quinta-feira, 3 de abril de 2008

O Homem e o Urso

Regresso à questão natural vs civilizacional.

Continuo com a sensação de que existe nesse tipo de abordagem dicotómica razoavelmente consolidada, um grosseiro erro de análise que ameaça transformar a nossa relação com o ambiente num beco sem saída.

Continuamos a encarar a nossa interacção com o meio segundo interpretações que oscilam entre dois extremos. Uma delas, pressupõe que tudo o que a natureza “produz” é sempre bom. A outra, aventando que não seja bem assim, investe tanto na domesticação da natureza que cai no erro ilusório de que a comanda.

Basicamente, estamos perante variantes da velha questão nunca resolvida da conflitualidade inerente à vida, das suas dinâmicas e tempos próprios, um “jogo natural” do qual o homem faz parte. A forma como o homem social tem reinterpretado as regras desse jogo, tem dado origem a soluções sempre transitórias que vão ressaltando entre os compromissos que têm sido possíveis e as abordagens mal sucedidas, e é neste contexto que temos de nos entender.

No entanto há demasiado quem argumente sobre ecologia humana como se essa pertença do homem ao natural não existisse e parta daí para advogar a defesa de uma “natureza intocável”não percebendo que já de si a decisão de não interferir é uma forma de interferência natural. Creio que isto se poderá dever a uma compreensão insuficiente da exacta consistência dos chamados fenómenos naturais e tentarei explicar porquê.

Se fosse possível isolar o instante primordial, tudo leva a crer que o processo pelo qual as espécies iniciam a sua implantação num determinado contexto é determinado pela geologia e pelo clima. A evolução dos ecossistemas nesse suporte ( habitat ),começa pela que se designa de fase pioneira, que normalmente desenvolve características ( produção excedentária de matéria orgânica, por exemplo ) que desde logo introduzem mudança nas condições físicas do habitat. Essas alterações das características físicas do suporte abrem a porta para a instalação de novas comunidades tróficas ( sistemas de seres vivos coexistindo numa lógica de interdependência alimentar ) de maior exigência, iniciando-se assim o que se designa por sucessão ecológica ( a sequência pela qual as espécies se sucedem num ecossistema ).
Nestes processos, existem comunidades que têm uma existência transitória na sucessão. O período e os acontecimentos dessas existências transitórias, são conhecido por fases serais. Por clímax entende-se o estado de maturidade de uma comunidade num habitat .
Ou seja, das fases pioneiras às de maior maturidade, as comunidades que incorporam a sucessão alteram as características da sua interacção. Raramente as comunidades pioneiras são também climáxicas. Ao longo da sucessão ecológica o ecossistema convive com comunidades temporárias que têm o seu nicho naquele “momento” e não noutro e raramente o ocupam “para sempre”do mesmo modo.
Mas mesmo os estados ditos climaxicos correspondem a um conceito que importa desmontar. Porque uma coisa é a “maturidade potencial” ( clímax climático ), outra a “maturidade possível” ( climax edafico ). Ou seja, na prática os ecossistemas raramente atingem o seu potencial, evoluindo antes através de sucessões interligadas e de velocidade variável. E a explicação para este fenómeno reside no facto de os ecossistemas não serem nem sistemas fechado nem sistemas lineares. Como tal não são susceptíveis de ser compreendidos pelos modelos analíticos convencionais e como a abordagem sistémica não faz parte do cardápio usual dos métodos pelos quais se tenta entender o infinitamente complexo que nos rodeia, somos tentados a olhar para o mundinho através de simplificações dicotómicas e a encarar o que é civilizacional como "não natural".

Mas nesta existência onde à escala do tempo geológico a ideia de estabilidade não é sinónimo de estático, a construção de nichos como estratégia de colonização de novos espaços é um processo natural e ininterrupto. Entre o urso e o homem, não existem diferenças de estratégia na abordagem da permanência nos invernos setentrionais: qualquer deles procede a reservas prévias de energia e constrói abrigos. Diferem apenas no método e na técnica que cada um aperfeiçoou a seu jeito.

