segunda-feira, 29 de setembro de 2008

O Inferno da Quercus


Quando andei na primária, competia à Escola o ensino das coisas mundanas e à Igreja a iniciação nas que supostamente nos transcendiam. Havia, pois, uma certa complementaridade de tarefas entre as duas instituições. Enquanto a Dona Bárbara tratava de nos pôr a par dos pequenos mistérios da leitura, da escrita e da aritmética, a Menina Cremilde explicava-nos na catequese o que era propriedade do “indecifrável”, afirmando com a autoridade inerente à condição de mandatária do Padre Oliveira, legal representante do divino na freguesia, que “o céu e a terra”, bem como “ todas as coisas visíveis e invisíveis” eram criação de Deus. Assim mesmo. Seria ainda Deus quem após a nossa morte se encarregaria em processo sumário de decidir o que nos reservava a vida eterna. Para isso, iria ter em conta o registo da vida terrena, e nem pensar em aldrabar o relatório, porque, ao contrário da minha mãe, Deus era dotado de duas características incontornáveis: era omnipresente e omnisciente. Não havia pois como lhe dar a volta. Por isso, a nós, pequenos candidatos a pecadores, confrontados com versões dantescas do inferno e outras ameaças de terror apocalíptico, não nos restava outro caminho senão o cumprimento de um pesadíssimo “caderno de encargos” para evitar destino tão assustador.

Convenhamos que a abordagem era bastante pragmática, pois contribuía para um reforço bastante efectivo da capacidade dos poderes instalados controlarem um grupo de comportamentos que consideravam socialmente indesejáveis, mesmo sabendo que o faziam com recurso ao simplismo mais tosco e que desse modo cultivavam o obscurantismo. É sabido que pessoas bem formadas e informadas são mais difíceis de manipular. Por isso, o controlo da informação sempre foi um instrumento de exercício do poder, e daí as dificuldades sentidas pelo Iluminismo e pelo Racionalismo em fazer passar outras leituras do mundo. Mas conseguiram-no, e ao consegui-lo passaram também a ter uma influência decisiva no exercício do poder.

O que eu não estava de todo à espera é que passados todos estes anos os homens e mulheres da ciência do nosso tempo, herdeiros das luzes e paladinos da razão, os mesmos que nos abriram janelas para outras leituras do mundo e da vida, não consigam encontrar melhor forma para ajudar o povo a destrinçar o bem do mal nesta nova ordem que ajudaram a instalar senão desenterrando os velhos espectros do inferno e do terror dos destinos apocalípticos.

Mas é o que acontece.

A Quercus, por exemplo, que não se inibe de alinhar na propensão catastrofista que se generalizou entre as organizações ditas ambientalistas, promove na RTP2 um comercial em que confronta o espectador com a sua versão do inferno: um canguru a suicidar-se numa linha de caminho de ferro, um chimpanzé a enforcar-se com uma liana ressequida em cima de uma árvore estorricada e, como não podia deixar de ser, um urso polar a atirar-se de uma falésia abaixo naquilo que se apresenta como antevisão da Gronelândia sem gelo nem focas. Tudo num cenário vermelho e negro que rivaliza sem favor com as melhores ilustrações do inferno imaginadas por Alligeri.

A formatação alternativa que a ciência construiu para nos explicar o mundo, tem na mudança uma constante. Tanto na geologia como na biologia, a ciência elaborou um conjunto relativamente coerente de teorias que nos explicam como sendo entidades em processo num contexto em processo, e usa indícios fortes para ilustrar essas teses, como a deriva dos continentes ou a evolução das espécies. Nesse sentido, a ciência representa-nos como figurantes transitórios num sketch de uma longa metragem em rodagem, sem guião, e sempre inacabada.

Por isso me soa muito estranho que quem nos ajudou a nos entendermos como processo em mudança induzida por conjugações aleatórias de factores incontroláveis, não só nos proponha agora concepções estáticas dos fenómenos que suportam a vida como ainda por cima nos ameace com o inferno se não as conseguirmos preservar. Ou seja, num dia demonstra-se que os Himalaias se formaram em fundo marítimo, e no dia seguinte pretende-se induzir comportamentos que evitem futuras alterações do nível do mar. Ora este é um dos grandes problemas das derivas conservacionista: o subtexto que se apoia na ideia peregrina de que chegamos a um destino, seja ele geológico, biológico, climático, ou de outra ordem qualquer, que considera este estádio ideal e por isso, subentende-se, pode e deve ser preservado, mesmo que tal atitude entre em completa contradição com a ordem natural de conflitualidade e mudança que marcam a história da vida e que a ciência tem sobejamente documentado.

