quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Os cães e as trelas

Eu não sei, Joshua, por que sofrem ao certo o Marques ou o Pinto quando lêem os jornais. Mas posso dizer-te por que sofro eu. O caso é que cresci entre pessoas que me fizeram olhar para o jornalismo como um pilar da res-pública, a um tempo meio de informação e de formação, cultor da pluralidade, do sentido critico, do espírito cívico que são essenciais à vivência e ao progresso em contexto democrático. Mas o jornalismo como nobre arte de cultivar cidadania, deu lugar a um exercício de mercantilismo sem alma, pátria, ética ou honra, e não consegues demonstrar-me, Joshua, que exista alternativa para esse espaço porque não há.

Grupos de pessoas podem efectivamente exercer o seu direito à recusa. Mas se não compram os jornais, nem vêm a tv, também não é na blogosfera que vão encontrar a alternativa para se posicionarem no Mundo se não estiverem munidas dos necessários filtros e descodificadores que, como sabes, não são fornecidos como equipamento de série, sendo precisamente essa uma das mais –valias esperadas do bom jornalismo: ajudar a entender o que não é imediato.

Na realidade, Joshua, os bloguistas não são amadores da informação, mas da opinião, e como tal limitam-se a replicar, quais ecos, as opiniões mediadas pelos profissionais da pinocada opinativa que tomaram de assalto o espaço que devia pertencer à informação.. Sem uma agenda autónoma e muitas vezes sem capacidade de construí-la sob um formato de divulgação que lhe potencie o acesso, não é raro que os blogues se publiquem num registo de narciso para outros narcisos, círculos concêntricos de afinidades ocasionais orbitados por alguns metabolismos reduzidos que têm por hábito fazer prova de vida neuronal papagueando no intervalo para o café o “pensamento do dia” produzido na véspera pela cabeça alheia de referência.. Por isso também não é raro que a blogosfera me faça sofrer como um cão quando a atravesso com a sensação de transitar em território de uivos marginais reservado a cães-sofredores, mas nem todos cães vadios e menos ainda vadios por opção.

É que, repara Joshua, nem todos os cães sofrem pela relação que têm, tiveram, ou sonham vir a ter com os donos. Há alguns, embora poucos, que sofrem apenas por verem tantos cães felizes por usar trela ou infelizes pela falta dela. Esses são os mastins, verdadeiros marginais do mundo canino, autênticos malteses, cães sem dono, e já rareiam porque não reconhecem alfas nem se adaptam ao oportunismo funcional das alcateias. Têm o hábito instintivo de defender rebanhos, é verdade, mas isso não quer dizer que convivam pacificamente com o espírito ovino nem com a obsessão controladora dos border-coolies regimentais que ao assobio dos média conduzem e mantêm o gado dentro dos cercados ideológicos que os grandes predadores concebem.

Ora não há mastim que se preze a quem não se erice o pélo quando entra nos redis escolares e se apercebe da forma como as trelas do aquecimento global, das energias alternativas, das agriculturas biológicas, do crescimento económico, da demografia, ou de qualquer outra magnifica mistificação mediática do nosso tempo, são colocadas em redor dos pescoços das criancinhas por diligentes professores que as bebem acriticamente da incompetência informativa e da má-fé catastrofista da National Geografic ou de outro empório mediático qualquer. Não há mastim que se digne que não sofra quando princípios que deviam ser sagrados, como a presunção da inocência até trânsito em julgado, são arrasados pela mesquinhez saloia dos opinadores descendentes dos públicos das fogueiras inquisitoriais com argumentos de lógica peregrina: “ se não foi julgado não se pode dizer que seja inocente” ! Formidável ! Tão criativo que na manhã seguinte até o meu barbeiro se questionava se não deveria ele próprio requerer um julgamento preventivo ! É que se o vizinho, com quem tem uma antiga desavença de partilhas, resolve um dia e por vingança pagar quinhentos euros ao prostituto da terra para jurar em tribunal que ele, barbeiro, lhe teria ido ao cu dias antes de atingir a maioridade, seria de toda a utilidade obter por antecipação uma sentença de inocência de pedofilia, não ??

