domingo, 2 de novembro de 2008

Ecologia Ideológica


A visibilidade adquirida pelo movimento ecológico deve muito ao facto de alguns dos temas centrais da sua agenda terem sido, em determinada altura, adoptados como bandeira por alguma esquerda política preocupada com a renovação do seu discurso tradicional. Esta tendência ficou bem patente com a constituição nos anos setenta do Die Grünen, que acabou mesmo por eleger deputados ao Parlamento Alemão em 83 e mais tarde integrou com o SPD um governo de coligação (1988-2005). Opondo aos sistemas de gestão social centrados no crescimento económico, assimétricos e depredatórios, a ideia dos sistemas ecológicos, como harmoniosos e sustentáveis, os Verdes inovaram na crítica ao capitalismo e às suas dinâmicas. Percebe-se a intenção. Mas a falta de rigor da comparação e o facto de ter dado azo ao uso da ecologia como fonte de metáforas nem sempre ajustadas mas que se instalaram de forma duradoura no main-stream (veja-se o caso da sustentabilidade), poderá ter contribuído para mistificar a essência das questões da ecologia humana e dessa forma ter desvirtuado inadvertidamente o sentido e a boa-fé de alguma acção política que nela se pretendeu inspirar. Ao ponto de o movimento ecológico ter aberto a porta à refundação do capitalismo que pretendeu combater, desta vez em versão de novas oportunidades - verdes, claro.

No entanto, para esta conversa, o que me interessa destacar desse processo, é que a apropriação pelo discurso político da linguagem e do corpo conceptual fundador da ecologia trouxe, de facto, para o campo da acção governativa, noções importantes, como as de interacção, retroacção, sistema, complexidade; trouxe-as, mas não se fez acompanhar de uma nova chave de leitura que alterasse o modelo mental de matriz analítica e linear que usamos para Nos entendermos. Quero com isto dizer que embora tenhamos sido capazes de adoptar a ideia da existência de sistemas complexos, continuamos a evidenciar sérias dificuldades em interpretá-los em funcionamento. Na realidade, continuamos a “desmontá-los” para explicá-los a partir de um duplo pré-conceito : de finalidade e de complexidade.

A noção de finalidade, subjacente à generalidade das leituras que fazemos do mundo, implica um vector temporal, ou seja, uma lógica segundo a qual existe um antes e um depois, no duplo pressuposto de que todos os acontecimentos têm necessariamente um princípio e um fim. Mas a ideia de finalidade leva-nos ainda mais longe que isso, quando nos condiciona a pressupor que o que é simples tenha que anteceder o que é complexo, criando assim uma terrível ratoeira ao pensamento de síntese que, na prática, tem enorme dificuldade em descolar da ideia que se tem da síntese química, como processo do elementar para o composto. Ou seja, não se concebe que a água possa ter “acontecido” sem que antes tivessem surgido o oxigénio e o hidrogénio. Quer isto dizer que conseguimos entender ideias como ciclo, mas temos a maior dificuldade em entender outras como retroacção, pois não possuímos linguagem para explicar esses processos sem os “seccionarmos” para os lermos planificados à luz duma dicotomia de causa e efeito. Por isso, as melhores teorias que conseguimos para Nos explicar, como a da Evolução, tendem a demonstrar o pluricelular como resultado da organização do unicelular, o complexo como sofisticação do elementar, o que é global como somatório do que é local, e tudo isto a partir de um princípio, seja ele Deus ou o Big Bang, e com a perfeição, a felicidade ou o progresso como destino.

A teoria de Lovelock tentou romper esta moldura conceptual. Mas o entendimento da Terra como super-organismo auto-regulável e como entidade não pré-determinada, funda-se sobre noções de contingência e desordem que são inaceitáveis para a maioria dos critérios civilizacionais. Por esse motivo, a hipótese GAIA também não conseguiu resolver o conflito mal percebido que se instalou entre a compreensão da ecologia como conhecimento das dinâmicas de retroacção associadas aos fenómenos de casualidade, contingência, conflitualidade e desordem que são inerentes à manifestação da vida, e o entendimento da especificidade da ecologia humana como tentativa de encontrar, dentro dessa compreensão mais lata, compromissos específicos de previsibilidade e ordem. Claro que em parte esse desfasamento poderá ser explicado pelo uso metafórico ou ideológico desses conceitos, o que poderá ter mistificado a sua compreensão. Mas para além disso, a verdade é que não conseguiu construir pontes sólidas entre a noção de complexidade e a sua governança. E este é, a meu ver, o duplo drama do ambientalismo na maioria das suas variantes. Digo drama porque pretende transpor para a acção política uma imposição que é também uma impossibilidade prática: a de produzir um sistema humano estável tendo por modelo pressupostos dos ecossistemas ecológicos que não são estáveis nesse sentido de homogeneidade, permanência e de não contingência que lhes pretendemos atribuir. E digo duplo drama porque vive na permanente tentação de o fazer à escala global, quando na verdade a ideia de globalidade é uma abstracção.