O caso do clima é paradigmático. Embora estejam bem fundamentadas fortes evidências de importantes alternâncias na dinâmica climática passada, e a história tenha inclusive bem documentadas mudanças climáticas relativamente recentes e bastante significativas, ilustradas por evidências de avanços e recuos periódicos de gelos e níveis do mar, tal como de desertos ou florestas, ainda assim não se hesita em colocar eventuais futuras mudanças do clima no topo da agenda das preocupações ambientais.

Sabendo-se que o clima não é constante e é determinado por um conjunto muito diversificado de variáveis cujo funcionamento está longe de se encontrar bem compreendido, o bom uso da lógica deveria permitir deduzir que, mesmo admitindo a eventualidade de mudanças climáticas induzidas pelas actividades humanas, só seria possível transformar essa eventual correlação numa demonstração inequívoca de causalidade se houvesse forma de “desligar” todas as variáveis não humanas que interferem na dinâmica do clima, e isso é impossível. Mas demonstrar que, muito antes de eventualmente se reflectirem no clima, algumas dessas actividades têm impactos directos e imediatos sobre a sustentabilidade dos modelos sociais que suportam, não o é. Isto para dizer que provavelmente existem dinâmicas instaladas com potencial de sobra para pôr o nosso modo de vida de patas para o ar muitos antes de qualquer mudança climática ter a mínima possibilidade de o fazer, e não é necessária grande imaginação para encontrar exemplos. Quando se instala uma cidade e se constroem os respectivos prédios, incluindo caves, na foz duma linha de água, e por razões de estética urbanística se bloqueia ainda a drenagem natural, como acontece em Albufeira e na maioria das cidades costeiras, não é preciso nem que o mar suba de nível nem que se altere o regime pluviométrico para que a primeira chuvada generosa dê cabo da vida de quem teve a infeliz ideia de ali se instalar. Centenas de outros exemplos tão elementares e pertinentes quanto este deveriam bastar para questionar a racionalidade das nossas opções quotidianas. E embora se perceba que não é fácil definir uma estratégia educativa conducente a uma boa compreensão destas dinâmicas para desse modo construir sólidos alicerces de mudança qualitativa, isso não deve servir de desculpa para que se combata o nonsense instalado nos nossos modos de vida com argumentos e estratégias de nonsense de sinal contrário.

Mas é o que acontece quando se usa em defesa da tese do aquecimento global afirmações como a de que o actual nível de CO2 atmosférico é o mais elevado dos últimos 650.000 anos! Por duas razões. Desde logo porque só se concebe uma dimensão temporal com essa escala da centena de milhares de anos recorrendo a somatórios de abstracções sucessivas. E além disso porque aceitar como bom o conhecimento exacto da composição da atmosfera nessa época requer algo mais que uma dose extra de abstracção: é necessário um verdadeiro acto de fé. Não no sentido de fé em que a composição do ar aprisionado no gelo não se altera em centenas de milhar de anos nem durante a sua extracção, ou em que a exactidão das datações e a precisão dos instrumentos e dos métodos de medida estão para lá de qualquer reserva. Mas de fé no sentido do impacto que produz no homem comum que, na impossibilidade de ter em relação a este tipo de argumentos uma compreensão fundamentada, só lhe resta acreditar na autoridade de quem a produz. É nesta medida que encontro em muita da informação debitada em prol das alterações climáticas inequívocas semelhanças com a que a Menina Cremilde nos facultava na catequese sobre a autoria da criação. E tal como ela ameaçava os cépticos com as chamas do inferno, há agora quem ameace os “negacionistas” com cenários de apocalipse ainda mais rebuscados. Receio é que, a prazo, se arrisquem a obter o mesmo resultado: a descrença de quem venha a ousar pensar pela sua cabeça. E não é à descrença em Deus que me refiro. Mas nos homens. Mesmo nos de boa vontade que, sem cavalos de Tróia ( como é o aquecimento global ), se esforçam por introduzir alguma racionalidade nas interacções ambientais que vamos protagonizando.

10 comentários:

antonio ganhão disse...

Brilhante e com a suficiente dose de maldade... é difícil libertar-mo-nos do inferno.

alf disse...

Excelente! Já me fazia falta um post seu!

Também tenho pensado muito nisto. Aqui vão alguns pensamentos:

Os métodos usados pela Igreja não têm a ver com «religião» mas com «condução dos povos»; por isso, não admirará muito que os mesmo métodos sejam usados para o mesmo fim por outros agentes.

