sábado, 2 de agosto de 2008

Largada de Joaninhas


Sol, solo, ar, água, plantas . São estes os elementos da caldeirada química a que se chama agricultura. Agricultura é bioquímica aplicada com uma intencionalidade que não tem nada a ver com a atitude passiva de colher o que a natureza oferece. A natureza não faz agricultura, e ainda que a fizesse não poderia evitar o recurso à química, porque a vida é um fenómeno químico. Quem faz agricultura é o bicho homem que descobriu como tirar partido dos processos químicos e dos excedentes de energia das fases serais primárias dos ecossistemas vegetais e por isso as replica.

No entanto, porque se trata de um processo de indução e gestão de desequilíbrios, tem as suas delicadezas. Parte delas foram resolvidas pela observação-experimentação-repetição empíricas, antes das ciências descodificarem muitos porquês dessas práticas e com eles construído edifícios de explicações .

Qualquer edifício é uma estrutura relativamente complexa cuja compreensão requer algum tipo de especialização. As questões da agronomia não fogem a essa regra. Nem à perda de perspectiva que dela decorre. Ou seja, na tentativa de perceber e resolver o detalhe corre-se o risco de perder a noção do todo e com isso a razão social da demanda.

Não sei se terá sido por aí que a partir de certa altura a prioridade da agricultura passou a ser a de fazer dinheiro e não a de produzir alimentos. Uma vez criada uma certa capacidade de controlo sobre inúmeros acontecimentos aleatórios, como os acidentes sanitários, a agricultura tornou-se mais previsível e por isso um negócio potencial. Mas essa mudança de atitude a que se chamou agro-indústria substituiu a antiga lógica segundo a qual as produções agrícolas se adaptavam aos locais onde se realizavam para aí responderem a necessidades alimentares, por uma nova postura, que consiste em adaptar os locais aos produtos com maior capacidade de gerar receita, independentemente do uso que deles venha a ser feito e do local onde se irão ser consumidos.

Claro que esse esforço de artificialização arrasta consigo todo um programa ao qual alguém chamou "revolução verde". Uma original adjectivação para designar um ideal e um processo tecnológico que em pouco mais de cinquenta anos alteraram radicalmente a relação histórica com a terra. Foi uma revolução, de facto. E como tal também tem os seus cronistas. Giovanni Federico, por exemplo, publicou recentemente uma obra que tem vindo a fazer as delicias dos que têm por passatempo deslumbrar-se com as formidáveis conquistas da ciência e da técnica, neste caso na agricultura. Nesse trabalho, a análise de GFederico não consegue contornar as inevitáveis derivas ideológicas quando considera como coroas de glória da revolução verde o aumento da população mundial que terá permitido e a redução dos activos agrícolas a que conduziu.

São duas teses curiosas, pois são apresentadas como justificação, como resposta a uma espécie de desígnio que impunha essa dupla cruzada . A primeira, deixa implícito que a população precisava de se multiplicar , que, vá-se lá a saber porquê, seriamos poucos e precisávamos de ser seis vezes mais, crescimento esse que seria um género de inevitabilidade sagrada que ninguém deve questionar e que a técnica só tinha o dever de viabilizar. A segunda, apoia-se na dupla premissa de que um peso expressivo do mundo rural é um mal em si e que a única alternativa para a melhoria geral das condições das sociedades ditas rurais, seria a transferência de população para as periferias urbanas.

Entretanto, concretizadas que foram essas "conquistas", não estão resolvidos os desacertos entre população e recursos, nomeadamente alimentares, e a sangria de população rural para a periferia urbana criou outros problemas: a desertificação dos interiores, assimetrias territoriais consideráveis e uma macrocefalia metropolitana paralisante, além de ter transferido o tradicional sub-emprego crónico entre o proletariado rural para desemprego endémico entre o proletariado urbano. Quanto à agro-indústria que se instalou, ela gerou uma dinâmica insustentável de prosperidade aparente assente na produção-dependência dos combustíveis fósseis, com problemas generalizados ao nível da ocupação da solo, da gestão da água, da biodiversidade e da própria segurança alimentar que pretendia ter resolvido.