Importa pois que se perceba que a capacidade de modificar a “natureza” é característica intrínseca da própria natureza. Qualquer ser vivo “manipula” o meio para nele realizar o seu “momento”, e nessa matéria não há qualquer tipo de “originalidade” por parte dos humanos. Sendo certo que o homem sofisticou as modalidades de interacção com o meio, não é menos certo que não desligou dos condicionalismos objectivos impostos pela natural limitação de recursos. De igual modo também não é especifico dos humanos a gestão irracional dos recursos de cuja sobrevivência depende. Mas é evidente que chegados a este ponto ao homem é exigível um pouco mais, quanto mais não seja porque, que se saiba, não consta que os ursos andem por aí a reivindicar racionalidade.

( Continua...)

17 comentários:

Porfirio Silva disse...

Arrisco pensar que pode interessar aos leitores deste blogue: é já na segunda-feira 7 de Abril a primeira conferência do ciclo "Das Sociedades Humanas às Sociedades Artificiais". Mais informação: Economia, Instituições e Sociedades Artificiais .
Como chegar? Clicar aqui.

Manuel Rocha disse...

Ao autor interessou Porfirio...:)
Obrigado pela dica.

Fernando Dias disse...

Não podia estar mais de acordo com este post, que aliás é de Mestre quando diz: “os ecossistemas não são sistemas fechados nem sistemas linerares e por isso não explicáveis pelos modelos analíticos convencionais”

As culturas são organismos vivos. Os organismos vivos como sistemas abertos auto-organizam-se entrelaçando-se com o meio (oikos grego), oiko-sistema. Isto tem a ver com o todo e com graus muito mais altos de complexidade, e não como os reducinistas (herdeiros daqueles que quando descobriram os espermatozóides pensavam que tinham um homúncilo lá dentro), que estudam as coisas uma por uma, e quando juntam duas ou três partículas dizem que já é suficientemente complicado.

A complexidade não se aplica aos factos. O espermatozóide não é apenas um ser humano reduzido, é muito mais do que isso. A ontogénese é muito mais do que mero crescimento. Os factos sofrem de limitações da experiência humana em termos de escalas de grandeza. O muito grande ou o muito pequeno apresentam padrões semelhantes. Há padrões integrados na génese do processo da Natureza, que não são visíveis, mas aguardam que sejam descobertos.

No século XXI as coisas estão a mudar. A horrível recordação da expulsão do paraíso fez com que as florestas ou os pântanos tivessem que ser domados e subjugados. Não havia simpatia para com a Natureza selvagem, mas para com a harmonia dos jardins do palácio de Versalhes. E a ciência associou-se a este ódio pela Natureza indomada na era Moderna.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Faço minhas também as palavras do Fernando Dias. Para todos os efeitos precisamos descobrir um caminho novo para além das tais dicotomias. E até agora ainda não conseguimos atingir esse objectivo, porque acabamos por parasitar a linguagem dicotómica. Porém, encarar o homem como ser da natureza já é um começo, porque implica não encarar a natureza de fora mas de dentro. Uma crítica implícita ao "sobrenatural" ou "extraterrestre", mas também uma tentativa de escapar à dicotomoia substancial e metodológica. Sim, a ecologia humana pode ajudar a demolir esses obstáculos epistemológicos e o Manuel começa a demoli-los. :)

Anónimo disse...

Duas palavras para classificar este discurso: ousado e inovador.

Aguarda-se a sequência.

Cumprimentos.


Trigo Pereira

Manuel Rocha disse...

Pois é meus caros,

Até aqui ainda se chega, mas daqui para diante o caminho estreita. Claro que vamos até lá dar uma espreitadela, embora se saiba que pode sempre dar-se o caso de ser necessario recuar e procurar outras vias...

Anónimo disse...

Não considero o discurso nada inovador.

Mas temos de muitas vezes relembrar ideias perigosas.

Daniel Dennet: A Ideia Perigosa de Darwin

f.dias concordou com o Manuel em “os ecossistemas não são sistemas fechados nem sistemas linerares e por isso não explicáveis pelos modelos analíticos convencionais”
A complexidade pode ser muita mas será possívelmente passível de redução, com algum grau de incerteza, a modelos matemáticos não lineares, estes ainda com fortes possibilidades de falharem redondamente no maior ou menor longo prazo.
Sobre o reducionismo é preciso criar mais pontes onde estas não existam fortemente consolidadas: p.e. entre a química e a embriologia. Li nalgum lado uma abordagem interessante sobre os níveis a que devemos abordar a "realidade": é mais fácil explicar os engarrafamentos na 25 de Abril nas horas de ponta por considerações de ordem de horários de saída, locais de emprego/trabalho, etc, do que observar cada um dos automobilistas a meter as mudanças e respectivas velocidades para calcular/estimar/modelar o que vai acontecer no cruzamento X à hora Y.
Por outro lado o reducionismo se se referir a simplificações tipo "apenas o que é natural é bom" estamos a deixar de fora N informação que se contemplarmos bem será tão gigantesca que poderemos desistir ou temos de ser obrigados a (sobre) simplificar. Qualquer acção que executemos terá N consequências, de dificil contabilização de prós e contras (prós e contras relativamente a nós, humanidade? e como contabilizar em relação à espécie X? pelo aumento/diminuição previsível do número de efectivos?) e o futuro será muitas vezes uma incógnita.

