sábado, 5 de abril de 2008

Pensar Como Um Calhau

Para que amanhã um urso qualquer não se ria de nós, seria interessante que tivéssemos presente que uma das coisas que eventualmente nos pode distinguir dessas simpáticas criaturas é uma História ao longo da qual era suposto termos aprendido aquilo que o urso tem automatizado, i.é, que existem limites de tolerância nos ecossistemas que nos permitem a existência.


De facto, uma possível mais valia do nosso processo civilizacional consiste na disponibilidade de alguma informação que devidamente processada nos deveria permitir compreender que a nossa existência por natureza transitória no "Grande Sistema", tem dependido da capacidade que temos revelado para proceder a manipulações bem sucedidas de alguns dos seus subsistemas ( agricultura, p.e.) . Esta é, de resto, a “receita” das espécies de sucesso. Sem ela não tínhamos atingido como espécie a dimensão e a expansão que conseguimos.


Mas seria exactamente o conhecimento dessa mesma História, mais que as projecções matemáticas, quem nos devia apoiar numa abordagem razoável aos limites objectivos de algumas práticas colonizadoras. Sabe-se através dela que sempre que se quebra de forma continuada a razão unitária entre o que se produz e o que se consome, os sistemas tendem para o desequilíbrio. Ou seja, gerar continuadamente excedentes tem como consequência um ponto de ruptura inevitável.


No entanto, graças a soluções tecnológicas de domesticação de fontes de energia de elevada performance energética ( fontes fósseis ), a modernidade tem conseguido dilatar para lá do que seria imaginável uma razão negativa dessa relação e adiar a ruptura. E quando recentemente nos apercebemos dos riscos dessa deriva, optamos por um compromisso atípico entre a negação e a acção que nos está a dividir o mundinho em duas ilhas e um deserto.


Habitamos numa das ilhas, a Metrópole, temos o jardim na outra, a Área Protegida, e deslocamo-nos entre ambas em variantes de alta velocidade através de um "deserto" onde, por processos que se dizem “sustentáveis”, são produzidos o papel dos jornais que lemos e também o combustível das veículos que nos transportam, pois os alimentos que consumimos está assente que se produzem nos supermercados.


Como qualquer placebo bem promovido, esta solução tem merecido o agrado consensual, pois “demonstra” que é possível o convívio entre o “natural” e o “civilizacional” e nessa medida funciona como um formidável paliativo de consciência para desculpabilizar todas as cavaladas ambientais que os nossos “selves” hiper-individualistas possam cometer nas ilhas metropolitanas do nosso contentamento.


Ou seja, a dicotomia natural vs civilizacional revela-se óptima receita para que a maioria de nós fique tão confiante na suficiência do natural que se protege para equilibrar o sistema dos impactos dos nossos excessos, que se permite continuar ao lado a viver despreocupadamente como se os ecossistemas fossem somatórios de partes e não um todo que artificialmente dividimos. Basicamente, estamos perante uma conveniente convicção do mesmo tipo daquela defendida há aqui uns meses por uma turma de universitários de um curso de Educadores de Infância que asseverava que “quem recicla, reduz”.


O problema é que os “salmões” de que necessitamos para as nossas “hibernações” não se produzem nem nos supermercados, nem nas AP’s, nem nas Metrópoles, mas nos “desertos” por onde transitamos em viaturas “ ecológicas” sem reparar que o território está a ser desleixado a um ponto que corremos o risco de corromper duradouramente o seu potencial de produtividade primária e por conseguinte a sua capacidade ecossistémica de nos suportar a espécie com a qualidade que pretendemos.


O abandono do mundo rural e a criação de AP’s, são as duas faces da aceitação tácita dessa moeda dicotómica que o Ocidente considera uma “inevitabilidade civilizacional”, demitindo-se assim de “pensar como uma montanha”, como disse Aldo Leopoldo, para pensar como um calhau.


( continua )

17 comentários:

Fernando Dias disse...

Continua a valer a pena ler estas suas interessantes reflexões tão naturalmente civilizadas como naturalmente heterodoxas. A alguns não lhes fazia mal nenhum apanharem com um calhau na cabeça para perceberem que os nossos antepassados nos transmitiram sabedoria inscrita na pedras que eles nos deixaram, muito mais do que eles julgam.

Anónimo disse...