Ora foi neste contexto que a Europa institucionalizou aquilo a que chamou Agricultura Biológica.

Os argumentos que inicialmente usou para o fazer colocavam a tónica na defesa dos consumidores relativamente a eventuais abusos do "marketing biológico". Mas ao fazê-lo acabou também por reconhecer implicitamente que o modo de produção convencional tem impactos indesejáveis no ambiente e na saúde dos consumidores. Assim, com a institucionalização da AB, a EU dividiu os produtos agrícolas em duas categorias: os de primeira, bio, e os de segunda, os restantes, a que chama convencionais. Ao fazê-lo, reconheceu que a norma agrícola não serve, que tem deficiências. Mas em lugar de investir em ultrapassá-las através de medidas estruturais que modificassem os modos de produção para o bem comum, limitou-se a pactuar com o que condena criando um sub-sistema que considera alternativo. Mas o argumento de que deste modo permite ao consumidor a possibilidade de escolha, também não serve, porque em rigor essa liberdade nunca esteve em causa. Na realidade, nada impede ninguém de se associar para cultivar as couves que consome como bem entender. Nem a comercialização do que quer que seja deixou alguma vez de estar sujeita à lei geral. O que não me parece fazer sentido é a existência em paralelo de dois sub-sistemas para dar resposta á mesma função: a de garantir a segurança alimentar. Nem vejo que exista qualquer razão que justifique que se criem regras especiais para consumidores especiais.

Por outro lado a regulamentação da AB faz uso de uma linguagem que traduz os conceitos de tal modo que induz o público em ideias erradas. Desde logo pela forma como se adjectiva ( biológica, bio, organica ), quando na realidade remete para uma prática fitossanitária de luta integrada, que é aquela que associa luta química e biológica no controlo de pragas e doenças, e que não é exactamente a ideia que fazemos das largadas de joaninhas, essas sim características da luta biológica. Deste modo constrói-se uma mitologia pouco educativa em redor destas práticas agrícolas, que são compreendidas como inócuas. Mas as moléculas dos piretróides ( os insecticidas da nova geração ) naturais ( extraídos dos crisântemos ) autorizados na AB, são um desastre para os ecossistemas de água doce, por exemplo, e nessa medida não se distinguem dos de síntese. O que reforça a ideia essa sim pertinente de que o que classifica um produto como veneno é mais a dose e o contexto do seu uso do que a sua natureza, pelo que a questão não está tanto em usá-los ou não mas em como se usa e nas razões que fazem com esse uso seja necessário.

Ora essas razões continuam a ser a produção em massa para o mercado, fruto duma relação desajustada entre população e recursos, e uma ideia de gestão que só entende a economia pelo lado dos seus resultados financeiros, pelo que não prescinde da competitividade como condição de existência do que quer que seja. Isso mesmo é admitido pela EU, pois embora reconheça a asneira que tem sido a tremenda apatia perante a degradação do mundo rural, não se atreve a mais que a tímidas tentativas de revitalizá-lo a reboque de acções que usam como remédio aquilo que o asfixiou: o mercado e a livre iniciativa. Provavelmente, foi essa a única forma que encontrou de não bulir com os interesses do corporativismo capitalista instalado no sector e que, de resto, não perdeu tempo a tirar vantagem da "onda bio" entretanto gerada . As sucessivas alterações que têm vindo a ser introduzidas ao Reg CEE 2092 / 91 e os esforços de homogeneização internacional entre as variantes de AB, são disso bem ilustrativas. Os produtos biológicos já admitem a fantástica possibilidade de 0.9 % de contaminação com transgénicos ! As vazias das vacas argentinas não perdem o bio depois de atravessarem de avião o Atlântico embaladas a vácuo em contentores-frio. Sobre os iogurtes e o leite magro biológicos, já conversamos. E se isto já não estivesse tão longo poderíamos ainda falar da etiqueta bio atribuída aos “frangos do campo criados ao ar livre” e abatidos aos 81 dias, que o clube de produtores SONAE comercializa. Lá iremos noutra altura.