Humm..., Daniel Dennet (e Richard Dawkins) é (são) muito melhor (es) do que eu a expor ideias...

Anónimo disse...

Desculparão presunção de considerar que comentário Sr Osvaldo Lucas me é dirigo em primeiro lugar. Nessa eventualidade, gostaria deixar nota que para quem é ignorante, como eu, aquilo que nunca antes viu se define como inovador. Parca cultura não abrange os autores que o comentador refere, pelo que mantenho a adjectivação usada para qualificar texto apresentado.
No mais do comentário em apreço, modesta licenciatura em económicas e financeiras não permite perceber-lhe mais valia.Óbvia pois a incapacidade de aceder a raciocínios circulares. Daí a preferência pelas abordagens consequentes em registo de boa divulgação.

Cumprimentos

Trigo Pereira

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu acho que a posição do Manuel tem por trás, na base, uma crítica da racionalidade funcional ou instrumental, a qual recorre aos cálculos (matemática contínua) para despedaçar o fragmento de realidade (mundo) e manipular os seus elementos e rearranjá-los em função de fins pouco claros.
Não sei; posso estar enganado, mas penso que isso está subjacente à perspectiva que orienta o pensamento do Manuel.

Blondewithaphd disse...

Hmm... very deep stuff! I just wanted to be like David Attenborough when I grew up... Inverti a rota algures. Entre o Urso e o Homem escolho o último (não sem o seu quê hesitante) mas recomendava Jean-Jacques Annaud.

Anónimo disse...

Trigo Pereira

O comentário que fiz procura pelo contrário realçar a importância da abordagem de Manuel Rocha.
Boas ideias devem ser reexpostas, principalmente se, como considero, estiverem pouco divulgadas na comunidade em geral.
A "provocação" tinha como objectivo publicitar os livros, ideias e autores em questão a quem não conheça. As minhas desculpas se considerou o comentário como pessoal.

Manuel Rocha disse...

Osvaldo,

A matemática aplicada ao processo social sinto-a ... como deveriam sentir-se os mareantes quinhentistas que na falta de cartas e instrumentos adequados navegavam com a costa à vista, e quando empurrados por ventos desfavoráveis eventualmente encalhavam em terras desconhecidas.

Há quem dentro da economia brinque com isto quando se trata de estabelecer projecções dizendo que quando elas acertam é mérico do autor, quando erram é culpa da conjuntura :)


Francisco,

Julgo que excesso de informação dentro de um sistema não é necessariamente uma mais valia para a sua gestão, porque a incapacidade natural para colocar todos os dados disponiveis em equação nos empurra para as simplificações dicotómicas que acabam por ser a saida natural perante a pressão do pragmatismo quotidiano. Julgo ainda que a História e a Filosofia, nas suas várias facetas, nos poderiam dar um optimo contributo na procura de modelos de gestão não compartimentados do processo social.


Blonde,

E que opinião terão os ursos a nosso respeito ??
:))

Anónimo disse...

Ao comentador Osvaldo Lucas,

Apresento desculpas reacção desproporcionada.

Cumprimentos,

Trigo Pereira

Anónimo disse...

Felicitações pelo blog.
Tem um belíssimo conteúdo.
Espero que não se importe que faça referência no GeoPoetas do seu Blog como link de interesse.

Continuação de um bom trabalho.

Cumprimentos,

Tatiana

hora tardia disse...

""Apenas os peixes mortos não nadam contra as correntes."


cito.O____________________.



(porque afinal serve de elegia, de facto, para o que estive a lar.)
voltarei.



cordialmente.

isabel mendes ferreira disse...

errata:

:)


(...ler ).


.

Manuel Rocha disse...

Tatiana, Isabel

Obrigado em nome da "gerência".
:)