quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Recursos e População


Quando usada em ecologia, a ideia de retroacção pretende caracterizar a capacidade que a vida aparenta de aprender com a sua própria experiência a gerir os condicionalismos que são inerentes à sua dependência dos recursos disponíveis. Não se trata de uma aprendizagem linear, mas antes de sequências de ciclos de sinal contrário alternados por factores de regulação próprios.

Pode-se explicar melhor a retroacção ecológica ligando-a à dinâmica de uma população e ao comportamento dos recursos de que necessita. De uma forma geral podemos dizer que o crescimento de uma população está sempre associado a uma maior disponibilidade de recursos. A introdução no sistema de um novo recurso que permita aumentar essa disponibilidade, e que tanto pode ser um novo território como o domínio de uma nova técnica, é um factor de retroacção positiva porque promove o crescimento da população. A morte de indivíduos decorrente do desajuste que entretanto possa advir do crescimento da população assim desencadeado, e a capacidade de crescimento não proporcional dos recursos, é exemplo de um factor de retroacção negativa.

Historicamente, as sociedades humanas parece terem sido capazes de apreender os princípios deste funcionamento, pois reduziram a contingência que lhe é inerente. Fizeram-no identificando empiricamente uma fonte de energia inesgotável ( solar) e um processo natural para o seu aproveitamento ( fotossíntese ) através de uma técnica ( agricultura ) que permitiu criar reservas. Embora mantendo o principio, fizeram-no sob o signo de uma enorme diversidade de soluções. Não por capricho, suponho, mas em resultado de diferentes percepções da variedade de condicionalismos geográficos com que se depararam em cada território concreto. De tal modo que em bom rigor pode afirmar-se que a diversidade dessas abordagens aos constrangimentos locais foi ela própria a chave do sucesso da colonização humana, uma vez que em cada momento o êxito de uns permitiu compensar o insucesso de outros. Pelo contrário, a ultrapassagem das bandas de tolerância desses condicionalismos parece ter tido papel de relevo no fim de ciclos civilizacionais de prosperidade que tendencialmente parecem ter sido tão mais catastróficos quanto mais se edificaram sobre dinâmicas de especialização em ciclos persistentes de retroacção positiva. Civilizações como as Mesopotâmicas, Egípcias, Maias, ou outras, bem que podiam ser relidas nesta chave.
Mas usemos um exemplo relativamente recente e razoavelmente estudado para ilustrar este ponto: a relação da Irlanda com a batata.

Introduzido em meados do século XVI, o cultivo da batata deu origem a um ciclo de prosperidade na Irlanda. Por unidade de energia incorporada no processo produtivo, o cultivo da batata respondia com colheitas proporcionalmente mais energéticas que as tradicionais e dessa forma gerou excedentes que permitiram suportar um crescimento significativo da população, dinâmica que se manteve sem sobressaltos de maior até meados do século XIX . A batata ( novo recurso ) é neste caso bom exemplo de um factor de retroacção positivo. Mas é também exemplo do efeito nefasto da especialização. A deriva para a monocultura e a sua intensificação conduziram ao esgotamento do fundo de fertilidade, ao consequente aumento da susceptibilidade da batata a doenças e pragas, ao declínio abrupto da produção e à fome de quem delas se alimentava ou dependia face à inexistência de alternativas económicas. A consequente morte ou migração de milhares é exemplo de um factor de retroacção negativa que desencadeou o reequilíbrio da relação entra a população e os recursos.

Hoje dir-se-ia que a ciência e a técnica encontraram soluções para lidar e evitar este tipo de contingência. E aparentemente assim é, porque com fertilizantes de síntese e pesticidas teria sido possível manter a monocultura da batata pelo menos por mais algum tempo. Mas se digo aparentemente é porque existe uma óbvia propensão para confundirmos variáveis de fluxo com variáveis de estado e para esquecer que umas e outras não se comportam do mesmo modo.

De facto embora o stock de batata e a população dum território num momento dado sejam ambas variáveis de estado (ou de nível ), as variáveis de fluxo que as caracterizam não são do mesmo género. Ou seja, a produção de batata e o seu consumo ( duas variáveis de fluxo porque ocorrem ( fluem ) entre dois momentos no tempo ) dependem de fenómenos diferentes. Enquanto a produção ( enchimento do reservatório de stock ) não tem um crescimento constante e directamente proporcional ao investimento em factores que nela possa ser feito ( trabalho, fertilizantes, pesticidas ), o consumo ( esvaziamento do reservatório ) é constante e directamente proporcional à população, cujo crescimento tendencial é do tipo geométrico.