Portanto Joshua, o que me faz sofrer que nem cão, é esta forma de se estar sob a permanente ditadura duma realidade construída por medida para servir de suporte publicitário. À semana das vacas loucas, segue-se a da gripe das aves, fica-se a saber essa "coisa" incontornável de que a gaivota encontrada morta na Praia de Leça afinal não estava contaminada (?!), e passa-se à semana da insegurança, ao trimestre da Maddie, às colagens de evidente má-fé que do nada originaram uma crise olímpica, quando não acontece nada afinal era o silêncio da líder da oposição que acontecia entre a expectativa de uma tempestade do século que nunca foi, e um nevão no Quénia motivado pelo mesmo aquecimento global que há seis meses era responsabilizado pela falta de neve no Quénia. Uma realidade construída que obedece a uma agenda que é alheia a critérios de rigor informativo, objectividade ou isenção, num clima circense que é imagem de marca deste momento civilizacional.

Tenho para mim, Joshua, que direitos e deveres são as duas faces da moeda da cidadania. Por isso são igualmente válidos para o professor e o policia, como para o médico ou o jornalista. Esses exercícios profissionais numa sociedade livre requerem formação especifica e uma cultura ética e mecanismos deontológicos de auto-regulação, pois as funções de grande abrangência têm uma responsabilidade social acrescida cuja ignorância não pode ser invocada após a opção por elas ter sido livremente assumida. Claro que se estiver doente eu posso preferir o médico A ao B. Posso até mudar o meu filho de escola porque não simpatizo com a professora. O que não posso é aceitar que haja médicos ou professores, policias ou jornalistas, que exercem sem qualidade, com incompetência ou má-fé, perante a passividade das respectivas entidades de controlo e antes de todas as da própria classe. Quando isso acontece perante a passividade geral e a coberto de lógicas corporativistas que fazem passar a ideia de que a qualidade do desempenho depende do conteúdo da gamela diária da ração, claro que sofro ! Que nem um cão. Mas, lá está, nem todos sofremos pelos mesmos motivos.

11 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Concordo absolutamente com o teor do seu argumento: o jornlismo é basura total e os seus protagonistas são seres de inteligência muito reduzida, que já não se apercebem da sua decadência e da porcaria que produzem, em conspiração com os "fazedores de opinião", igualmente reduzidos. A esfera pública foi refeudalizada, só que desta vez por gente corrupta e muitíssimo medíocre. É a regressão cognitiva em acção! O pior é que o chamado público feito deste modo é terrivelmente ignorante e acrítica. Sim, trata-se de um efeito da sociedade metabolicamente reduzida. As pessoas carecem de Experiência!

Fico contente por estar a dar luta às moléculas de colesterol mau!

Abraço

antonio ganhão disse...

Auuu! O meu latido de aprovação de cão infeliz por não ter uma trela dourada...

Adorei! Embora considere perturbadora a afirmação da necessidade de me posicionar no mundo... não será exactamente aí que reside o mal? Quando me assumo como um protagonista de pleno direito na discussão sobre o aquecimento global, exercendo a minha cidadania? Não é nesse momento que começo a papaguear os lugares comuns que vou lendo, por manifesta incapacidade em dominar um assunto tão complexo e técnico?

Quando sapateiro, me ponho a tocar rabecão?

Anónimo disse...

O Fabrico do Consentimento
http://video.google.com/videoplay?docid=-5631882395226827730
http://en.wikipedia.org/wiki/Manufacturing_Consent:_Noam_Chomsky_and_the_Media

Outro aviso à navegação http://www.michaelcrichton.com/speech-alienscauseglobalwarming.html

Fräulein Else disse...

Bom dia Manuel!

Adorei o seu texto e prometo voltar com mais tempo! É isso: se não queremos ser atrelados, tornamo-nos cães vadios. O que me faz pensar que a única expressão de verdadeira liberdade, hoje, seja o mutismo. :(

Denise disse...

Viva, meu vizinho!
Sempre que aqui regresso reencontro o motivo por que tanto me apraz ancorar de quando em quando no seu bolinas. Gosto, porque consigo encontrar configurada retorica e demoradamente inquietações que me assolam quotidianamente e das quais não encontro ecos numa sociedade tão... metabolicamente reduzida.
Inquieta-me sobremaneira a noção de liberdade com que envaidecidamente nos pavoneamos, quando liberdade é indissociável de conhecimento...

