sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Os Frangos Olímpicos


Comparar os frangos que crescem aqui pela quinta com os “frangos do campo biológicos” cuja comercialização tem vindo a ser incrementada, é a mesma coisa que colocarem-me a mim no Ninho do Pássaro a competir na final dos 100 metros ao lado das máquinas de correr que lá estiveram.

Até o meu fornecedor de rações sabe disso. Sempre que lá vou abastecer-me da mistura da cereais triturados que uso para complementar a dieta de amoras e gafanhotos que os meus pintos apanham por aí, o Victor nunca esconde a sua perplexidade perante a minha recusa pela “farinha” sem a qual, garante, “os pintos nunca mais crescem“. E tem razão! Sem a tal farinha, os pintos de Maio só lá pelo Natal têm uma carcaça que se veja. Até Outubro, parece que só lhes crescem os ossos, tipo os adolescentes, altos mas sem massa, e só a partir daí começam a ganhar volume. São seis meses para obter um frango acabado com uma carcaça de dois quilos, algo que o bio-do-campo faz em menos de metade do tempo. Claro que há frangos ainda mais rápidos. Os incontestáveis campeões de crescimento são os chamados frangos de aviário: em 42 dias chegam aos dois quilos! Mas esses, diz-se, “correm dopados”.

Em plena ressaca Olímpica, a questão do doping é um tema actualíssimo. E boa parte dessa actualidade deve-se às eternas controvérsias em redor do que é e do que não é passível de ser considerado doping. A controvérsia não se deve tanto a qualquer insuficiência semântica, pois entende-se claramente como dopante a substância adicionada a um metabolismo para lhe alterar a performance, mas ao reconhecimento de que existem muitas formas de o fazer. De tal modo que, a páginas tantas, o que se discute já não é a bondade da prática de “alterar” metabolismos, mas apenas a sua “legalidade”.

De facto, é pacifico que praticar desporto e correr atrás de medalhas olímpicas são coisas distintas. Da mesma forma que nenhum atleta em perfeito juízo tem a veleidade de competir pelas medalhas dos 100 metros só com treino e dieta alimentar, também não há ninguém em estado de razoável saúde mental que invista em concentrar milhares de animais em densidades que vão até 24 kg / m2 ( leia-se: no mínimo 12 frangos / m2 - versão de aviário-bio ) num programa de acabamento sem a garantia de performances mínimas.

A primeira medida para as assegurar chama-se selecção genética. Nos dias que correm, diversidade genética é conceito que faz pouco sentido dentro de um pavilhão de avicultura. Basicamente, pode-se comparar a avicultura ao que seria o atletismo se todos os velocistas das olimpíadas fossem descendentes dos jamaicanos Usein Bolt e Shelly-Ann Fraser. Mas mesmo assim não chega, pois além desse trabalho de selecção é preciso ainda um protocolo profiláctico qualquer, porque das duas uma: ou ele existe ou a empresa vai à falência ao primeiro embate duma banal coccidiose. De resto, nem se percebe a relutância em aceitar esta realidade quando é sabido que não há gaiato que seja aceite no infantário ou na escola sem o respectivo boletim de vacinas actualizado.

Como toda a gente sabe que é assim que as coisas funcionam, o que se tem feito é regulamentar a prática através da criação de listagens de produtos e procedimentos autorizados. É o que se faz na avicultura em geral e nesse aspecto a regulamentação da avicultura AB é apenas mais um regulamento, pois importa que se percebam duas coisas. A primeira é que o que não é autorizado não é necessariamente pior do que o que é permitido - pode apenas querer dizer que há produtos e práticas cujos fabricantes ou mentores ainda não conseguiram o bastante para os legalizar. A segunda é a de que ser permitido não significa que seja inócuo, mas apenas que tem efeitos que se consideram aceitáveis à luz do conhecimento disponível, que não se conhecem efeitos nocivos, ou que são produtos para os quais os respectivos promotores conseguiram melhor que outros percorrer as etapas necessárias à respectiva homologação.

Claro que a AB pretendeu transmitir a ideia de que ampliava a margem de segurança subjacente a este sistema, e merece esse crédito formal. Mas se também ela é súbdita da mesma lógica da competição ( financeira ), é natural que a indústria não se poupe a esforços no sentido de multiplicar as opções disponíveis para a tornar mais “competitiva”. E a realidade é que entre o uso de hormonas e de antibióticos, habituais na avicultura industrial “clássica”, e o uso dos premix de nova geração, tolerados na produção do “ frango do campo biológico”, a diferença está mais no modo como operam do que nos resultados que produzem, uma vez que qualquer deles altera as performances normais no mesmo sentido de uma maior produtividade.

Por outro lado, para se controlar o uso do que não é permitido ( sejam substâncias ou doses ), tem que se saber o que se procura. No entanto, mesmo em relação aos produtos que se conhecem, são centenas as variantes possíveis da sua forma de apresentação. Os nitrofuranos são disso bom exemplo. Basta que se altere o “aspecto” do princípio activo na “embalagem química” em que se apresenta, para que passe incógnito nas análises correntes, e só o acaso, a denúncia ou a mudança de métodos de análise permite eventualmente identificá-lo. É devido a situações desse género, que só há um ano pediram à Marian Jones a devolução do Ouro que arrecadou em Sidney, pois na altura estava “tudo bem”. Quer isto dizer que há dopantes cuja existência oficial se desconhece. São os produtos duma ciência marginal altamente lucrativa e que não é necessariamente pior que a oficial, porque em relação a estas coisas não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que funcionam segundo o primado do interesse público e que os lobby dedicados à preservação dos monopólios comerciais instalados não existem.