Claro que o tempo ecológico não é repetitivo como o da mecânica: é histórico, e por isso produz simultaneamente continuidade e novidade. Mas o bom governo que pretenda minorar os impactos sobre as comunidade humanas dos ressaltos de auto-regulação que naturalmente integram os ciclos de retroacção que comandam a vida, haveria pelo menos de retirar duas ilacções dos conhecimentos que nos tem cedido a compreensão da ecologia . A primeira é que, ao contrário da especialização, que tem sido muito promovida pela modernidade mas que potencia a dependência, a diversidade constitui por si mesma um capital de reserva porque reduz a amplitude das oscilações entre ciclos de retroacção. Ora, nos dias que correm, a energia está para o Ocidente como a batata esteve para os Irlandeses. A segunda ilacção é que, no limite, o equilíbrio possível das interacções entre população e recursos não se resolve apenas pelo lado dos recursos. No entanto, até hoje, só Mao retirou daí consequências politicas.

19 comentários:

Blondewithaphd disse...

Estamos a falar, no fundo, de pressupostos darwinianos de sobrevivência do mais forte, não é? Desconhecia o que é a retroação, mas parece-me que é isso a capacidade de adaptação e sobrevivência dos aptos.

Anónimo disse...

Essa ideia de comparar o petróleo com a batata irlandesa é francamente boa. Só que, ao contrário do que aconteceu no tempo da fome da batata, se vem aí uma fome do petróleo, já não há nem américas nem austrálias semi-despovoadas para onde o pessoal possa escapar. Essa é que é !

Anónimo disse...

Vamos a ver se li bem:
1-Civilizacionalmente temos vivido fazendo pressão sobre ciclos de retroacção do tipo positivo.
2-Novas técnicas e uma fonte de energia providencial ( as tais variáveis de fluxo )permitiram encher os reservatórios de saúde e comida ( as tais variáveis de estado ) e a população tem crescido o que se sabe.
3-A especialização em soluções dependentes do petróleo-providência não resolveu e potencia a contingência que se deveria controlar.
4-Havendo limites ao crecimento dos recursos, não fazem sentido projectos de bem-estar que assumem como irrelevante a variável demográfica.

Gostei !

antonio ganhão disse...

Enquanto lia este artigo não pude deixar de pensar na crise que nos assolou, cujo crescimento económico se baseou na explosão do imobiliário. É a teoria da batata aplicada aos nossos dias... bem me parecia que havia uma explicação bem simples!

Manuel Rocha disse...

Blonde:

...sobrevivência do mais forte, do mais apto ou apenas do mais sortudo ? Bem, é capaz de haver um pouco de tudo. Certo é que qq deles passa por altos e baixos que os humanos querem "nivelar". Só que querem nivelar por cima ( pelo lado dos recursos )e fazem-no a cédito ( petróleo ).

Lino:

Técnicas e fonte ( natureza da )são factores de regulação. Vari
avel de fluxo pode ser a qt de energia de um fonte dada incorporada num processo num intervalo de tempo. Mas os combustiveis fósseis em si são vaiáveis de estado. Essa a confusão que pretendi esclarecer. Embora "fluam" pelos processos de produção, o reservatório de onde estão a sair não volta a encher.

Jorge e António,

A batata é um tubérculo de elevado potencial....;))

Anónimo disse...

Certo!
Obrigado pela correcção. Tinha percebido, mas comentar entre telefonemas ...

alf disse...

"o equilíbrio possível das interacções entre população e recursos não se resolve apenas pelo lado dos recursos" O grande mistério para mim é a ausência de políticas de adequação da população aos recursos.

a população mundial aumenta 70 a 80milhões de pessoas por ano; e aumenta sobretudo onde já não há recursos para a população existente - ou seja, são acrescentados todos os anos uns 70 milhões à lista de esfomeados e refigiados. ONG para apoiar os esfomeados nesses sítios são às centenas; recursos e serviços da ONU para apoiar esses esfomeados e refugiados são imensos; mas que recursos para diminuir o crescimento populacional nessas zonas?

