terça-feira, 2 de novembro de 2010

"Portugal perde com Espanha"

Portugal perde com Espanha” - titulava a primeira página do jornal. No desenvolvimento inferia-se que se tratava do resultado desportivo de um evento que teve lugar há umas semanas. Só lá para o fim da noticia é que se percebia que Portugal tinha perdido com a Espanha, sim, mas na final do campeonato da Europa de hóquei em patins. Portanto, a noticia poderia ter sido encabeçada com algo do género “Portugal de novo no Pódio” ? Podia, mas não era a mesma coisa. Ou seja, não servia a propensão instalada para menorizar qualquer aspecto da vida nacional, modalidade narrativa que se adequa perfeitamente à demonstração da tese fadista de que somos um atraso de vida.

A coisa tornou-se tão consensual que até nos meios académicos o mais insuspeito phd já se dispensa de a fundamentar. De resto, se instado a isso, escapatórias não lhe faltam. As mais correntes são as “comparativas”, e aí a inteligência lusa segue duas vias complementares. A primeira investida é a impressionista. Nesta variante envereda-se por generalizações e comparamo-nos com a França ou com os Estados Unidos, como se a França fosse apenas Paris ou os USA Nova Iorque. Bem, quem conhece França sabe que a única coisa em comum entre o planalto central e a bacia de Paris é a língua. E o Utha tem tanto a ver com Nova Iorque como a Sicilia com a Lombardia ou Barrancos com Cascais. Confrontados com a falta de mundo que se expressa nessas comparações reducionistas, o fadista luso refugia-se então nos comparativos numéricos. Mas de que massa é feita a objectividade que se atribui a certos números ?


A necessidade de entender o mundo de uma forma tão objectiva quanto possível, levou à quantificação das narrativas que sobre ele produzimos. Os números têm a grande vantagem de constituírem uma linguagem que não necessita de tradução . Além disso são fáceis de representar, comparar, hierarquizar. Portanto vulgarizou-se o uso de indicadores e índices numéricos para representar certos fenómenos, e isso tem muitas vantagens. O problema é quando ao ler os números nos esquecemos que eles também servem para representar a realidade, mas não a esgotam. O desenho minucioso dos alçados e plantas de um edifício não dizem tudo sobre a sua habitabilidade. Quando esse equivoco acontece, abre-se a porta a uma infinitude de juízos qualitativos, nem sempre correctos, pois os magníficos edifícios de Gaudi têm tanto de impressionante como de inabitável.


O mesmo se passa com muitos edifícios numéricos: escodem por detrás da fachada detalhes nem sempre virtuosos. Percebe-se que uma média de resultados num exame nacional de matemática ou um PIB per capita, p.e., não são medidas com a objectividade do kilograma ou do metro linear. Dito assim qualquer um vê nisto uma evidência: 10 kg de laranjas não é uma medida com a mesma objectividade quantitativa de um 10 a matemática. Esse compreensão deveria levar a cuidados redobrados na leitura de informação de base numérica, fosse de um ranking de escolas em função dos respectivos resultados médios num exame de matemática, seja de um ranking de países em função do respectivo PIB per capita. Mas curiosamente a tendência mais comum não é essa. Pelo contrário. O mais frequente é atribuir automaticamente mérito às posições de topo e demérito às da cauda.

Quando se verifica que a Noruega é líder europeu na riqueza e Portugal segue na cauda desse pelotão, passa-se imediatamente para as qualificações. E não se poupa na adjectivação: Diz-se então que a Noruega é um pais desenvolvido e Portugal, normalmente referido como “este país” um “atraso de vida”. Se questionado sobre a objectividade da qualificação, das duas uma: ou o opinador se refugia no silêncio ou atira à cara do perguntador a “autoridade” dos “critérios internacionalmente aceites”. Poderia prosseguir esta prosa implicando com a natureza desses “critérios” e respectivos mecanismos de “aceitação internacional”, que tinha muito por onde cortar. Mas para o que pretendo vou fazer de conta que os aceito como bons.

