segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Expresso-Biológico


O semanário Expresso lidera destacado a lista das minhas preferências neo-verdes entre os órgãos de comunicação. E como que a justificar esse destaque, fez-me o favor de publicar na página central do seu caderno de economia da semana passada, um extenso trabalho sobre a Agricultura Biológica que ilustra na perfeição o que aqui tenho vindo a escrever sobre o tema. Das várias abordagens que são desenvolvidas, gostaria de referir aquela cuja importância mereceu destaque com chamada na última página do caderno principal : “ Maior estufa biológica em Portugal “.

Indo ao texto, fica-se a saber que uma empresa do grupo RAR, está a construir em Alcochete “ a maior estufa da Europa para a produção de tomate em modo biológico” , para “vender tomate durante todo o ano para vários países europeus, em especial o Reino Unido”, sic. Ilustra o texto uma fotografia de uma estufa em montagem que, supondo-se corresponder à da noticia, deixa entender que se trata de uma estrutura metálica com cobertura em vidro, com uma área projectada de 7 hectares ( 70.000 m2 ).

Extraordinário !

Extraordinário porque revela em toda a sua magnitude a formidável mistificação que tem vindo a ser encenada em redor deste modo de produção AB que tem sido divulgado como “alternativa” à agricultura convencional, e portanto, em oposição à agricultura intensiva que não respeita os “ciclos naturais”.

Destaco dois aspectos.

Em primeiro lugar a cultura do tomate fora de época é por definição um cultivo intensivo em contra ciclo. É por estar fora da sua época natural que obriga ao uso de estufa. Ora o uso da estufa é em si mesmo um programa de produção e utilização intensiva de recursos, pois doutro modo seria impraticável assegurar o retorno do capital investido. Também por isso implica um programa sanitário cujo nível mínimo deveria obrigar a tratamento criminal quem tem o desplante de o promover como “processo natural”. De resto, o cultivo em estufa é a antítese de bandeiras da AB como a rotação de culturas, preservação dos ciclos da matéria orgânica ou conservação do solo.

Em segundo lugar, merece nota a “sustentabilidade” deste processo, outra das bandeiras da AB. O custo energético de uma estrutura metal / vidro com 70.000 m2, é um número perfeitamente obsceno, cuja amortização alimentar em salada de tomate está para a agricultura como actividade de produção de alimentos, como estaria para o cinema uma produção hard-core ao pior estilo da indústria pornográfica. A cereja sobre o bolo do desequilíbrio energético desta actividade, são os mercados de destino ( Europa e em especial Reino Unido ) e as implicações que daí decorrem em termos de transporte-frio e de manutenção de uma lógica absurda que ignora a relação geográfica entre produção e consumo.
De resto, o que aqui tenho escrito sobre a incorporação da AB no eterno oportunismo capitalista, fica bem ilustrado pela sua menção no caderno de economia do Expresso e pelo facto de suscitar o interesse de grupos empresarias que têm tido no imobiliário e turismo a sua actividade tradicional.

12 comentários:

E. A. disse...

O Manuel no seu melhor! Então essa analogia com o hard-core pornográfico deixou-me a gargalhar!
Já há tomatinhos bons no Algarve que eu provei-os no fim-de-semana, aqui na metrópole ainda n os há. :)

alf disse...

Manuel, com a minha análise energética do planeta, que irei publicando ao longo de meia duzia de posts no «outra margem», ganhei uma perspectiva destes assuntos algo diferente da sua.

Alguns comentários que eu poderei fazer aos seus posts poderão por isso parecer-lhe algo descabidos; mas vou arriscar.

Levado ao extremo rigor, «agricultura biológica» entendida como «agricultura natural» é um absurdo - a natureza não faz agricultura, tem mesmo o maior cuidado em evitar aquilo que a agricultura pretende: porções de terreno em monocultura.

Portanto, «agricultura natural», em rigor, é coisa que não existe.

Agricultura é sempre uma violação das leis da natureza.

Mas, como já postei, sem agricultura a população mundial poderia ser no máximo de 10 milhões de habitantes. Isso está fora de questão, não é verdade?

Portanto, o problema consiste em produzir alimentos de forma que originar a mínima perturbação para a natureza e com a máxima eficiência energética.

A eficiência energética, sem uma política de subsídios, mede-se muito aproximadamente pelo preço do produto, por estranho que isso possa parecer. Pelo menos para produtos que circulam entre economias abertas.

Isso quer dizer que se o tomate produzido em Portugal puder ser vendido em Inglaterra mais barato que o produzido lá, então gastou-se menos energia para produzir e transportar esse tomate do que a produzir o tomate em inglaterra.

Uma produção em estufa permite grandes ganhos de eficiencia energética. Desde logo, faz uma muito melhor utilização do clima.

Depois, evita «catástrofes climáticas», como geadas, que são perdas energéticas - foi consumida energia para produzir um produto orgânico que depois é degradada em calor sem aproveitamento.

Se a atmosfera da estufa for enriquecida em CO2 (e deve ser, pois isso já é praticado em larga escala em todos os paises avançados, incluindo cá)surgem mais vantagens: crescimento mais rápido, plantas mais robustas, mais saudáveis, mais resistentes a pragas - o que significa menor necessidade de insecticidas ou outras formas de combate a pragas.