6 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Manuel

De facto, o argumento do crescimento ou aumento da população usado pelo Federico para justificar a rv é miserável, além de ser irracional: esse aumento é exigido pelo capitalismo tardio. Quantos mais consumidores, maiores os lucros! Estou a acompanhar a sua luta! Um aspecto importante é a perda do "sabor original" dos produtos agrícolas: sabe tudo ao mesmo. :)

E. A. disse...

Viva Manuel!

Uma linda "joaninha" disse-me ao ouvido que tinha continuado a sua série sobre a AB. ;)

O que causa perplexidade e chega a ser paradoxal, é que a AB é anunciada como a alternativa superlativa à agricultura convencional, como se aquela fosse o reatar de algo perdido pela deflagração mercantilista, ou seja, a insipidez é reconhecida, mas é combatida por "soluções" parciais, na medida em que favorecem o sistema que conduziu a tal.
De qualquer modo e em continuidade com os comentários indignados do post anterior, a superioridade da AB existe, n é um mito. Os produtos têm definitivamente maior qualidade e recordam-nos o "sabor original", que diz o Francisco. Por acaso eu, como assumida comensal, entristece-me pensar nos jovens que hoje crescem na sensaboria proteica. :(

Anónimo disse...

Se bem o entendo, o Manuel advoga que uma vez que tenham sido detectados problemas no sistema convencional de produção agricola o que faz sentido é mudar o sistema no seu todo e não a criação de um sub-sistema paralelo.

Esta tese é muito pertinente pois, como diz, não faz sentido transferir para os privados o papel que cabe aos estados na defesa do interesse público.

Como profissional do Ministério da Agricultura, nunca percebi porque é que se tem vindo a susbstituir a antiga função que exerciamos em exclusividade no controlo directo dos produtos agro-alimentares pela acção de entidades certificadoras privadas,

Serão elas mais competentes, capazes, idóneas ? Quanto á competência, continua a ser o MA quem as reconhece, logo...Quanto à capacidade, o primeiro quadro de supra numerários publicado foi o do MA, o que deixa supor que há capacidade instalada sem função, portanto...Quanto à idoneidade, nunca percebi como é que ela pode ser potenciada quando a sobrevivência das entidades que certificam depende dos clientes certificados...

Mas se calhar estou a complicar:)

Rita disse...

mai nada...
o rótulo "AB" é o reconhecimento automático de tudo o que está errado na agricultura intensiva

Anónimo disse...

Caro Manuel Rocha,

Venho aqui agradecer o seu comentário ao meu último post no meu blog "Pico do Petróleo, O Livro Aberto".

Peço que me desculpe este tardio feed back, mas gostaria imenso de trocar correspondência consigo via e-mail visto que partilhamos pontos de vista sobre a actual crise energética (a.k.a. pico do petróleo).

O meu e-mail é:
peakoilemportugoil@yahoo.com.br

Saiba que estou a criar um grupo de discussão (dentro e fora da internet) sobre este tema tão importante para o século XXI.

Aguardo o seu contacto.

PS: Eu também sou um defensor da agricultura orgânica.

Cumprimentos,
Luís Rocha

alf disse...

Pois é, se bem percebo, o Manuel vai desmontando a ilusão de que vivemos num mundo sustentável, desmascarando todas as suas frentes.

A AB é uma boa medida vista no quadro estrito da produção agricola, quanto a mim. E existir em níveis é acertado - os níveis mais «baixos» tendem a generalizar-se, aumentando a qualidade global, e os mais altos mantêm a pressão sobre a qualidade, que é o melhor antídoto para os efeitos nefastos da busca do lucro máximo.

O problema é que serve a ilusão de que é uma solução para o problema do excesso de população, que é possível anular as consequencias negativas de uma produção agrícola com o volume actual. E isso pode ser dramático.

Gostei da maneira como desmontou a ideia de que a agricultura seja algo «natural». Não é, nem o futuro da vida na Terra pode ficar dependente da «Natureza», como estou a começar a mostrar no meu blogue.