Quando andei na primária, competia à Escola o ensino das coisas mundanas e à Igreja a iniciação nas que supostamente nos transcendiam. Havia, pois, uma certa complementaridade de tarefas entre as duas instituições. Enquanto a Dona Bárbara tratava de nos pôr a par dos pequenos mistérios da leitura, da escrita e da aritmética, a Menina Cremilde explicava-nos na catequese o que era propriedade do “indecifrável”, afirmando com a autoridade inerente à condição de mandatária do Padre Oliveira, legal representante do divino na freguesia, que “o céu e a terra”, bem como “ todas as coisas visíveis e invisíveis” eram criação de Deus. Assim mesmo. Seria ainda Deus quem após a nossa morte se encarregaria em processo sumário de decidir o que nos reservava a vida eterna. Para isso, iria ter em conta o registo da vida terrena, e nem pensar em aldrabar o relatório, porque, ao contrário da minha mãe, Deus era dotado de duas características incontornáveis: era omnipresente e omnisciente. Não havia pois como lhe dar a volta. Por isso, a nós, pequenos candidatos a pecadores, confrontados com versões dantescas do inferno e outras ameaças de terror apocalíptico, não nos restava outro caminho senão o cumprimento de um pesadíssimo “caderno de encargos” para evitar destino tão assustador.
Convenhamos que a abordagem era bastante pragmática, pois contribuía para um reforço bastante efectivo da capacidade dos poderes instalados controlarem um grupo de comportamentos que consideravam socialmente indesejáveis, mesmo sabendo que o faziam com recurso ao simplismo mais tosco e que desse modo cultivavam o obscurantismo. É sabido que pessoas bem formadas e informadas são mais difíceis de manipular. Por isso, o controlo da informação sempre foi um instrumento de exercício do poder, e daí as dificuldades sentidas pelo Iluminismo e pelo Racionalismo em fazer passar outras leituras do mundo. Mas conseguiram-no, e ao consegui-lo passaram também a ter uma influência decisiva no exercício do poder.
O que eu não estava de todo à espera é que passados todos estes anos os homens e mulheres da ciência do nosso tempo, herdeiros das luzes e paladinos da razão, os mesmos que nos abriram janelas para outras leituras do mundo e da vida, não consigam encontrar melhor forma para ajudar o povo a destrinçar o bem do mal nesta nova ordem que ajudaram a instalar senão desenterrando os velhos espectros do inferno e do terror dos destinos apocalípticos.
Mas é o que acontece.
A Quercus, por exemplo, que não se inibe de alinhar na propensão catastrofista que se generalizou entre as organizações ditas ambientalistas, promove na RTP2 um comercial em que confronta o espectador com a sua versão do inferno: um canguru a suicidar-se numa linha de caminho de ferro, um chimpanzé a enforcar-se com uma liana ressequida em cima de uma árvore estorricada e, como não podia deixar de ser, um urso polar a atirar-se de uma falésia abaixo naquilo que se apresenta como antevisão da Gronelândia sem gelo nem focas. Tudo num cenário vermelho e negro que rivaliza sem favor com as melhores ilustrações do inferno imaginadas por Alligeri.
A formatação alternativa que a ciência construiu para nos explicar o mundo, tem na mudança uma constante. Tanto na geologia como na biologia, a ciência elaborou um conjunto relativamente coerente de teorias que nos explicam como sendo entidades em processo num contexto em processo, e usa indícios fortes para ilustrar essas teses, como a deriva dos continentes ou a evolução das espécies. Nesse sentido, a ciência representa-nos como figurantes transitórios num sketch de uma longa metragem em rodagem, sem guião, e sempre inacabada.
Por isso me soa muito estranho que quem nos ajudou a nos entendermos como processo em mudança induzida por conjugações aleatórias de factores incontroláveis, não só nos proponha agora concepções estáticas dos fenómenos que suportam a vida como ainda por cima nos ameace com o inferno se não as conseguirmos preservar. Ou seja, num dia demonstra-se que os Himalaias se formaram em fundo marítimo, e no dia seguinte pretende-se induzir comportamentos que evitem futuras alterações do nível do mar. Ora este é um dos grandes problemas das derivas conservacionista: o subtexto que se apoia na ideia peregrina de que chegamos a um destino, seja ele geológico, biológico, climático, ou de outra ordem qualquer, que considera este estádio ideal e por isso, subentende-se, pode e deve ser preservado, mesmo que tal atitude entre em completa contradição com a ordem natural de conflitualidade e mudança que marcam a história da vida e que a ciência tem sobejamente documentado.