Então, à luz dos tais critérios internacionalmente aceites para quantificar desenvolvimento e prosperidade, como o PIB per-capita, ou a escolaridade, ou o coeficiente de Gini ( para a pobreza ) , as actuais performances portuguesas são de facto inferiores às dos noruegueses. Mas será correcto inferir-se dessa diferença uma qualidade de vida inferior ou um atraso histórico devedor de uma superior capacidade liquida dos noruegueses para atingir os resultados em apreciação?

Talvez não. Na realidade os países são muito diferentes. São diferentes em tamanho, em população, em recursos , em história, em cultura. E em cada momento da história essas diferenças exprimem-se de maneiras distintas que dificilmente se anulam nos indicadores e índices numéricos com que se caracteriza os seus percursos. Mesmo que o paradigma seja o mesmo, as diferenças objectivas que se referiram levam a trajectos e tempos diferentes para os alcançar. E mesmo que alguns dos resultados alcançados possam ser idênticos, não têm necessariamente o mesmo impacto. Note-se que para idêntica capacidade de produção bruta de riqueza, basta que um país tenha metade da população de outro para que o seu pib per capita seja o dobro. E quanto à formação dessa riqueza, note-se que os números do PIB são omissos em especificações que importam. Não é indiferente se a riqueza se acumula como receita da concessão da extracção de petróleo das respectivas plataformas continentais, ou se implica a captura racional, transformação e venda de sardinhas enlatadas. Raro é que se tenha em conta essas diferenças substanciais quando se envereda pelos “comparativos”, e percebe-se porquê: ficam em xeque as teses do “atraso estrutural português”.

Tende-se a esquecer que a realização do paradigma de prosperidade com que Ocidente embirrou, fundou-se no capitalismo industrial. Para o promover, os países recorreram historicamente a dois tipos de recursos: energia fóssil e mais qualquer coisa. Quem entrou na corrida desse paradigma com o respectivo sub-solo recheado de energia fóssil , à partida já tinha meio percurso de vantagem; quem só tinha mais qualquer coisa, ou fez batota ou precisou de pedalar o dobro. Portugal, mesmo que possa ter-se sentido tentado a fazer batota, enveredando por exemplo por oportunismos à la suisse , ter-lhe-á faltado para isso a oportunidade ou foi acometido por algum assomo ético, não sei. Sei que nos sobrou pedalar. E quem faz desse processo leituras sérias isentas de contaminações ideológicas, não consegue deixar de se surpreender com a performance portuguesa no século xx. Reconhecê-lo publicamente é que é uma maçada, pois contraria a tradicional tese fadista a que nos habituamos. Há na alma lusa essa espécie de alergia às narrativas de sucesso em causa própria. A aposta provinciana nas narrativas miserabilistas, é um valor seguro, vende sempre, como é o caso da que empresta o título a esta prosa.

4 comentários:

antonio ganhão disse...

Existem coisas que irritam uma Blonde... Não devemos tentar descodificar esse mistério.

Matilde Costa disse...

Olá Manel !

O post é mt pertinente, a opinião publicada e o senso comum são subjectivamente pessimistas ou eufóricos, conforme o vento. Não sei como se sai disto, se é que há saída. Afinal por que farol nos devemos guiar ?

Anónimo disse...

Pois é, os paises são muito diferentes, são tão diferentes que estamos na cauda da europa no IDH que a ONU divulgou. Depois de décadas a receber rios de dinheiro de Bruxelas, já que sabe tanto, explique-nos lá como isto é possivel para ver se aprendemos alguma coisa consigo.

Jorge Correia disse...

http://noticias.pt.msn.com/Politica/article.aspx?cp-documentid=155169593

lol

Nem de propósito o comentário anterior! Que interessa se estamos no grupo de paises com "desenvolvimento humano muito elevado" e se temos vindo sp a crescer neste ranking da treta, se continuamos a não ser o primeiro, não é assim ? E aposto que se fossemos o primeiro, logo iria aparecer um anónimo qq a dizer que isso era pq os dados da educação ou da longevidade tinham sido aldrabados ( pelo Sócrates, claro, quem mais poderia ser ? ). Estou como a Matilde Costa, tb não sei como se sai disto! Ainda ontem tentei convencer os colegas de geografia para organizarmos uma iniciativa qualquer com vista á desmontagem critica deste género de indices. De resposta uns acharam que não havia nada a criticar, outros encolheram os ombros, e uns poucos apoiaram-me: "se quiseres, faz..."