Enriquecer a atmosfera da estufa em CO2 é do mais biológico do que há - afinal, a atmosfera da Terra foi quase sempre muito mais rica em CO2 do que nas últimas centenas de milhares de anos; o CO2 é o alimento essencial das plantas.

Se não se recorresse a estufas, a área de terreno em monocultura para a mesma produção teria de ser muito maior. Ou seja, o uso de estufas permite reduzir a extensão da agricultura em mais de50%; talvez mesmo em mais de 70%.

Agora, concordo consigo num aspecto: temos de nos entender acerca da definição de AB! A atribuição da classificação AB deve implicar que existe um esforço feito expressamente para melhorar a vida natural. E aqui não existe isso, o projecto obedece unicamente a critérios economicistas.

Uma possibilidade que me ocorre agora é a exigência de contrapartidas do tipo: por cada hectare de estufas têm de ser mantidos 2 hectares de «natureza», mesmo que parte possa ser na forma ajardinada. Na construção civil devia-se fazer o mesmo...

Os seus posts estão cada vez mais vivos e imaginativos, é um prazer lê-los e, como vê pela extensão do meu comentário, são altamente estimulantes.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mais outra crítica pertinente à noção de AB!

Abraço

Rita disse...

a título de curiosidade, e sendo os tomateiros uma planta importada do Chile, fique a saber que no nosso clima são a única planta bianual que é cultivada como anual, que dá um fruto que é comido como legume. Lá na terra de origem a coisa funciona de outra maneira...

uf! disse...

pois é, pois é, os fundamentalismos têm todos pés de barro... e entrolhos... :-)
Bio, significa vida, não?
Se mete o CO2, já é mais para a bioquímica, não?
Eu cá achava que a agricultura biológica visava a diminuição de pesticidas químicos, sendo estes substituídos por insectos (como as joaninhas), pela combinação de plantas que se protegem mutuamente, pelo uso de estrume e coisas assim...
A intervenção da Rita (boa!) fez-me lembrar um nortenho fundamentalista que criticava os algarvios por terem palmeiras e buganvílias nos jardins e plantarem mangas, maracujás, goiabas, papaias... Pobres plantas, que, segundo ele, sofriam por terem sido desviadas do seu habitat natural. Diga-se de passagem que quem sofria mais era eu, algarvia convicta, por ter de aturar este espécime que, deslocado do seu habitat (norte), era absolutamente intragável.
Mas ainda me enchi de paciência e, com curiosidade, perguntei-lhe se comia batatas, laranjas, milho.
Adivinhem a resposta...
(e não, ele não sabia que as laranjas morriam de saudade da Pérsia)
ia dizer «ai os fundamentalismos obscurecidos» mas é uma redundância; eu, pelo menos, não conheço nenhum fundamentalismo esclarecido...

Anónimo disse...

Estou há um bom bocado a tentar perceber a que fundamentalismo se refere a Tia Adoptada e ainda não cheguei lá, pelo que venho pedir ajuda:-).

Também tentei perceber as contas do Alf e não consegui:-(.

Parece que não é fácil ultrapassar a lógica que insiste em discutir a equação alimentar pelo lado dos recursos sem nunca tocar no lado da população e dos seus "luxos".

O que a meu ver este post chama a atenção é exactamente para esse absurdo de se entender como "imprescindível" a produção de tomate fresco o ano inteiro e de a credibilizar. Ora é por isso que têm de "inventar" soluções técnicas pintadas de bio.

Se bem tenho lido o que o Manuel nos tem trazido, a ideia que me ficado é que a racionalização da produção de alimentos a que as opções AB pretenderiam dar resposta, também passa pelo reforço do critério geográfico lato senso, no entendimento da dieta alimentar.

Florbela

antonio ganhão disse...

Introduz-se um pouco de tecnologia e logo aparecem os velhos do Restelo... se é natural, então é natural que tenha ciclos mais curtos e melhores resultados, ou não?

Agora essa do sector imobiliário começar a investir na agricultura é preocupante, pois estes investidores funcionam numa lógica de especulação...

Anónimo disse...

Quando o comentário anterior designa de "um pouco de tecnologia" o que é feito na agricultura em estufa,mesmo nas suas formas mais suaves, só pode estar a brincar e eu não percebi...

Também não percebi o comentário que se refere a "fundamentalismo": no quê e de quem ? Seria interessante especificar para melhorar um debate que faz todo o sentido: é pela via da intensificação ( estufas ) que se reforma a agricultura convencional para uma variante biológica ? Qual a real necessidade de produzir certos alimentos fora dos seus nichos geográficos ?


Cumprimentos

Pedro

uf! disse...

quando falei em fundamentalismos, referia-me às pessoas que acham que só o «natural» é que é bom e que a AB é natural.
mas deixem lá, estou com febre e sem capacidade de verbalizar... e o que eu penso não interessa nada. bom domingo

uf! disse...

post scriptum: eu pratico AB mas é porque não dependo dela para subsistir.

Rita disse...

oh tia espero sinceramente que por esta altura já esteja melhor da febre. não tem ulmárias biológicas na sua horta? são óptimas para isso.

uf! disse...

Obrigada, Rita. Por acaso, não tenho por cá dessas «rosaceae», as filipêndula ulmária (não que faça alergia aos salicicatos), mas tenho outras febrífugas. Só que resolvi ir pela via da alopatia :-(