Metáforas fortes.
Fio condutor elevado valor eurístico para reapreciação pressupostos ordenamento território, economia, sociedade, fora quadro imediatismo compulsivo tempo presente.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Pois, Manuel, para todos os efeitos temos outro problema que o capitalismo distorceu devido ao seu sonho autodestrutivo: a "explosão demográfica", como dizia Lorenz. Há excesso de pessoas e, qualquer medida, pensa mais nisso do que no futuro. É a escalada de que fala: como melhorar a produção e "proteger" o ambiente" quando é necessário alimentar tanta e tanta gente?! Depois temos o problema do envelhecimento e do pagamento das reformas. Enfim, caminhamos num abismo. Seria necessário romper esse círculo vicioso, mas como? O chamado terceiro Mundo também quer comer! Estamos a devorar a Terra!

alf disse...

o texto está muito bem escrito e a imagem do deserto está muito bem aplicada.

No entanto, eu não concluo que isto esteja errado. A agricultura tradicional em regimes de monocultura também é uma grande criadora de desertos ecológicos. Os métodos modernos de produção de alimentos permitem deixar muito território livre da agricultura, e isso é ecologicamente muito melhor do que ter todos os pedacinhos de terreno submetidos ao homem. Sem esquecer que muitas zonas onde hoje existe "vida" são devidas à acção do homem, anteriormente eram apenas rocha ou zonas de vegetação quase inexistente. Onde hoje há muita floresta, há um século existia apenas insignificante vegetação rasteira.

Eu fico na expectativa, post após post, de ver qual é a alternativa que o manuel preconiza. O suspense está maior que no meu blog eheh

Eu centro-me mais na falta dos componentes essenciais à vida. A falta do azoto em compostos utilizaveis pela vida foi resolvida industrialmente. Mas agora surgem pela frente, num horizonte não muito distante, duas novas carências: a energia e o CO2.

A energia é, para já, o problema mais sério. E estou inteiramente de acordo com a série de posts que o manuel fez sobre o assunto. Não podemos ser tão optimistas que pensamos que vamos resolver o problema. O melhor é começarmos a pensar urgentemente como viver com menos energia.

Manuel, que propõe? Ou, tal como no meu blogue, ainda nós, os leitores, não estamos preparados para a verdade inconveniente?

Anónimo disse...

Caro Manuel Rocha,

Há já algum tempo que venho acompanhando o seu blog.

Há nele uma linha coerente na desmistificação de confortáveis consensos ( os tais denominadores comuns de que fala ) e na procura de perspectivas mais amplas.

Hoje resolvi romper a leitura silenciosa apenas para deixar uma palavra de apreço pelo que já está feito e de incentivo para o que lhe possa acrescentar.

Rui

Anónimo disse...

"Mas seria exactamente o conhecimento dessa mesma História, mais que as projecções matemáticas, quem nos devia apoiar numa abordagem razoável aos limites objectivos de algumas práticas colonizadoras."
Sim... e não. A história pode servir como pontos para ajustar funções matemáticas descritivas e prever resultados. Temos ainda que apenas recentemente podemos pensar além do imediato (digamos, mais de uma geração). Que se saiba apenas a espécie humana é capaz de o fazer mas devido a sermos animais e ao egoísmo (Richard Dawkins, O Gene Egoista) é difícil implementar acções a médio/longo prazo, mesmo que benéficas para a "espécie" em geral.
As espécies não humanas (ou melhor, os cada um dos respectivos elementos) não conhecem limites de tolerância ao ecossistemas: usam e abusam no que puderem de lá extrair. Felizmente devido a ser um sistema complexo, não linear tem sistemas de retroacção que permitiram "equilíbrios" sificientemente estáveis para a actual diversidade. E temos os problemas - gestão de recursos em geral - originados na evolução por um "salto" qualitativo (mentalmente) face às outras: efectivamente uma receita de sucesso - pelo menos no "curto" prazo.
"(...) graças a soluções tecnológicas de domesticação de fontes de energia (...)( fontes fósseis ), a modernidade tem conseguido (...) adiar a ruptura. E quando recentemente nos apercebemos dos riscos dessa deriva(...)."
Suponho que o Manuel acredita que estamos à beira de um esgotamento de recursos energéticos fósseis. Não me parece crível. O esgotamento no médio prazo dificilmente será brusco ou seja soluções energéticas actaulmente "indesejáveis" devido ao elevado custo terão oportunidade de vir a lume "em toda a força" assim que o "custo de extracção" das energias fósseis o permita.
Mas o aumento de custo terá implicações no crescimento (aumento do bem-estar), pelo que o problema do circulo vicioso referido J Francisco Saraiva de Sousa terá de ser resolvido. Mas não consigo perceber porque é que o sistema mais pessoas => mais necessidades => mais emprego => mais bem estar é o adoptado! Afinal menos pessoas, menos empregos, mais tempo livre para um quantidade impressionante de bens duradouros já existente! Exemplificando: se "toda" a população tiver casa própria qual é a necessidade de ganhar 2000 euros e ter de colocar 1000 de parte para pagar a habitação? Assume-se que estaríamos na fase de diminuição da população pelo que não há necessidade significativa de bens duráveis, apenas manutenção.
Parafraseando Alf, melhor é começarmos a pensar urgentemente como viver com menos pessoas.