Mas bolinar é navegar contra o vento. E é mesmo isso que aqui importa, não é?

joshua disse...

Manuel, não tenho qualquer problema com a presunção de inocência e por isso arrisco pensar e escrever sobre o que supostamente resulta do que supostamente foi dito e escrito supostamente num sentido ou noutro sentido com ou sem trânsito em julgado, a favor de quaisquer das partes do assunto que inseres neste teu texto revisto e aumentado.

Se um juíz constrói uma acusação e é afastado, e chega outro juíz que a desvaloriza, a invalida e a destrói, nada me conserva tranquilo quanto à objectividade que assiste a um e não assiste a outro, se me é dito que devo confiar em ambos.

Talvez um terceiro ou um colégio deles, pronunciando-se sobre a mesma matéria, me deixasse tranquilo de que a Justiça estava a ser servida de todo. Se consegues dormir tranquilo com a vacuidade dos conceitos ' trânsito em julgado' e 'engarrafamento em escrito', afinal nunca traduzidos na prática e muito menos caso os teus recursos não alcancem pagar a um advogado com tretas bem urdidas como as tuas e as minhas, eu não consigo.

Suponhamos que um estigma foi cavado sobre um homem inocente de ser pedófilo, mas bastante apreciador de acepipes anais e nisto incluo o teu como o meu cu, mas que porque os tem de pagar, aos acepipes, coisa para que nem eu e julgo que nem tu estamos disponível, quanto mais de graça, se vê arrastado pela gula à armadilha do aproveitamento ocasional de um prostituto porque a classificação é tudo e o prostituto é menos que tu, que ele, que eu porque é prostituto. Pode ele ter requerido e pago o favor de esse prostituto sem problemas de maior para ambas as partes (um paga, o outro recebe o dinheiro, um tem 16 ou um pouco mais ou um pouco menos) salvo a ulterior alteração de posicionamento de uma das partes quanto ao conceito de venda do seu orifício ou de apropriação indevida dele pela outra parte. Os anos passam e quem tinha quinze, de repente tem vinte. Nada disto parece relevante em comparação com o trânsito em julgado, sendo que o trânsito em julgado de uns é diverso e desnivelado em relação a outros.

Torna-se relevante a partir do momento em que nenhuma clarificação resulta que dite uma prisão preventiva, só uma prisão preventiva indevida, que afinal foi um erro irreparável e grosseiro, reparável só perante um veredícto favorável contra o Estado em processo cível.

Mas a questão é mais profunda. Se a palavra escrita e a livre opinião, errónea que seja, nos julgasse ou absolvesse e fosse o chicote com que se castigam os cães, ninguém escapava, nem os que vociferam ética, princípios e outras palavras serrilhadas, adequadas só para cortarem às postas os outros, quantas vezes infra-outros em face da nossa consolidada mais-valia argumentária

Tenho um problema com a validade da Justiça em Portugal: vejo um estado de sinais, intuitivamente captáveis, como o arrastamento sorna de processos, como o da Casa Pia e outros que provam que a inoperância está ao serviço de alguém contra os demais. Sinais que não auguram nada de bom em matéria de credibilidade e não contaminação do Poder Judiciário pelo Poder Político.

A promiscuidade entre diversos poderes, sendo já o que é e o que tende a ser, legitima que eu e muitos como eu não acreditem, como o homem do Falo e do Cu de repente acredita, na Justiça em Portugal.

Se me conseguires provar que devo acreditar e confiar, se tiveres mecanismos que me façam acreditar serenamente que a justiça é feita a tempo e horas, independentemente do recheio das carteiras e do estatuto na sociedade, deixarei também eu de te fazer sofrer como a um cão, embora tudo me leve a presumir benignamente que o recheio da tua carteira é incomparavelmente mais justo e habilitado à justiça que o meu.

PALAVROSSAVRVS REX

Blondewithaphd disse...

Que dizer? Manuel no seu melhor estilo e na sua mais mordaz crítica! E a afirmação de que a blogosfera não é o redil da informação mas da opinião é algo que partilho na integridade.

Anónimo disse...

Manuel, meu caro, quanta honra que a partir de um mísero escrito meu tenha nascido tão salutar troca de opiniões entre dois ínsignes comentadores/analistas da blogosfera.

