quinta-feira, 17 de abril de 2008

O Rio Ajuda

As palavras não são neutras. Menos ainda quando se referem a conceitos. Entre essas, algumas há que têm mesmo o fantástico poder de fixar os termos das discussões numa órbita inalterável porque contêm em si mesmas todo um programa.

A pobreza é uma delas e tentarei explicar porque o digo.

Quando falamos de pobreza, todos a tomamos como uma questão absoluta. Ser pobre é não ter acesso ao elementar. Mas quando se pretende concretizar esta noção de elementar, a pobreza relativiza-se. Essa relativização é devida à nossa natural tendência para definirmos o que nos rodeia em função do nosso próprio paradigma. E no nosso caso, ocidentais, tem ainda a ver com a nossa propensão para as leituras disciplinares do real.

Assim, enquanto os economistas tendem a abordar a pobreza pelo lado da produção e distribuição dos bens, os técnicos de saúde alertam para que sem pessoas saudáveis não há economia possível, e os pedagogos logo acrescentam que saúde e economia são também uma questão de educação pelo que sem ela nada feito.É evidente que qualquer deles tem a sua parte da razão. E como além disso a exprimem sob prismas e metodologias diferentes, resulta que a pobreza aparece definida tal como é, uma realidade multifacetada.
Apesar disso há convergência quanto à forma de a resolver, ou seja, actuando sobre os problemas prioritários, isto é, quem tem fome tem de comer, quem morre de sarampo tem de ser vacinado, quem é analfabeto tem que ser alfabetizado.

Prisioneira conceptual deste tipo de urgências, a pobreza tem dado origem a um enorme caudal de ajudas . Um autêntico rio de dinheiro. Só de um dos seus afluentes, o BM, fluíram para esse rio em duas décadas ( 80 /90 ) algo como 600 biliões de dólares. Mas não é este impressionante caudal a particularidade mais importante deste rio. Esse estatuto está reservado para a originalidade da sua forma, pois ele é um rio circular que desagua no mesmo sitio onde nasce, isto é, nos corredores do poder económico do ocidente. No seu percurso, o "Rio Ajuda" revela ainda uma espantosa capacidade de erosão selectiva, ou seja, só arrasta como sedimentos certas coisas, como ouro e diamantes, petróleo, madeiras exóticas, os melhores cérebros, filetes das percas do Nilo que infestam o lago Malawi. Mas além disso, ao dar de beber à pobreza ele faz crescer a miséria. E embora ambas sejam sinónimos de desgraça, tentarei explicar porque importa fazer-lhes distinção.

A escassez do que é elementar pode ter diferentes origens. Mas não é muito complicado construir com elas duas categorias. Numa, podemos incluir a escassez como o resultado de um qualquer desajuste transitório entre necessidades e disponibilidades de recursos, como o que pode acontecer com os bens alimentares em consequência de condições de seca agrícola prolongada. Na outra, é possível agrupar os factores que culturalmente bloqueiam a gestão dos recursos disponíveis e não permitem potenciá-los como resposta aos problemas de escassez do elementar.

A pobreza do sem-terra não é, neste sentido, um problema com contornos idênticos à sua miséria. Porque o que faz a pobreza do sem-terra é a miséria cultural da civilização que lhe dá terra quando ele já não sabe o que fazer dela. Ele não sabe subsistir da terra porque lhe falta uma tradição cultural que não tem. Mas além disso ele não quer subsistir da terra. Para o sem-terra, a terra é vista como a possibilidade de através dela constituir um rendimento que lhe dê acesso ao paradigma cuja chave é o dinheiro. A terra não é vista como algo que serve para produzir alimentos, mas dinheiro. Ora boa parte dos programas de combate à pobreza que conseguem ir um pouco mais além que as ajudas de emergência, como alguns em curso no Brasil, incorrem nesse pecadilho original de tentar reconduzir populações para dentro de um paradigma de subsistências onde, não só não se revêem, como cortaram os laços culturais que o poderia recuperar. É neste impasse cultural que reside a miséria. A deles, que é também pobreza, e a nossa, que é civilizacional.

Existem pois nestas matérias diferenças que importa estabelecer entre o que são desacertos circunstanciais e rupturas culturais de longa duração de raiz civilizacional. Porque basicamente, a pobreza do terceiro mundo vive da ressaca global da democratização do paradigma que o ocidente desenhou ao longo dos últimos séculos; vive numa espécie de terra de ninguém entre uma tradição perdida e um paraíso aparente que, apesar de lhes vedar o acesso, não se coíbe de promover constantemente os seus méritos . Sem se perceber isso não há como ensaiar a ruptura com os ciclos viciosos de análise e acção sobre um problema em que a única alteração de ano para ano tem sido o adiamento sucessivo dos objectivos estabelecidos.