Manuel Rocha disse...

Fernando Dias,

Algures no "processo" devemos ter perdido a "chave" que nos permitiria aceder a essa sabedoria inscrita nas pedras. Não será só uma questão de "interpretação", mas do pragmatismo dominante típico de certos níveis metabolicamente reduzidos, como gosta de dizer o Francisco...:)


Trigo Pereira,

É exactamente fora desse "quadro" que, a meu ver, importa ensaiar abordagens que possam contribuir para reganharmos um sentido que anda se tem diluído no frenesim de cópula mediática para onde somos arrastados diariamente.


Francisco,

Eu não estou tão certo de que as "medidas" pensem necessariamente no problema alimentar. Neste momento, por exemplo, reconhece-se que a produção alimentar está sob pressão dos agro-combustiveis numa dinâmica que tem tudo de especulativo e nada de estruturante. Efeitos do liberalismo, que potenciam o carpe diem e o "salve-se quem puder"...:)


Alf,

Objectivamente, como sabe, não sou apologista da monocultura. No entanto não vamos reduzir as questões do ordenamento do espaço a essa alternativa dicotómica de monocultura vs. AP's ! Os métodos modernos de produção de alimentos são um enorme calcanhar de Aquiles do nosso sistema. Ando há meses a dizer-lhe que andamos a trocar petróleo por comida, Alf ! E faça-me o obséquio de não confundir floresta com monocultura de eucaliptos e pinheiro bravo ! O mato rasteirinho de que fala ( maquis mediterrânico ) tem mais biodiversidade numa algibeira que a nossa "floresta" toda junta...;)

Aqui e ali tenho deixado umas dicas sobre caminhos a meu ver alternativos. Mas não me peça para "blogar" um programa de governo...:)

Brincadeiras à parte, é para mim óbvio que todos beneficiaríamos se o "crescimento económico" deixasse de estar no topo das agendas politicas. Repensar a questão das lógicas e das referências de formação dos preços e dos mecanismos do comércio, ajudaria muito. Mas não tenho grandes dúvidas de que pelo andar da carruagem estas questões só serão equacionadas no dia em que se tenha dado um valente trambolhão !

Rui,

Obrigado pelo incentivo…:)


Osvaldo,

Obrigado pelo pertinente comentário.

Acha mesmo que os Romanos transpuseram para o seu ordenamento jurídico o lugar a ocupar pelo trigo nas rotações de culturas graças a alguma função matemática ? Ou limitaram-se a reinterpretar os tempos que os antecederam tendo naturalmente constatado que só respeitando os tempos naturais de reposição do fundo de fertilidade poderiam obter dessa cultura mais que a semente deitada à terra ? Bem…é que foram medidas não matemáticas como essa que suportaram a consolidação civilizacional do Ocidente para além da vigência de Roma e até á revolução industrial!
Tenho para mim que é a valia deste tipo de entendimentos do funcionamento dos ecossistemas de substituição que tem segurado o nosso sucesso como sere ecológica, por isso não entendo que se tenham deitado pelo cano como velharia sem uso !
Entretanto e por isso, convirá que têm sido as fontes fósseis o suporte do crescimento da população, certo ? Ora como é evidente as predições do seu esgotamento já tiveram muitas vezes data marcada. Antes disso já Malthus tinha profetizado a desgraça por sobrecarga populacional. Mas também nós estamos sujeito a todo o tipo de retroacções, dou isso de barato e não não tenho por relevantes as teses catastrofistas. O que me parece estranho ( no mínimo…) é que se continue a investir num paradigma social e económico que se suporta em fontes de energia solicitadas à escala que se sabe, sabendo-se que não são renováveis,quando parece óbvio que tal dinâmica irá mais cedo ou mais tarde implicar objectivamente com a qualidade de vida das pessoas ( no minimo)!
De resto, também não entendo para que é que se insiste na necessidade de “mais pessoas”…:(

Anónimo disse...

