sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A banalização da asneira



O disparate cansa! A asneira tem vindo a transformar a discussão da generalidade das questões económicas e financeiras, numa canseira medonha. Pela parte que me toca, esse cansaço até não tem muito a ver com o habitual burburinho popular, quase sempre reflexo e impressionista . O que particularmente me incomoda é a produção sistemática dos discursos estupidificantes que lhe dão azo. É que essa produção é promovida por quem tem obrigação de fazer muito melhor.

A ideia peregrina em circulação segundo a qual a despesa do Estado é toda ela um desperdício de impostos e um contributo liquido para o deficit das contas publicas, é uma delas. Esta tese deixa implícito que a moral é necessária às performances do capitalismo. Ora isto é pueril. O capitalismo não tem nada a ver com moral, as empresas não são misericórdias, e os seus resultados não têm qualquer relação com a ética das decisões económicas.

A acumulação capitalista que todos reivindicamos para aceder ao paradigma de qualidade de vida que incorporamos, alimenta-se da circulação do capital e é perfeitamente alheia à natureza ou à utilidade material, social ou moral, do que se transacciona para o efeito. Haja mercado que a lógica intrínseca ao sistema trata do resto. Para a “prosperidade capitalista ” , é perfeitamente irrelevante se os meios financeiros que se geram resultam de despesas de investimento efectuadas na educação, na saúde, num bordel, na produção de minas anti-pessoal, ou no trafico de órgãos. Mas parece que ainda há quem não tenha percebido isso. Ou percebeu e faz de conta que não percebeu, por razões que não me interessam nem me merecem o mínimo respeito. Certo é que quando se criticam as jantaradas dos tipos das finanças, ou da malta da câmara de Oeiras, baralha-se tudo: deontologia do serviço público, economia capitalista, contabilidade pública e parvoíce qb.

Do ponto de vista do capitalismo liberal, uma jantarada de qualquer repartição paga pelo orçamento, é apenas a economia à mesa a alimentar-se para produzir mais prosperidade capitalista. Isto é, dinheiro de impostos a pagar salários a cozinheiros e empregados de mesa, géneros a grossistas, retalhistas e produtores, rendas a proprietários, a fomentar o consumo, o mercado, a gerar receita para os empresários, juros para os bancos, a contribuir para o crescimento e para a cobrança de impostos para pagar mais jantaradas, ou auto-estradas ou cartazes de campanhas presidenciais, ou outra cena qualquer. Na verdade, para a boa performance económica e contabilista deste modelo em que vivemos, dá mais resultado gastar dinheiro com jantaradas de leitão na Mealhada, do que pagar tratamentos para a leucemia em Chicago a uma criança com essa doença, ou financiar bolsas de estudo para doutoramento em economia em Harvard. Chocante? Pois é, mas é assim mesmo. Os tratamentos médicos e as bolsas de estudo no exterior são importações, aumentam o deficit; as jantaradas de leitão são consumo interno de produto interno, contribuem para o crescimento desta economia. É para evitar esses absurdos que se diz que a economia deve estar ao serviço da politica, e não o contrário, como vem sucedendo. Mas não é com exemplos descontextualizados e discursos estupidificantes que isso se explica.

6 comentários:

antonio ganhão disse...

Quando me acontecer almoçar à custa do erário público, terminarei com uma aguardente Velhíssima em consideração ao aqui exposto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aplauso! É preciso denunciar esse discurso moralista e denunciar a terapia moral. Não faz sentido!

Fátima Lopes disse...

O Manuel Rocha está um brincalhão!

Eu até percebo mas como funcionária do estado a quem vão cortar no salário a partir de 2011,preferia que se cortasse nas despesas de almoçaradas, jantaradas e outras trapalhadas. Percebo que a economia tem que girar mas por isso mesmo é que preferia manter o meu nível salarial para poder "consumir" mais e contribuir para a saúde económica do país. Também pretendo ingressar numa Instituição Privada de Ensino Superior e pelo que consta vão ser cortados apoios a estas instituições...Ora bolas! então o apertar do cinto é sempre para os mesmos? Os Srs. Ministros e Deputados não têm salário para pagar as suas próprias refeições? A verdade é que a vida custa a todos e quem dita as regras do "apertar o cinto" deveria (perdoe-me Manuel - a bem da moral)dar o exemplo.

Pink

Manuel Rocha disse...

Pink & António:
Fui pouco claro ou leram-me à pressa ? :)
Não tenho uma virgula de contestação ao discurso da Blue. O que pretendi foi explicar que em contexto capitalista, contabilidade e moral são campeonatos distintos. Não faz sentido usar argumentos morais ( por muito bons que sejam ) para criticar ou defender resultados contabilísticos. Moralmente sou todo a favor de não cortar o vencimento à Blue. Tudo o que garanto é que se a Blue usasse o que lhe vão cortar para me comprar directamente a mim um cabaz mensal de produtos agrícolas biológicos, essa despesa tem menor efeito multiplicador na economia que qualquer jantarada mensal paga ( no equivalente ao corte que lhe farão ) pelo orçamento da repartição onde trabalha. A moral na economia é útil à sociedade, não à economia capitalista. Como é evidente daqui não deriva que a boa economia seja necessariamente a imoral; deriva sim que a performance contabilística nada tem a ver com a moralidade das práticas económicas. Apenas isso. Fui mais claro agora ?? É que sem se ter isto claro as discussões destas temáticas transformam-se em processos circulares. Cabe á politica optar pelo sistema económico que acha mais adequado aos desígnios da sociedade. Há sistemas económicos que são na integra edifícios morais - o comunismo, por exemplo. Há outros que são intrinsecamente imorais – o capitalismo, por exemplo. E há ainda outros que são simplesmente ingénuos. Aqui tanto faz se são os que acham que o capitalismo pode ser moral como os que acreditam que o comunismo pode promover o lucro sem se desintegrar.

Fátima Lopes disse...

Eu percebi à primeira Manuel,

O que me incomoda de facto é a falta de moral seja na politica ou na economia, ponto. Claro que o capitalismo não é um sistema nobre, é interesseiro, grosseiro e sem escrupulos no que toca a auto-alimentar-se.

O que me custa é ver um sistema quase moribundo a arrastar consigo p'ra penuria todo o desgraçado que tenta a custo, e no uso da moral e dos bons costumes, sobreviver.

Mas sim, reconheço que a moral e a economia não andam muito de mãos dadas sobretudo nestes tempos em que esta última anda pelas ruas da amargura e portanto, vale tudo.

Trigo Pereira disse...

Mais um post necessário !

Cumprimentos