Parece que há interesse em manter a situação. Não me admirava: há uma enorme «indústria» que vive de apoiar os desgraçadinhos... e outra que vive de lhes fornecer armas para se matarem uns aos outros na luta pela sobrevivência...

Anónimo disse...

Muito bem, Manuel !

O Alf permita-me duas notas sobre o seu comentário.

A primeira em relação ao "aumento da população onde já não há recursos". Supondo que se refere a Africa, por exemplo, não há recursos ou são "exportados" em lugar de serem investidos no desenvolvimento local ? Há dias ouvia um cavalheiro comentar sobre agro combustiveis afirmando que é umn sector "com grande potencial em Africa, onde há imensos terrenos disponíveis"...

A segunda nota é derivada desta, ou seja, onde aparentemente existem recursos disponiveis, como na Europa, esses recursos existem de facto ou são os tais importados ? Seria a Europa capaz de alimentar capazmente a sua população actual apenas com os recursos que existem dentro das suas fronteiras geográficas ? E se não é, não estaremos nós a encher a barriga á custa de recursos de outros ?

Anónimo disse...

Manuel, quando advoga que Mao foi o único que retirou as devidas ilações, reporta-se concretamente a quê?

Ao controlo de natalidade ou ao genocídio que mandou cometer?
É que ambas as soluções aparentemente têm o mesmo fim, mas são diametralmente opostas!

Em jeito perfeitamente lateral, o meu amigo vai-se meter no covil do REX a quebrar os unanimismos que por ora vão vigorando na Educação?
Mas que ousado, digo eu, embora haja quem possa pensar que é insensato.

Manuel Rocha disse...

Alf:

Pertinenetes as questões da Mariana...;)


Quint:

Sobre o Mao é ao controlo da natalidade que me refiro, limitando-me a constactar o facto.

Quanto ao REX, gosto de lhe fazer "cócegas", pois "picado" aquela prosa felina ultrapassa-se a si mesma ...;)

Quanto à educação, ou ao mais que fosse, tenho pouca propensão para o unanimismo. Quanto ao resto ou me explicam direitinho e eu entendo, ou nada feito. De resto, confesso que o "consenso" como argumento me incomoda. Uma coisa é ( seria )uma maioria democratica ter o direito a exercer o seu consenso. Outra coisa assumir que por ser maioritária ( é ? ) é dona da razão e como tal está dispensada de argumentos. Aí, tenham paciência !!

;)

Manuel Rocha disse...

Quint:

Detalhe importante sobre as politicas do Mao: eu não as "advoguei". Referi que em termos de grandes politicas públicas são as unicas que conheço que tentaram aliviar a pressão da população sobre os recursos tb pelo lado da demografia. Sobre a forma como foram implementadas, tenho muitas reservas. Reservas que por outras razões tb tenho em relação às recentes medidas da europa para fomentar a natalidade.

Anónimo disse...

Estivemos a ler "Alternativas Caprichosas" e ficámos sem alternativa.
1ª: só vale a pena poupar eleactricidade por uma questão de orçamento doméstico, já que mesmo não gastando ela vai para o mar (ou para a terra?)
2ª: sabes se há investigações no sentido de levar o sistema "aberto" do fluxo da electricidade a ficar circular por forma a não se perder a energia?
Duas anónimas com duas dúvidas.

Manuel Rocha disse...

Olá anónimas "duvidosas"

:)

1ª - Não será bem assim. A produção ( geração ) de energia adapta-se tanto qt consegue ao consumo e aos seus ritmos tipicos. Se ao fds as unidades industriais estiverem off, o consumo aprox equivalente não é gerado. Mas a regra para esta adaptação é necessariamente a aproximação por excesso, uma vez que se fosse por defeito a rede poderia ir abaixo ( e às vezes vai por isso mesmo...raro, mas acontece). Por muito aperfeiçoada que seja, essa aproximação corresponde sempre a um "excedente" de produção da ordem dos 10 %. Escusado será dizer que esta percentagem agregada é uma monstruosidade.

2ª- Não tenho informação sobre isso. O sistema mais prox do circular é ter o "gerador" em casa e só o meter em funcionamento qd se necessita de energia. Na grande escala não perder essa sobre-geração implicaria armazenagem. Não é fácil.

;)

alf disse...

Mariana, aqui vai a minha resposta às suas questões... é um pouco comprida mas as questões que levanta são complicadas.