"(...)limitaram-se a reinterpretar os tempos que os antecederam(...)"
È perfeitamente possível o reconhecimento de padrões, os mais simples, sem usar compreensão matemática. Creio que muitas espécies o fazem (ou usam o condicionamento tipo Pavlov e/ou aprendem individualmente por tentativa e erro), e no caso da espécie humana são terrivelmente eficazes na propagação dos bons truques que descobriram através da comunicação/cultura.

A redução de padrões à matemática (basicamente o que se poderá designar por ciências) tem uma vantagem enorme: permite simular o futuro com maior precisão e, alterando/adicionando parâmetros, pensar em futuros alternativos.
Se se usar apenas o senso comum as hipóteses de nos "saírem as contas erradas" serão maiores e, mais grave ainda, podem-nos passar ao lado opções que a exploração matemática mostraria.

Evidentemente que o modelo tem que ser "bom", ou seja capaz de explicar o passado e o presente para nos dar algumas garantias no futuro.

E claro que temos o problema de funções mal-comportadas, ou seja extremamente sensíveis a pequenas variações nos parãmetros - meteorologia, economia, dinâmica de sistemas biológicos, etc. - normalmente devido a serem não lineares.

Manuel Rocha disse...

Certíssimo !

:))

Anónimo disse...

Meu caro Manuel Rocha,

a sua argumentação é muito interessante, mas o embalo leva-o também a desvios tortuosos: com que então uma serrania afogada num urzal de "monocultura", resultado de um sistema agro-pastoril depredatório que conseguiu manter camadas de população rural de um país europeu a viver com o conforto da Idade do Ferro em pleno século XX, um coberto vegetal que mantinha ele próprio a sucessão ecológica estancada, tinha mais biodiversidade que os pinhais ou mesmo muitos dos eucaliptais actuais??!!
Meu caro, evite a "alta velocidade" nas autoestradas e aproveite esta fase de rebentação primaveril para descobrir no sub-bosque dos seus "desertos arbóreos" as quercíneas que, pelos vistos, não existem... (E, já agora, pense como podemos explicar aos proprietários das matas que afinal não têm que as "limpar" até ao estio: é tudo ilusão...)

Um abraço e continue, mas abrande nas curvas!

B. Gomes

Manuel Rocha disse...

Caro B Gomes,

Obrigado pela visita e pelo comentário.

Garanto-lhe que estou parado na berma com o motor desligado e os piscas ligados ...:) Mas terá que me explicar melhor o seu ponto porque juro que não cheguei lá! Se se está a referir a uma nota de comentário em que dizia que o maquis mediterrãnico tem muito maior biodiversidade que o pinhal, o eucaliptal ou até o montado, isso mantenho e demonstro com todo o gosto, se tiver nisso interesse. Mas agradeço que evite exercicios de copy-paste com ilacções que não são minhas.

Anónimo disse...

Caríssimo Manuel Rocha,

a "insignificante vegetação rasteira" de que fala o cibernauta alf é a mesma de que falo eu e que é descrita nos relatórios dos naturalistas, engenheiros geógrafos e florestais que primeiro exploraram sistematicamente os sertões portugueses nos meados dos século XIX. Abundavam nas "charnecas e cumeadas incultas" cuja exploração agropastoril extrema levou, já no século XX, à quase extinção de espécies de caça maior como o javali ou o veado, que hoje proliferam nas "florestas" de pinheiro e eucalipto e nas suas interfaces com as pastagens, as hortas e os milharais.

Não tenho dúvidas que arranjará tipos de maquis mediterrânico bem mais biodiversos que muitos eucaliptais, pinhais ou sobreirais "simplificados"; porém contesto que os carrascais extremes da Arrábida ou os estevais a perder de vista do Além-Tejo sejam mais biodiversos que um pinhal silvestre plantado da serra do Marão, cheio de azevinhos, tramazeiras, giestas e mais todo o cortejo das herbáceas e arbustivas característico dos matagais circundantes. Ou mesmo que um pinhal bravo de Sines, onde coexistem as espécies dos zimbrais e dos tojais da Costa da Galé.