O caso do clima é paradigmático. Embora estejam bem fundamentadas fortes evidências de importantes alternâncias na dinâmica climática passada, e a história tenha inclusive bem documentadas mudanças climáticas relativamente recentes e bastante significativas, ilustradas por evidências de avanços e recuos periódicos de gelos e níveis do mar, tal como de desertos ou florestas, ainda assim não se hesita em colocar eventuais futuras mudanças do clima no topo da agenda das preocupações ambientais.
Sabendo-se que o clima não é constante e é determinado por um conjunto muito diversificado de variáveis cujo funcionamento está longe de se encontrar bem compreendido, o bom uso da lógica deveria permitir deduzir que, mesmo admitindo a eventualidade de mudanças climáticas induzidas pelas actividades humanas, só seria possível transformar essa eventual correlação numa demonstração inequívoca de causalidade se houvesse forma de “desligar” todas as variáveis não humanas que interferem na dinâmica do clima, e isso é impossível. Mas demonstrar que, muito antes de eventualmente se reflectirem no clima, algumas dessas actividades têm impactos directos e imediatos sobre a sustentabilidade dos modelos sociais que suportam, não o é. Isto para dizer que provavelmente existem dinâmicas instaladas com potencial de sobra para pôr o nosso modo de vida de patas para o ar muitos antes de qualquer mudança climática ter a mínima possibilidade de o fazer, e não é necessária grande imaginação para encontrar exemplos. Quando se instala uma cidade e se constroem os respectivos prédios, incluindo caves, na foz duma linha de água, e por razões de estética urbanística se bloqueia ainda a drenagem natural, como acontece em Albufeira e na maioria das cidades costeiras, não é preciso nem que o mar suba de nível nem que se altere o regime pluviométrico para que a primeira chuvada generosa dê cabo da vida de quem teve a infeliz ideia de ali se instalar. Centenas de outros exemplos tão elementares e pertinentes quanto este deveriam bastar para questionar a racionalidade das nossas opções quotidianas. E embora se perceba que não é fácil definir uma estratégia educativa conducente a uma boa compreensão destas dinâmicas para desse modo construir sólidos alicerces de mudança qualitativa, isso não deve servir de desculpa para que se combata o nonsense instalado nos nossos modos de vida com argumentos e estratégias de nonsense de sinal contrário.
Mas é o que acontece quando se usa em defesa da tese do aquecimento global afirmações como a de que o actual nível de CO2 atmosférico é o mais elevado dos últimos 650.000 anos! Por duas razões. Desde logo porque só se concebe uma dimensão temporal com essa escala da centena de milhares de anos recorrendo a somatórios de abstracções sucessivas. E além disso porque aceitar como bom o conhecimento exacto da composição da atmosfera nessa época requer algo mais que uma dose extra de abstracção: é necessário um verdadeiro acto de fé. Não no sentido de fé em que a composição do ar aprisionado no gelo não se altera em centenas de milhar de anos nem durante a sua extracção, ou em que a exactidão das datações e a precisão dos instrumentos e dos métodos de medida estão para lá de qualquer reserva. Mas de fé no sentido do impacto que produz no homem comum que, na impossibilidade de ter em relação a este tipo de argumentos uma compreensão fundamentada, só lhe resta acreditar na autoridade de quem a produz. É nesta medida que encontro em muita da informação debitada em prol das alterações climáticas inequívocas semelhanças com a que a Menina Cremilde nos facultava na catequese sobre a autoria da criação. E tal como ela ameaçava os cépticos com as chamas do inferno, há agora quem ameace os “negacionistas” com cenários de apocalipse ainda mais rebuscados. Receio é que, a prazo, se arrisquem a obter o mesmo resultado: a descrença de quem venha a ousar pensar pela sua cabeça. E não é à descrença em Deus que me refiro. Mas nos homens. Mesmo nos de boa vontade que, sem cavalos de Tróia ( como é o aquecimento global ), se esforçam por introduzir alguma racionalidade nas interacções ambientais que vamos protagonizando.