De facto, a partir do momento em que julgamos ter apreendido o funcionamento da vida no seu conjunto, aumentou também a propensão para identificar problemas globais e consequentemente para pensar em soluções globais segundo critérios igualmente globais. Mas, a meu ver, o recurso à ideia de globalidade construi-se sobre fortíssimas contaminações ideológicas pois ela justifica na perfeição a deriva monolítica da modernidade: um paradigma ( progresso ), uma cultura ( ocidental ), uma língua ( inglês ), um sistema económico ( capitalismo ), um sistema político ( democracia), uma medicina ( fisicalista ), uma ciência ( materialista ), um clima ( inalterável ) e por aí adiante. A lógica é mais uma vez linear: um problema, uma explicação, uma solução. Veja-se o exemplo do mercado mundial do carbono. Sucede, no entanto, que esta deriva unificadora leva aos antípodas da compreensão da Vida como entidade sistémica. A razão é simples: ignora a variabilidade e a diversidade como valores centrais da Vida, e em que as melhores soluções não são necessariamente as mais complexas. Ou, dizendo o mesmo de outro modo: o bom governo depende do bom entendimento de cada globalidade local. É nessa escala que se define ou não a sustentabilidade dos processos concretos que promovemos para atingir o objectivo de sempre de regular a contingência a que estamos naturalmente sujeitos.

7 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Manuel

É isso mesmo: "Ecologia Ideológica". O termo ideologia ainda não perdeu a sua capacidade para desmistificar certos temas e revelar os interesses sociais envolvidos. Os Verdes são de facto servidores do capitalismo e, a avaliar pelos estudos sobre furações, deve haver algo errado com certos estudos alarmistas.

Se analisarmos bem as coisas, iremos ver que a própria ciência está dominada pelo espírito do capitalismo. Aliás, a ciência moderna acompanha de perto o nascimento do capitalismo. E curiosamente este está infiltrado na "matemática". A matemática não é uma linguagem pura como se pensa e não me refiro aos seus usos ou aplicações claramente ideológicos. O pensamento quantificador é muito capitalista. Não é por acaso que Marx procurava um outro tipo de matemática que parece que está a ser estudado. Contudo, o princípio de equivalência estabelecido por Marx é o mesmo que domina a matemática ou a lógica ou mesmo as teorias da unificação. Ora, este princípio está ligado à concepção de Valor e ao dinheiro. Era preciso uma equipa interdisciplina para estudar tudo isto. Só deste modo independente podemos fazer justiça ao conhecimento científico. E, como diz, a linguagem e a terminologia são fundamentais e tb estão "contaminadas". Mas nesta sociedade ninguém quer saber da busca cooperativa da verdade...

Anónimo disse...

Notícia Público de hoje dá conta plano Principe Carlos para salvar florestas tropicais.

Bom exemplo deriva globalizante e preconceito ecológico tão bem tipificado neste excelente texto.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

fa_or disse...

Lê-lo é um banho de cultura!

Anónimo disse...

É verdade que a dita Esquerda foi mais lesta em colher e apanhar o argumentário do movimento ecológico.
Aliás, foi-o e de forma tão evidente que era comum escutar-se a dita Direita referir-se aos membros desse novo movimento como “verdes por fora, vermelhos por dentro”, especialmente aquando da contestação à instalação de novas armas por parte dos EUA em solo da República Federal Alemã.

Penso que ainda não se faz o devido enquadramento e o balanço do contributo das posições dos aludidos Verdes no panorama social e político, embora seja inegável que a dada altura (como se constata hoje em dia) também a Direita teve necessidade de ir buscar elementos desta área para o seu discurso.

Hoje todo e qualquer movimento político tem o seu quê de Verde.
A política adoptou a Ecologia, moldou-a às suas conveniências, adaptou-a à sua agenda.
O mesmo fizeram os senhores do mercado que, sendo capitalistas no exterior, são, na sua essência, e quase todos, oportunistas no interior, nos vendem desde o aloé vera do iogurte, ao detergente verde …

Aliás, e em jeito mesmo lateral, um dos grandes enigmas da Humanidade e que um dia gostaria de ver o amigo Manuel Rocha abordar é o do aloé vera (bem sei que será um pouco como os meus escritos do Obama, que de nada nos servem mas fica o desafio). Dos cosméticos aos produtos de higiene e limpeza doméstica, em não tendo um toque de aloé vera não presta!

Mas voltando à vaca fria, e em jeito de remate final, ao folclore dos Verdes sucedeu-se o folclore do “mainstream” político que oco e despido de ideias, órfão de verdadeiros estadistas, actua como um pirata … por onde passa , pilha o que pode e, depois de despido e vestido em novas roupagens, vende o alheio como se seu fosse!

Anónimo disse...

Excelente texto, Manuel. Espero que lhe dê seguimento desenvolvendo o conceito de "globalidade local" que deixa no fim.

Florbela

alf disse...

Já li e reli e há aqui ainda muito para voltar a ler.

A complexidade na natureza é um processo de contornos fractais - processos simples que se repetem em escalas sucessivas. Não é só isto, mas também é isto.

Este post faz-me notar que esta complexidade fractal está ausente das nossas teorias económicas. No campo político, procura-se caminhar para ela, com as descentralização de poderes (apesar das resistências que os «iluminados« de cá fazem ao processo..); mas no campo económico isso é visto como uma violação das teorias económicas; e, de certa forma, o mesmo acontece no campo social.

Enfim, há aqui muita matéria para pensar...

Anónimo disse...

Exelente texto. Por aqui a ortodoxia afigura ser ingrediente sem uso. É só cozinha de vanguarda:)