é um facto que a população aumenta onde não há recursos. Em África, Ásia, ou mesmo no Taiti.

Em consequência, as mães vendem os filhos para escravos e toda uma cadeia de miséria se constroi sobre esse excesso de fertilidade. E é uma situação sem saída, porque o excesso de população não deixa recursos livres para aumentar o desenvolvimento dessas sociedades.

Foi esse o grande mérito do Mao: a sua política de restrição de natalidade permitiu libertar recursos para a China poder aumentar o seu grau de civilização.

Lá no meu blogue já escrevi algumas coisas sobre a relação entre «energia» e «Inteligência». Digamos que a sobrepopulação absorve a energia disponível e condena os povos à estagnação por falta de «Inteligência».

Os recursos têm de ser gerados localmente; mesmo que existissem excedentes agrícolas no sul de Africa, isso não resolveria o problema dos esfomeados da Somália.

O primeiro (único?) passo para acabar com a fome e a miséria humana nesses locais seria limitar a natalidade. Em vez disso, continua-se a promover uma cultura onde um cada casal espera ter pelo menos meia dúzia de filhos.

A Europa é bem capaz de produzir todo o alimento de que precisa. E muito mais, na verdade. Tem de haver cotas à produção para evitar que os preços caiam mais. Portugal é um bom exemplo - tem grande parte dos seus terrenos com aptidão agrícola abandonados porque não compensa cultivá-os.

A miséria em muitas partes do mundo não é culpa da Europa; é antes culpa da sobrepopulação. Isso é sabido há muito, é por isso que o sexo é perseguido pela Bíblia - na altura não havia contraceptivos, portanto o agente do «mal», ou seja, do excesso de população, era o sexo. Mas hoje há contraceptivos.

(já agora, isto não é publicidade rsrsrs...mas também tenho um post sobre o significado da parábola da expulsão do paraíso)

Anónimo disse...

Desculpe Alf, mas não me convenceu :-)

Se a agricultura europeia fosse feita apenas com os recursos energéticos internos acha que teria idêntica produtividade ?

Nos finais do sec xix as migrações em massa para as américas deveram-se ao quê ? Vontade de viajar ou esgotamenteo de recursos ? Consegue garantir que nos finais deste seculo não se repetirá um cenário desse tipo se não for encontrada alternativa energética ao petróleo?

E quanto a Africa: se o gás natural da Libia ou o petroleo de Angola ou do Quénia fossem usados para gerar recursos internos em lugar de rumarem a norte para gerar os recursos alheios ainda estariamos a falar da mesma falta de recursos ?

Quando se discutem estas questões dos recursos julgo que é honesto admitirmos que há séculos que a nossa civilização tem um politica colonial activa que tem interferido de forma decisiva com os colonizados ( ou neo-colonizados ), não acha ?

:-)

Se

Anónimo disse...

Apreciei a clareza como expõe estes conceitos. Não são fáceis. Mas são essenciais para nos entendermos.
Tal como o Ferreira Pinto, também admiro a ousadia do Manuel quando confronta algumas das nossas vacas sagradas de estimação, como é o caso do livre arbitrio como regra demográfica.
Gostei das questões da Mariana Capela. De facto, o Alf não lhes responde, pois fala da situação presente como se ela fosse imutável e como se os recursos do ocidente fossem gerados apenas com recursos próprios. Basta-nos uma olhadela à capitação do consumo de energia pelo mundo para perceber que não é assim.

Florbela
Florbela

Peter disse...

Felicito-o por este belo texto.
Como sabe, a batata veio do Novo Mundo e, como novidade, as populações não a comiam.
No sentido de levá-las a mudar de hábitos alimentares, um monarca francês, cujo nome não me recordo, mandou plantar batatas junto ao palácio (talvez Versailles) com soldados a guardarem-na dia e noite, mas com instruções para "fecharem os olhos" à população que - raciocinando que se o rei a plantava e guardava, era porque era boa - durante a noite a ia roubando.

Peter disse...

Defende temas que me interessam, por isso inclui-o nos n/links. Espero que não se importe.

Anónimo disse...

Olá, Manuel Rocha
Profundas reflexões. Merecem uma leitura mais completa, pois só hoje conheci o seu blogue.Por isso volterei.
Será bem-vindo ao meu Bioterra.
Abraço