E cuidado com os preconceitos serôdios: as matas estruturalmente simplificadas de pinheiros, de regeneração artificial, que designa por "florestas" e que o mainstream do ecologicamente correcto pensa desqualificar apodando-as de "monoculturas", mais não fazem que reproduzir um ciclo de vida normal e natural de espécies de coníferas que comprovadamente são indígenas do nosso território. Na natureza pré-neolítica elas eram, genuinamente, monoculturas!

Meu caro Manuel Rocha, como bem sabe o problema, não está nas "monoculturas", sejam de pinheiro, de carrasco ou ainda de sobreiro, nem nas "florestas", nem nas "exóticas", nem nas "celuloses" nem nos "madeireiros".

São discussões estéreis e inúteis, quando, dentro e fora das áreas protegidas, neste início do séc. XXI ardem mais de 200 000 ha de espaços silvestres por ano, as invasoras lenhosas ganham terreno cada dia e não se vê maneira de estancar a sangria demográfica em 2/3 do território, só para citar alguns processos em curso enquanto discutimos as "monoculturas".

Hoje seremos mais biodiversos que no século XIX, mas não sei como estarão os 6 milhões de "espaços naturais", reforçadamente protegidos em Diário da República, daqui a algumas décadas.

Abraço

B. Gomes

Manuel Rocha disse...

Caro B Gomes,

Pronto, agora já nos estamos a entender...:)

O seu esclarecimento foi claro como água cristalina. No essencial estou inteiramente de acordo consigo. Mas convirá que extrapolou em demasia a nota genérica, o que revela saudável susceptibilidade silvícola….:)

Recapitulemos os tópicos da discórdia.

Escreveu o Alf:
“Onde hoje há muita floresta, há um século existia apenas insignificante vegetação rasteira.”

Respondi eu:
“ o mato rasteirinho de que fala (maquis mediterrânico ) tem mais biodiversidade numa algibeira que a nossa “floresta” toda junta…”

Comentou o Gomes:
“ com que então uma serrania afogada num urzal de monocultura, resultado de um sistema agro pastoril depredatório …tinha mais biodiversidade que os pinhais ou mesmo muitos dos eucaliptais actuais ??!!”

Se estiver de acordo dou de barato que todos três estivemos mal porque incorremos em generalizações abusivas. Embora pequenino, o Portugalinho tem uma diversidade geográfica que não nos permite em bom rigor extrapolar como fizemos.No caso, porque há ( e houve ) vegetação rasteirinha de elevada produtividade primária; porque não temos uma “floresta” mas soluções arbóreas em estádios ecológicos muito diversos; porque o “urzal de monocultura” também tinha a sua localização geográfica.
Agora o que me parece é que o Gomes arrancou daqui a alta velocidade para ilações que de todo não estão na minha linha. Se um destes dias tiver paciência para passar os olhos pelo que por aqui tenho deixado, verá certamente que o que mais tenho escrito é exactamente contra certo tipo de revivalismos e de propensões conservacionistas em que o natural aparece mitificado e que vão contribuindo para a construção deste Portugalinho assimétrico que tem assistido à morte do mundo rural sem perceber os custos de não ter sido capaz de em devido tempo promover o seu desenvolvimento. Ou seja, se há coisa que ando a tentar fazer ( e nestes dois pots em particular é ai que tento andar ) é exactamente remar contra os “preconceitos serôdios” que refere, entre outros, tudo dentro das minhas modestas capacidades, bem entendido.

Quanto às matas estruturalmente simplificadas, sejam de pinhal ou eucaliptal, devo dizer que contra elas nada tenho em principio. Excepto se, e é o caso frequente, surgirem em manchas continuas de enormes dimensão sem qualquer preocupação de compartimentação e de localização concreta, e submergindo por inteiro a agricultura e a pecuária que era possível . Estou certo que o Gomes não iria subscrever o projecto ( ardido ) da “maior mancha de pinhal da Europa “ ( Vila de Rei ) ou do eucaliptal continuo que se estende ( também ardido ) no triângulo Bensafrim-Monchique- Odemira.

No final dos anos setenta e a propósito da eucaliptização da Serra D’Ossa decorreu uma interessante polémica entre o Mariano Feio e Gomes Guerreiro. Essa polémica teve na produtividade biológica vs rentabilidade económica o seu “ponto quente” . Suponho que a conheça, e que concorda que nela houve pontos de vista de forte pertinência, embora o decorrer do tempo e os incêndios entretanto havidos tenham dado clara vantagem às teses de Gomes Guerreiro, não lhe parece ?

