segunda-feira, 14 de abril de 2008

Um Falo das Américas


O Joshua tentou-me para algumas teclas sobre o FMI, mas sou a pessoa errada. Falta-me em relação às políticas da Instituição o distanciamento que facilita a objectividade. Feita esta “declaração de interesses”, tenho que dizer que considero que quem representa o FMI só teria alguma legitimidade para se referir publicamente às questões da geografia da fome, no dia em que tivesse terminado com a existência mesma do Fundo que lidera, e já vou explicar porquê.

Percebe-se pois que não vejo o FMI como guardião da virtuosa virgem capitalista, batalhando pela pomposamente declamada “regulação e fiscalização do sistema financeiro internacional”. Usando uma linguagem muito pouco “económica”, diria mesmo que vejo o FMI como o filho bastardo que o capitalismo americano fez à Europa quando a apanhou de gatas depois de atropelada pelos panzers de Rommel.

A modernidade capitalista encetou na América do Norte as experiências com “bolhas”, isto é, com essa técnica que perdura de negociar o inexistente : a bolsa. A ideia parece funcionar na Praça do Giraldo nos dias de "São Porco". Mas aplicada a maiores escalas verifica-se que depressa se começam a vender porcos que as porcas nunca hão-de sequer parir, num roulement à Dona Branca que precisa continuadamente de novos territórios por onde se expandir sob pena de se desfazer como castelo de cartas à mínima brisa, como aconteceu nos anos trinta e volta agora a ameaçar.

A Europa destruída do pós-guerra foi a oportunidade de relançamento dessa lógica e o FMI, mera sucursal da Reserva Federal, o instrumento da nova ordem made in USA. Mas a garantia dos fundadores de manter a convertibilidade do dólar ao ouro a taxa fixa e câmbios fixos, promovendo sobre essa base linhas de crédito de curto prazo para ajustes conjunturais na balança de pagamentos ( que foi a forma encontrada pelo credor (americano) de garantir a solidariedade dos devedores ( europeus ) pela divida de qualquer deles ), esgotou-se com a reconstrução económica europeia. Por isso os EUA não perderam tempo a abandonar o acordo e a mandarem às urtigas o padrão ouro. Diz-se que a partir daí o FMI trabalha fora da sua esfera original porque não alterou os seus estatutos, coisa que só agora ensaia. Mas deve ser piada, porque nestas coisas não há memória de que os americanos revelem modos quando se sentam à mesa dos seus interesses.

Portanto, tudo o que o FMI fez foi adaptar-se e procurar fórmulas rentáveis de continuar a manter o mundo sob o poder do US Dólar . Dessa vez através da flutuabilidade permanente da moeda que, largado o “ lastro”, passou a permitir a quem tem o dinheiro colocar a taxa de câmbio onde quisesse. Mas fez melhor ainda, criando processos que se auto-alimentam, porque ao promover a liberalização das economias periféricas, o FMI mais não fez que aumentar a sua vulnerabilidade ao poder do capital financeiro internacional, até ao ponto em que os contratantes são capturadas para dentro de ciclos de onde não há saída. E não há porque os “arranjos” de politica económica que o FMI promoveu desde os anos setenta como condição necessária à concessão ou aval a créditos, acabaram por ser internalizados ( engolidos ) e passaram a fazer parte das lógicas internas que os adoptaram, transformando-se numa segunda pele sem a qual já não nos sabemos pensar : o neoliberalismo.

Foi o tempo em que Bella-Balassa andou pelo mundo trajando de messias da economia e levando a “salvação”, universalmente possível, à Coreia, ao Egipto, ao Chile, ou a Portugal , onde pregou na catedral da Gulbenkian em Outubro de 76. Só não foi a Espanha porque, contam os anedotários, Franco e Adolfo Suarez só entendiam castelhano, e pelo que hoje se vê só beneficiaram por isso. A mesma sorte não teve o Brasil, cujo divórcio do Fundo, uma magnifica telenovela, César Benjamim conta como ninguém.

De certo modo o FMI apresentou-se como apóstolo da integração económica que estaria no advento do que hoje se chama globalização, banalizando uma nova terminologia do capitalismo que outro Benjamim ( Walter ), adoraria ter conhecido quando nos anos vinte se referiu ao capitalismo como um culto religioso que promove a salvação pela intensificação de um sistema que oferece a crença em si mesmo como única esperança, uma vez que, dizia, como sistema fechado, coerente e monolítico, o capitalismo não tem reforma possível.

Quando assumidos capitalistas, como André Jordan, não se coíbem de dizer na praça pública que se se quisesse efectivamente controlar a extrema volatilidade dos mercados financeiros os capitais especulativos deveriam ser taxados nas praças onde são aplicados em lugar de ( não ) o serem nos paraísos fiscais onde estão domiciliados, prevendo logo a seguir que não há interessados em semelhante abordagem, percebe-se melhor que a única coisa que está em causa são estratégias para tecer as linhas que irão permitir manter nos locais do costume o controlo dos aparelhos por onde se irá manipular a ordem internacional nos próximos anos.