O amigo mais racional, menos dado às concessões dos dogmas hodiernos, mais moderado na linguagem; o Joshua, aquele ser implosivo, que ora se revela um plácido ribeiro como uma gélida tormenta Antártica plena de ventos ululantes e que lhe fazem fluir pelas teclas e pelo cérebro pensamentos mil, díspares, às vezes a disparar em todos os sentidos como se um pistoleiro envolvido no celebérrimo duelo do "OK Corral" fosse!

Ao que me foi dado saber, ao Gabriel Garcia Marquez ficava-lhe o espírito agoniado pela escrita feita com os pés, com os tratos de polé que a língua sofre; com os atropelos às mais elementares regras do jornalismo e à incapacidade de os actores principais desse produto final chamado jornal em se fazerem ouvir, respeitar e exigir que lhes seja dado tempo para que aquilo que escrevem se chame jornalismo e não cloaca.

A mim, mísero escriba que em tempos labutei num título que quando me franqueou as portas vivia do esplendor e fausto doutros tempos, e que hoje opino sem querer ser um "talking head" capaz de levar a RTP a Moçambique para debitar meia dúzia de banalidades e duas ou três notas de rodapé só ao alcance de quem tem agenda de contactos recheada e generosa, deixa-me perplexo a voracidade com que muitos se entregam à leitura de notícias onde se anuncia que "REGOU O MARIDO COM GASOLINA e ENTREGOU-SE AO AMANTE" ou "MULHER FULMINADA COM DOIS TIROS POR MARIDO ENSOPADO EM VINHO" e reduzem a sua existência à discussão destes palavras feitas sangue ...

Ou de como a Nação se move arrastada pela sucessão de crimes contra a propriedade, mas se mostra incapaz de se levantar em uníssono contra a desgraçada infâmia da pedofilia!

A mim dói-me que existam promiscuidades alimentadas a sestércios generosos entre políticos e jornalistas, por exemplo, embora a minha generosidade me permita antever que a mesma é generalizada a todos e não apenas a este ou aquele.

Ou dos raciocínios sibilantes como aquele em que o Joshua se deixa amargurar a propósito de um Paulo Pedroso ... só que aquilo é opinião e não notícia, embora muitos persistam em tomar a nuvem por Juno e até creiam que se deu na TVI ou na SIC, ou veio no "Correio da Manhã" então é verdade!

alf disse...

Fabuloso! Este post é digno de figurar ao lado dos melhores textos de um Eça. Magníficamente construído e escrito.

Feito a exacta descrição da sintomatologia, faltará agora identificar a origem da doença e as perspectivas de evolução futura.

Esta situação existe tal como o Manuel a descreve porque esse (penso eu) é o nível da maioria das pessoas. Quando o nível é muito baixo, a informação tem de ser controlada pelas «elites»; quando o nível médio é alto, a informação deve ser deixada livre, com um controlo mais distante.

No nosso caso, estamos a meio caminho - a informação já não depende da vontade de «elites» (e onde estão elas em Portugal...?) e a maioria das pessoas tem um nível demasiado baixo - a maioria dos licenciados tem um nível demasiado baixo.

Para as coisas melhorarem, é preciso subir o nível; isso depende criticamente de um sistema de ensino que force as pessoas a pensarem. Ora assusta-me verificar que o ensino cá faz exactamente o oposto!!! O que se percebe- é que o nível de imensos professores tb é assustadoramente baixo!

Há tempos estive na Dinamarca. A «informação» quase não existe - suponho que quase não há «notícias» - não há acidentes de carro, desabamentos de prédios, fogos florestais, crimes passionais, assaltos violentos, etc E, sobretudo, não haverá pessoas que considerem que isso seja «espectáculo», que se comprazem na leitura dos «desastres». Nível cultural mais alto? Uma questão genética? Educação? É o «sistema» o responsável pela diferença ou são as pessoas?

Anónimo disse...

Grande comentário, concordo na integra com o conteúdo, brilhante como sempre diga-se de passagem. É dificil arranjar palavras quando já foi tudo dito, porem nunca se devem regatear os bons e enriquecedores momentos que todos passamos neste espaço. Obrigado, abraço

Anónimo disse...

Ansiamos pelas próximas incursões ...