Volte sempre e faça o favor de ser polémico !
Gosto disso !

Abraço.
)

Anónimo disse...

Caríssimo Manuel Rocha,

A polémica da eucaliptização da serra da Ossa* não passa de um remake da polémica sobre a pinheirização do país que opôs dois outros engenheiros de envergadura, Vieira Natividade e Freire Themudo, nos idos anos 40. Só que num ambiente de grande liberalização e discussão política, logo com um impacte mediático incomparável.

A eucaliptização de boa parte da serra da Ossa foi pior que continuar com as rotinas atávicas? Mas já se fizeram as contas todas? E se a serra da Ossa tivesse tido o mesmo percurso que dois outros solares do montado de sobro, a serra de Grândola e a do Caldeirão, hoje essencialmente cemitérios de sobreiros doentes ou carbonizados?

Não considero a serra de Ossa um exemplo a seguir, nem há quem o aplique hoje, mas gostava de conhecer as alternativas (sem ironia!).

B. Gomes



[*significativo topónimo, equivalente a "serra da Ursa", espécie extinta em Portugal no séc. XVII... em plena era pré-industrial de ocupação harmoniosa da paisagem...]

Fátima Lopes disse...

Olá Manuel,

Gostei especialmente deste pedaço: "Como qualquer placebo bem promovido, esta solução tem merecido o agrado consensual, pois “demonstra” que é possível o convívio entre o “natural” e o “civilizacional” e nessa medida funciona como um formidável paliativo de consciência para desculpabilizar todas as cavaladas ambientais que os nossos “selves” hiper-individualistas possam cometer nas ilhas metropolitanas do nosso contentamento."

Eu não defendo as "hortas" mas talvez a vida organizada em comunidades descentralizadas, em que todos fossem, simultaneamente, contribuintes e beneficiários da produção. Até porque, as nossas necessidades de comida estão a diminuir(*), logo, o desgaste do meio ambiente com a produção agrícola também deverá reduzir-se.

(*) excepto pelos alarves que por vezes encontro nos restaurantes "Preço Certo", que sabendo que pagam o mesmo por muito ou por pouco, leva de fazer uma pirâmide de comida no minusculo prato, até não caber mais. :P

Um abraço

Pink

alf disse...

Um prazer ler estas discussões! Já tenho dito que metade do valor dum blogue estás nos posts e metade está noc comentários!

Esclareço uma coisa que disse: qd referi o mato rasteirinho de antigamente estava a pensar sobretudo nas terras altas, acima aí dos 600m de cota que ainda é uma boa parte do pais e onde existe hoje muita floresta.


Os eucaliptais são um deserto ecologico, uma tragédia, mas os pinheirais não são tanto. Bastaria umas poucas árvores doutras espécies entremeadas com os eucaliptos para mudar completamente a catástrofe ecologica criada por um eucaliptal.

jf saraiva de sousa e osvaldo lucas focam um problema muito importante: o numero de pessoas!

São umas contas que o manuel podia um dia entreter-se a fazer: qt "custa" cada pessoa em recursos e qual o numero d epessoas sustentável.

A paz e a guerra no mundo são essencialmente uma consequencia da relação entre recursos e pessoas: sobrepopulação dá sempre guerra.

As economias ocidentais andam baseadas numa espécie de Dona Branca sobre o numero de pessoas.. andamos às cegas com o numero de pessoas..

Manuel Rocha disse...

Prezado B Gomes:

Acredite que são um gosto esses comentários.
Gostei de saber que está a par dessas polémicas. A de Natividade vs Themudo conhecia-a através de uma recensão de Lobo de Azevedo em comentário exactamente à que referíamos.

Sobre as suas pertinentes questões, é evidente que não tenho resposta. De resto o que me move é exactamente essa noção de que eventualmente precisaremos de um paradigma alternativo para ponderar as nossas opções de intervenção sobre o meio. Julgo que convergimos em que as abordagens clássicas estão esgotadas e ainda em que em matéria de intervenção sobre o meio se justifica o bom método alentejano: “ antes devagar e bem que depressa e mal”!

Um abraço.



Olá Pink,

Como leitora assídua das minhas arengas sabe bem que não sou um radical do “regresso às hortas”. Limito-me a chamar a atenção para o facto de ainda não ter sido descoberta a fórmula para vivermos sem elas, apesar de os últimos tempos nos terem dado essa ilusão…:)