Portanto, as preocupações do Senhor Strauss-Kahn quanto aos problemas gerados pelas (des)economias que o FMI ajudou a criar( como o mercado dos agrocombustiveis na América do Sul ), soam-me a mero preparativo para a mudança periódica de roupagens com a qual se pretende, novamente, salvaguardar o essencial do modelo macroeconómico e financeiro que declaradamente abençoa a supremacia dos valores do capitalismo. Não me parece pois que ele esteja a pregar no deserto nem de improviso. É que o capitalismo precisa de consumidores, nem que seja de consumidores de caridade. E se para isso precisar de se vestir de “verde-humanitário”…

11 comentários:

Fernando Dias disse...

Manuel,
Desta maneira, neste estilo, gosto de ler estes assuntos em que sou um zero, porque fiquei com a sensação de ter percebido uma data de coisas. Uma bela tapeçaria
...:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

É como diz: "Não me parece pois que ele esteja a pregar no deserto nem de improviso. É que o capitalismo precisa de consumidores, nem que seja de consumidores de caridade. E se para isso precisar de se vestir de “verde-humanitário”..."

Mas nesta matéria sou como o Fernando Dias: cansei-me do capitalismo americano, sua reserva e fmi.

Anónimo disse...

Interessante abordagem FMI. Comparação da bolsa com mercado do porco de Évora,hilariante. Confesso sentimentos ambivalentes relativamente FMI - a Vida põe em causa a Sebenta.

Cumprimentos

Anónimo disse...

É um gosto encontrar um blogue de Portugal com referência ao problemão que tem sido a relação do Brasil com o Fundo Monetário. Também nesse particular o governo do Presidente Lula da Silva tem sido um desencanto, travando mesmo a independência da América Latina perante os Estados Unidos como era intenção do MERCOSUL.Onde não enxergo é no que refere aos objectivos ocultos do discursso de Strauss-Kahn.

Felicitações pelo blogue.

antonio ganhão disse...

Estou impressionado! Como é que um rural sabe destas coisas?

Quanto ao anedotório, agora percebo como é possível estabelecer o valor de capitalização da língua Espanhola!

alf disse...

quando a linguagem se solta dos termos técnicos sai com metáforas de fazer inveja ao antónio!

Muito bem escrito

A Economia tornou-se o instrumento de conquista; o uso da violência é uma estupidez, fica tudo destruido e não se consegue depois extrair a riqueza pretendida, que é o objectivo final de toda a conquista. Só se usa a violência para criar aas condições para que as armas "económicas" possam ser usadas.

É o caso do Iraque, foi preciso colocá-lo à mercê da Economia.

Bloqueios económicos só se fazem em relação a paises sem interesse económico, como Cuba. Nem pensar em fazer em relação à China, por exemplo. O Iraque é rico demais para bloqueios económicos, era preciso torná-lo manipulável pela economia para extracção das suas riquezas pelo utilizador dessa arma, os EUA.

Enquanto não for claro que a Economia é a nova guerra pelo controlo do mundo, os paises como Portugal andarão a fazer erros em cima de erros. Só derrotas nesta guerra.

Anónimo disse...

Bem pensado o texto, mas fiquei a pensar nessa do porco alentejano e do FMI!

Manuel Rocha disse...

Agradeço os contributos, meus caros, e na oportunidade deixo resposta à questão que o Walter coloca no seu comentário.

Claro quer posso estar redondamente enganado, mas este tipo de intervenções ( a que se juntam outros "sinais" de outros quadrantes ) cheira-me a ensaio geral para uma "retirada honrosa" da estratégia dos biocombustioveis. Sem se reconhecer que a ideia foi um flop desde o inicio, cria-se o clima propicio para deixar cair o projecto por "razões humanitárias". Todo o mundo achará muito bem e já devem estar na "cozinha" ( BM, BIRD, BEI ) os ingredientes para novo receituário salvifico.
As pessoas que estão nestes lugares não falam com o coração na boca. Há sempre uma estratégia qualquer. Pode ser esta ou outra. Porque a questão da pobreza e da fome nunca deixou de estar ao serviço das economias da liderança.

Blondewithaphd disse...

Manel,
Eu pecadora me confesso da inveja de não ter escrito: "vejo o FMI como o filho bastardo que o capitalismo americano fez à Europa quando a apanhou de gatas depois de atropelada pelos panzers de Rommel". Sublime!
Algures entre Eco e García Marquéz, mas no registo Manuel Rocha, aka, Bolinas.
Laudo sem favor, please!

Blondewithaphd disse...

Desculpa voltar à carga, mas acaso já te apercebeste que se não pensares dar um dia à estampa certos dos teus textos, estás a empobrecer a Humanidade? Olha quem não conhece o blogue e até gosta de ler, já viste que lhe sonegas o prazer das palavras? Think about it!
Food for your thoughts: dares a ler uma amostra dos textos a uma editora independente sugerindo publicação em colectânea de dispersos?

Anónimo disse...

Ah! É claro agora onde queria atingir. Faz sentido, de fato. Muito oportuna sua perspicácia.

Obrigado pela sua resposta.