
Pois claro! Grande parceira!
O mais são idiotas no poleiro.

Conforme a vida de cada um o verso vem
Mas se a vida é vidinha, não há poema que resista
basta viver dia a dia a miséria do que se tem
e o mais é isto: o tolo de um internista

A meu favor
tenho a tendência persistente da aventura
irresistíveis palavras de esperança e de amor
que são mais do que a bravura

Foi por ter andado de carro à procura de um mundo melhor
que meu irmão João perdeu a vida com trinta e seis anos de idade
Deixou uma filha de quinze que ficou pior
E os seus velhos é que o viram partir para a eternidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Concordo com o Fernando Dias: poeticamente estamos de passagem e de partida para a eternidade onde encontraremos o progresso feito realidade: o aperfeiçoamento total realizado. Abandonar essa noção é perder a esperança num mundo melhor!
Viva o progresso como aperfeiçoamento constante do ser humano e do seu modo de habitar a terra! (Os gregos não conheciam esse modo de ser; devemos essa ideia ao pensamento judaico.)

E. A. disse...

Obg, o F. Dias tb é um porreiraço! :)))

E escreveu um verso muito acertado:

Conforme a vida de cada um o verso vem
Mas se a vida é vidinha, não há poema que resista


Eu canto a vida porque a vida é-me Musa!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Para mim, o problema não reside no progresso, mas na ideologia de mercado, nomeadamente no pressuposto não-equacionado do cálculo do PNB. A economia burguesa clássica tinha outra perspectiva do "progresso" e, na moral, inventou o utilitarismo. Mesmo utilizando esta ética utilitária podemos desmistificar o PNB e o pensamento economicista predominante.

Manuel Rocha disse...

Florbela:

Concordo e essa ideia está subjacente ao meu texto: ser critico deste "progresso" não significa ser contra o progresso, nomeadamente quando o entendemos nos termos em que o Francisco o define no seu primeiro comentário.

Francisco:

O PNB é ele mesmo mero instrumento tecnológico. De resto toda a economia é tecnológica e ferramenta da tecnocracia vigente. Tenho para mim que será dificl demarcarmo-nos das derivas tecnológicas que criticamos sem romper com os instrumentos de leitura da realidade que a economia construiu e que seriam outro bom exemplo de uma "necessidade auto-alimentada".


Fernando Dias:

"Força" a minha ?!
:)
Força Sua, meu caro !Que Força a Sua !

:))

Manuel Rocha disse...

Papillon,

Percebe-se bem nas mais-valias do seu comentário porque lhe dediquei esta "faena". ;)

E não se esqueça de que o tal desafio de a publicar aqui dissertando sobre economia tal como a entendiam os clássicos, continua válido...:)

antonio ganhão disse...

O romantismo saloio está na pretensão de um regresso a uma ruralidade passada, mesmo aí é preciso reinventar o conceito de uma ruralidade para o século XXI. Tirando partido da tecnologia...

Manuel Rocha disse...

Exactamente, António !Não há regressos. O que não implica que se prescinda da memória quando se pensa o futuro, não é ?

E. A. disse...

Ora essa! "Mais-valias"! É um prazer participar no seu processo de análise a problemas tão emergentes!
E o Manuel, antes de bom pensador, é de excelência de trato - uma preciosidade, dada a raridade...

Denise disse...

Boas, meu Vizinho!
O seu texto faz-me recuperar a leitura d' «As Cidades de as Serras» que desenvolve a ideia embrionária projectada no conto «Civilização». Eça de Queirós era um homem com visão e cedo se apercebeu de que o desenvolvimento tecnológico é, ao contrário do que supostamente se advoga para se justificar, o primeiro que o ser humano dá para o seu desenraizamento da natureza e, assim, da sua própria essência.
O protagonista compreendeu que o progresso, visto como o encontro da humanidade consigo mesma reside, essencialmente, no tempo que se dá ao tempo - critério negado pela tecnologia e que (ainda) se vislumbra na ruralidade.
Gostaria, meu Vizinho, de mostrar pelo menos uma passagem. Mas sem livros comigo... convido-o à releitura ;-)

Manuel Rocha disse...

Papillon,

Um braçado de papoilas para agradecer o cumprimento …:)

Denise, Vizinha,

Interessante esse paralelo. Há largos anos que não regresso ao Eça e também por isso a sua sugestão é bem-vinda.

alf disse...

Bem, isto foi um post em cheio, não só pelo post em si como pelos comentários!

O verso do f.dias que a papillon cita já está na minha selecção de "frases célebres" (com a devida referência ao autor)

Contratar a papillon para comentar aqui foi uma grande aquisição, meu caro manuel! E poupa-me trabalho porque ela já disse o que eu pensei e muito mais!!!!

Blondewithaphd disse...

Eu, saloia me confesso acabadinha de ir colher nêsperas, obviamente à nespereira!
Amanhã regresso à cidade grande e assim se vive no limiar, ou no limbo, entre a ruralidade pacóvia e a modernidade citadina.

Manuel Rocha disse...

Alf:

Se o meu amigo não fosse um estimado ET, sabia que Borboletas destas não se contratam nem se engaiolam. O gozo é vé-las livres mesmo quando efêmeras. Claro que há dias em que nos pousam ao lado e aí há magia, como é o caso, e que o meu amigo bem anotou !

:))


Blonde:

O Alf costuma dizer que o hábito não faz o monge. Já discordei dele, mas neste seu caso ...é usa esse traje de saloia com tanta falta de jeito que se percebe logo que não é seu...
Estavam boas as nésperas ?

;)

Blondewithaphd disse...

Bolas! Eu aqui de faces rosadas a pensar nos ares do campo e logo me vêm desmascarar!
E sim, estavam muito docinhas e algumas já passadas do sol como eu gosto! Nham, nham! Isto não há na cidade, ou há?

alf disse...

manuel

Até mesmo um ET sabe que ninguém consegue prender uma borboleta ... por isso mesmo usei a palavra "contratar", a forma superlativa e inatingível de trazer aqui a borboleta

(o humor nonsense dos ET é um bocado estranho, prontos!)