Como muito bem diz, a Religião foi usada como instrumento útil ao poder; face à sua actual falência para essa tarefa, o Poder puxou a ciência para esse papel, transformando-a em «Ciência-Religião-do-Estado».

Gerir os povos é actuar em função do interesse colectivo; mas o interesse colectivo conflitua sempre com alguns interesses imediatos de curto prazo. Ora as pessoas dão prioridade absoluta aos seus interesses individuais. Num sistema em que as pessoas têm poder - através do voto - torna-se necessário recorrer então à «mentira conveniente»: a mentira que leva as pessoas a agirem em favor do interesse colectivo pensando que beneficiam individualmente disso.

Toda esta história do clima tem a ver com a crise energética, já cheguei a essa conclusão; trata-se apenas da «mentira conveniente» construida para permitir as políticas convenientes para enfrentar o problema.

O drama mesmo é que o problema não se vai poder resolver assim...

antonio ganhão disse...

O homem não se redime pela ciência...

Anónimo disse...

Concordo ! Há muito a fazer para melhorar a vida independentemente de se saber de ciência segura se há ou vai haver mudança climática e qual a sua origem. Tal como outros este tópico tem servido na pefeição para desviar as atenções de coisas realmente importantes embora mais comezinhas. O exemplo que dá do ordenamento do território e do planeamento urbano é bom. A regulamentação industrial do uso da embalagem poderia ser outro. E depois há imensas outras coisas do quotidiano. Gostei do desassombro. Haja bom-senso.

Anónimo disse...

Ó Manuel, mas afinal há ou não Purgatório climático?

Será que não se podia solicitar que a Senhora Dona Cremilde tentasse espreitar lá no Livro da Criação para ver o que os capítulos futuros nos reservam?

Eu cá não sei e tenho cá as minhas dúvidas, mas lá que o mês de Agosto me brindou com um tempo estapafúrdio em vez de um solzinho catita, lá isso brindou!

Agora se é do aquecimento global, do CO ou da D. Cremilde é que já não sei.

Beko the Great disse...

Está aqui um texto muito bem escrito, no entanto, devo discordar de algumas das suas premissas. A ciência e em particular a climatologia, afirma que constante é só uma mudança. Sim, já houve uma crise planetária que levou a uma extinção de 90% das espécies, sim, já houve vida com mais CO2 que o que há agora na atmosfera. No entanto, há uma diferença, agora os culpados somos nós, e, quando a terra desiquilibra equilibra logo a seguir (digamos uns milhões de anos de sempre). Agora, se continuarmos a emitir CO2 como estamos a emitir, a coisa vai tornar-se insustentável e o processo tornar-se-á irreversível. Não são só os "loucos" da Quercus que o afirmam, toda a pessoa minimamente instruida tem consciência disso. Negá-lo é pura teimosia.

Recomendo-lhe a leitura do livro o sétimo selo de JR Santos.


ANTITUDO

Anónimo disse...

Acho que o autor do texto teria dificuldade em encontrar melhor exemplo para ilustrar o seu ponto do que aquele que é deixado pelo comentário do "Tiago".

De facto, quando o senso comum toma uma obra de ficção de uma super-star dos media como referência para esclarecimento do fundamento de teses que deveriam ser cientificas, não é preciso mais nada para explicar o que são " argumentos de autoridade" ou "actos de fé".

Anónimo disse...

Olha , olha ... pensei que aqui se podiam trocar opiniões mas começo a ver que alguns querem apostar no dogmatismo!

Anónimo disse...

Eheheh!

Então, Manuel, falta-lhe o "minimo de instrução" para se debruçar sobre estas questões e ainda assim atreve-se ??? Indesculpavel, realmente !

O comentário do Tiago acaba por ser pertinente porque nos poderia levar à discussão sempre adiada entre o que é a instrução e a educação. Na realidade a pressão "instrutiva" que tem sido levada a cabo nos ultimos anos em defesa da tese do aquecimento global tem sido tão eficaz que não basta a educação convencional baseada na aceitação acritica de argumentos de autoridade para lhe resistir.

Estaremos pois bem instruidos, não sei é se estaremos suficientemente educados para ser capazes de distinguir em que ponto exacto é que a intrução se transforma em manipulação.E a polémica sempre presente nestes posts confronta-nos sistematicamente com essa questão.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Manuel Rocha

Gostava que respondesse à questão que colocou ao F. Dias: o trabalho conceptual é muito complexo e começo a ficar convicto de que não conseguimos encontrar um ponto de fuga, sem perder muita mas muita coisa pelo caminho. Somos mortais e nada nos devia amedrontar!