São estas derivas que fazem com que a “avicultura biológica” se posicione em relação à produção de frangos da mesma forma que os Jogos Olímpicos estão para a prática desportiva. Faz-se a apologia da tecnologia de ponta presente nessas iniciativas e invoca-se o seu eventual efeito de locomotiva. Mas por cada puto que inicia a prática desportiva a reboque do salto do Évora, quantos sapatos da Nike e fatos de treino da Adidas se vendem? Não haveria outros processos para fomentar o desporto? Talvez houvesse. Mas a forte componente de marketing subjacente a estas actividades tem o mérito de nos levar a discutir o acessório, evitando o essencial dos sistemas em que se enquadram. Isto porque prende toda a nossa atenção a manifestações cuja principal função é a de alimentar dinâmicas completamente alheias à função social que importava servir. Essa, permanece prisioneira das molduras ideológicas com que nos ensinaram a ler o Mundo. No caso da avicultura, o que importaria discutir não são as suas modalidades possíveis, mas as premissas em cuja concepção se apoia. Nomeadamente a necessidade-tabu de incluir na dieta alimentar uma capitação significativa de carne de frango e a consequente organização dessa produção de forma completamente desligada do território em que acontece.

8 comentários:

antonio ganhão disse...

A questão é só uma: queremos ou não o ouro Olímpico?

Blondewithaphd disse...

Pois eu cá não acredito que reste alguma coisa verdadeiramente bio no planeta. Nem frangos, nem atletas, nem nada. E quanto aos Olímpicos, nem que eles só tomassem Centrum e óleo de fígado de bacalhau, mesmo assim já não era o atleta só pelo atleta.
Good point!

Rita disse...

infelizmente o rótulo biológico começa a servir para descansar as consciências de uma quantidade de gente que se quer iludir a pensar que come tudo muito puro e está muito ligada às suas raízes rurais...
oh manuel, se se come frango engordado a farinha, não valia mais comer directamente a farinha? é que consta-me que o frango também sabe mais ou menos a isso....;)

Anónimo disse...

As questões aqui levantados são deveras interessantes e pertinentes, mas não creio que fizessem muito sucesso entre possíveis leitores olímpicos.
A ânsia de ir cada vez mais longe, a pressão dos patrocínios, as exigências de agendas mediáticas e até o imperativo nacional levam a que praticamente nenhum atleta de topo possa hoje ser apodado de amador.
E, segundo creio, até nos amdores há "frangos" vitaminados.
Ouso mesmo dizer mais: até no ginásio que frequento existem frangos e frangas movidos a suplementos vitamínicos.

Anónimo disse...

"Quer isto dizer que há dopantes cuja existência oficial se desconhece. São os produtos duma ciência marginal altamente lucrativa e que não é necessariamente pior que a oficial, porque em relação a estas coisas não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que funcionam segundo o primado do interesse público e que os lobby dedicados à preservação dos monopólios comerciais instalados não existem."

Eis tópico que muito gostaria ver desenvolvido. Subentende questão pertinente que já vi exposta nos seguintes termos:" a quem interessa manter a ilegalidade do charro de haxixe senão aos fabricantes do Xanax ?"

Muito boa esta série textos AB.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

Anónimo disse...

Quem tem crianças e frequenta as consultas médicas de rotina, decerto já ouviu falar de "percentis". Os pediatras referem-se a esse "indice de desenvolvimento combinado" como quem fala de "minimos olimpicos" sem os quais não se "acede" aos grupos "seleccionados". O conceito do "percentil" é a antitese da variabilidade natural, ilustra a obcessão performativa, e serve de pretexto para canalizar para o metabolismo infantil todo o género de parafernália quimica sob a forma de vacinas, de complexos "minero-vitaminicos" ou de outra coisa qualquer. Nas salas de espera das consultas de onde saiem com esses inenaráveis "avios" , é frequente que os pais dialoguem sobre os beneficios dos alimentos AB.
Quer isto dizer que numa sociedade em que é livre o direito à manipulação, ninguém ( nem mesmo o Manuel ;-)) está a salvo das acometidas de todos os que encaram a alimentação e a saúde apenas como olimpicas oportunidades de negócio. Seja vendendo "frangos do campo" ou "percentis", tudo certificado, claro.

Florbela

Anónimo disse...

Ainda bem que voltou, ja tinha saudades do brilhantismo dos seus comentários. Melhor que nunca!Abraço

alf disse...

Mais um interessante e bem conseguido post e uma interessante comparação. Acho que tal como surge, em alternativa ao «frango de aviário», um «frango de campo» (mais ou menos...), também deveriam surgir uns novos jogos mais dentro do espírito olímpico porque estes já se tornaram algo completamente alienante para atletas e espectadores...

Dentro das minhas contas sobre a sustentabilidade do planeta, porém, o frango de aviário ganha um sentido - é que um frango serve para transformar energia biológia que nós humanos não sabemos utilizar lá muito bem (lixo e certos vegetais em carne...) em carne que nós somos sabemos usar bem; esta transformação tem um rendimento e esse rendimento é tanto maior qt mais rápido for o crescimento. Porque manter o frango vivo tem um custo energético e não podemos dar-nos a esse luxo porque somos demais

Somos demais! Esse é o grande problema. Não há mecanismos de limitação da populaçao humana nem controlo adequado de natalidade.

E quem é que está a mais? Os outros? Ou nós? Para que os frangos pudessem ser «de campo» e as vacas criadas sem hormonas, teríamos de ser muito menos. É só uma questão de fazermos umas contas simples, como penso mostrar.