9 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Tenho observado que a abordagem que faz de diversos fenómenos leva sempre a um impasse, como se estivesse a pôr em causa o nosso modelo civilizacional, mas sem abrir um horizonte futuro, a não ser uma ruptura radical. A temporalidade subjacente parece ser ciclíca ou regressiva: a partir de determinado nível de desenvolvimento a civilização parece estar condenada a regredir. Faz uma profecia! Conhecemos já fenómenos de regressão. Pode ter razão: a ditadura do dinheiro, como dizia Spengler, torna-nos vulneráveis a qualquer ameaça externa, constantemente "seduzida" pela má-publicidade dos mass media, cuja lógica é exclusivamente a do lucro. Por isso, tenho tentado outra via: a do derrube do sistema. Este implica pessoas corajosas, capazes de olhar para dentro e não para fora. O diálogo com o fora é perigoso e é fomentado pelo capitalismo selvagem. Estranhamente, as pessoas estão preparadas para a regressão: elas são a regressão personificada e, como diz, incapaz de cultivar a terra. Gado doméstico é o termo correcto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A pobreza é infelizmente um bom negócio: enriquece uns, empobrece todos que toca. Mas essa é a lógica do capitalismo, de resto bem interiorizada pelas pessoas cativas.

Manuel Rocha disse...

Francisco,
Tem todo o fundamento a leitura que faz .
Há duas formas de compreendermos o que nos rodeia, penso eu.
Uma, a que tem vindo a ser mais usada, parte do principio de que a média dos acontecimentos passados pode ser usada como medida para calcular a média dos acontecimentos futuros. É disciplinar, linear e parece-me que se esgota na capacidade comprovada de auto-repetir os modelos que a produz. A outra, sistémica, vai à procura de explicações fora do domínio das variáveis e dos modelos matemáticos lineares habitualmente consideradas. Cultura e sonho são variáveis que não vejo como inserir num algoritmo económico. Assim, este tipo de abordagem serve-me como tentativa de procurar outras aberturas para perceber os problemas. Nalguns casos, como neste, admito sem hesitações que leva a um impasse. Porque se é verdade que uma das ilações possíveis é a de que a pobreza é o tipo de problema que só se resolve quando os povos e os indivíduos que os compõem forem capazes de internalizar nos seus equilíbrios dinâmicos uma cultura de sustentabilidade ( a acepção de ecologia profunda de que falava o F Dias ), também se torna claro que isso não se consegue com reformismos que teriam que lidar com uma dupla dificuldade, porque não só os ricos não querem deixar de ser ricos como os pobres tudo o que querem é ser ricos. O problema é que a relação população / expectativas não é compatível sequer com um padrão pequeno burguês ocidental quando confrontada com os recursos disponíveis! Quem vai resolver isto ? O Homem ou a Mãe Gaia ?

antonio ganhão disse...

Nem todo o mal nasce nos corredores do poder... nem todos os rios desaguam nos mares (ficámos a saber). O menino anda atrevidote! ;)

Felizmente, como urbano, não me prendo a balidos rurais...

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

Manuel,

Vai fantástica esta sua nova série sobre a "geografia da fome"!

Tenho dois pontos que gostava de ver esclarecidos mas acho que vou esperar pelo próximo post. Algo que me diz que "isto" não fica por aqui.


Florbela

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Se fosse do Porto, o seu título soaria a slogan da próxima campanha eleitoral. Tipo: Tem problemas? Resposta em cartaz: "O (Rui) Rio Ajuda".

Unknown disse...

Manuel

tal como lhe prometi no intervalo de uma nas nossas inúmeras conversas, aqui estou deixar um comentário sobre um tema actual e que nos leva a reflectir sobre o seu significado: pobreza e meséria. As diferenças são imensas e basta ler a cartilha dos direitos humanos. No entanto empenhamos-nos em combater a pobreza em deterimento da miséria, essa sim grave, oculta e devastadora. Veja os cubanos, pobres sim, mas serão miseráveis?
Tal como no primeiro comentário que li, também concordo com a teoria do "gado doméstico" conceito aliás já discutido entre nós e que ficou na mesa como futuro objecto de reflexão.
Continuo à espera...e promessa cumprida!!!

alf disse...

Belo post, como é hábito. Que me despertam sempre reflexões, é claro. Aqui vai:

A pobreza não é criada pela civilização ocidental. Ou talvez seja, mas indirectamente: porque esta permitiu um crescimento brusco da população.

Se a população do Brasil fosse a mesma de há cem anos, não haveria a pobreza que há. Na generalidade dos sítios onde há pobreza, o que se passa é que a população excedeu o nivel de autosustentação. E este excesso, em parte, é consequência do tipo de ajuda dos paises ocidentais, que em vez de promover a autosustentação amortecem as consequências da sobrepopulação.

Num post já antigo eu abordo o problema do fim dos impérios; na minha análise, o crescer ou o falir dos impérios tem-se resumido à sua capacidade de se situarem fora ou dentro de um quadro de sobrepopulação.

Acabar com a pobreza miserável consiste em tomar medidas que ajustem a população à capacidade de autosustentação. Veja-se o resultado das políticas da China. O "milagre económico" da China teria sido completamente impossivel sem o controlo do crescimento da população. Isso não chega mas sem isso não se consegue.


O problema da população é crucial. Na sequência dos seus posts sobre a energia já deixei aqui a questão: qual é a população que o planeta consegue sustentar em termos de energia?

Alguns estudos mostram que lá para 2060 conseguiremos produzir de forma sustentável a energia necessária à população actual. Só que nessa altura a população mundial terá aumentado perto de 50%...